Escrita pelo pesquisador e professor da University of Applied Sciences and Arts of Southern Switzerland (SUPSI), Filippo Bignami, apresentamos a resenha do livro Democracy, Culture, and Social Change in North Africa (Democracia, Cultura e Mudança Social no Norte da África), editado por Moha Ennaji, professor de linguística e estudos culturais na Sidi Mohamed Ben Abdellah University (Marrocos) e presidente do Institute for Languages and Cultures.
Segundo Bignami, trata-se de um livro que, de forma inovadora, analisa o norte da África, explorando a relação entre processos de democratização, influência da cultura, impactos na mudança social e o papel das cidades como agentes de transformação.
Filippo Bignami
Tradução: Pedro Bastos¹
O envolvimento das políticas do Norte da África e os processos de democratização têm recebido pouca atenção acadêmica em comparação com a Europa Ocidental e, em menor medida, com a África subsaariana. Essa região é considerada o ponto de encontro entre a Europa, o Oriente Médio e a África, enfrentando pressões significativas relacionadas a migração, clima, economia e geopolítica. Embora sua contribuição para o mundo mediterrâneo seja reconhecida atualmente, o mesmo não acontece em relação aos seus processos internos de democratização, que estão intrinsecamente ligados à cultura, mudanças sociais e ao papel crucial desempenhado pelas cidades do Norte da África. No entanto, é importante ressaltar que a democracia na região não pode ser reduzida apenas a um princípio político importado, como algumas vezes sugerem os comentadores ocidentais ao se referirem aos movimentos que surgiram em 2011, principalmente nas principais cidades da Tunísia e da Argélia, desafiando a ordem política existente. Pelo contrário, sua prática e sobrevivência podem estar mais relacionadas à cultura política inata da região.
O livro “Democracy, Culture, and Social Change in North Africa“, editado por Moha Ennaji (Cambridge Scholars Publishing, 2023), reflete de forma inovadora sobre os desafios que atravessam os processos de democratização, a influência cultural e as dinâmicas de mudança social. O livro insta todos os atores a aumentar a consciência democrática, erradicar o analfabetismo, promover os diversos elementos das culturas, incluindo comunidades específicas, como a difusa comunidade berbere nesta área, com uma abertura abrangente para a modernidade, e construir uma sociedade baseada no conhecimento e comunicação. O livro busca destacar o impacto positivo da cultura da democracia e da cidadania na mudança social, além de pensar em maneiras de promover uma cultura de diálogo, democracia, solidariedade e tolerância.
Com uma perspectiva multidisciplinar, o livro reúne capítulos de renomados estudiosos internacionais, como Hamid Bahri, Kwesi Kwaa Prah, Filippo Bignami e muitos outros, além do famoso editor Moha Ennaij. Ao final do volume, há uma entrevista valiosa e inédita do editor com Tahar Ben Jelloun, o escritor marroquino mais conhecido tanto no mundo francófono quanto em outras partes do globo. Ele tem sido especialmente reconhecido desde o Prêmio Goncourt de 1987. Suas obras audaciosas têm gerado debates, e seus trabalhos são ensinados em universidades em todo o mundo, sendo uma referência de credibilidade na literatura francófona. Como um todo, a obra de Tahar Ben Jelloun integra o conto, a lenda, os ritos magrebinos e a evolução dos fluxos migratórios nas cidades. Sua originalidade reside na forma como ele compreende todos os aspectos das tradições e culturas do Norte da África em uma simbiose muito singular.
Enriquecidos por esta entrevista final, os objetivos do livro também são destacar a diversidade cultural e civilizacional do Norte da África, que tem raízes multiculturais e valores de cidadania comuns, como o espírito comunitário (em oposição ao individualismo), a hospitalidade, a importância dos laços familiares e a busca por equilíbrio, especialmente em áreas urbanas desiguais, entre a tradição e a modernidade.
O vínculo entre a cidade e a cidadania é particularmente desenvolvido e analisado no capítulo de Filippo Bignami. O estudioso destaca que a cidadania é um conceito altamente disputado e em discussão, e que, em alguns países e ambientes urbanos, ela assume diferentes formas, muitas vezes não correspondendo à conceituação original. Essas variações vão desde a reconfiguração de suas características em termos de direitos e deveres (não mais estritamente ligados à concepção do Estado-nação, como na Europa) até a resistência (por exemplo, em alguns países e cidades da América do Sul) e formas de participação passiva (em algumas áreas da Ásia), além de métodos de criatividade e inovação social em outros países africanos.
O objetivo desse capítulo é discutir a importância do conceito de cidadania como uma ferramenta fundamental para promover e melhorar a democracia a partir das cidades, aumentando a consciência social e política e a participação dos cidadãos. Isso acontece em um contexto em que a arena política e social está passando por profundas mudanças, com uma transição da centralidade dos Estados-nação para a crescente importância de diferentes níveis de regimes em que a cidadania é habilitada. Em outras palavras, a cidadania se manifesta em um quadro formal persistente dos Estados-nação, embora a desestabilização das políticas como hierarquias de poder e lealdade centradas no Estado nacional tenha possibilitado a multiplicação de dinâmicas políticas e atores não formalizados ou apenas parcialmente formalizados. O conjunto mais significativo de dinâmicas políticas e atores é, na verdade, representado pela cidade, que é um dos principais campos onde se podem vislumbrar cenários futuros de democracia e mudança social, tanto no Norte da África como em outros lugares.
Os processos de urbanização não são apenas uma das tendências globais mais importantes que impactam o futuro do mundo. A cidade representa também uma arena fundamental onde fundamentar e possibilitar uma compreensão ampliada da cidadania, capaz de influenciar a democracia a partir de seu campo de exercício mais significativo e de enfrentar as desigualdades e extrativismo. Isso é particularmente verdadeiro nas cidades do Norte da África, que são campos de fluxos de diversos tipos, pressões globais e agitações locais que podem ameaçar resultados frutíferos nas práticas de cidadania urbana.
O estudioso também descreve como a cidadania requer uma conceitualização urbana como uma participação ativa constante em níveis políticos, sociais, cívicos e culturais para fortalecer indivíduos e a sociedade. Em poucas palavras, é necessário um vínculo social e político para consolidar a democracia, e esse vínculo é desempenhado principalmente no ambiente urbano. Mas, essa ideia de cidadania praticada no ambiente urbano precisa ser habilitada por meio de aprendizado e prática, pois os cidadãos se tornam cidadãos ao participarem dessa arena. Existem, portanto, vários exemplos de educação para a cidadania, seguindo diferentes teorias.
Bignami relata em seu capítulo um projeto testado no Rio de Janeiro durante uma colaboração entre instituições suíças e brasileiras, envolvendo o LUCI (Laboratório de Paisagem Urbana) e a área de pesquisa em cidadania da SUPSI (Universidade de Ciências Aplicadas do Sul da Suíça); a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), por meio do IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional); e a PUC Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Este projeto, realizado entre 2018 e 2020, teve como foco introduzir a educação para a cidadania por meio da perspectiva urbana, obtendo efeitos positivos no aprimoramento da consciência democrática em uma amostra de estudantes do ensino médio. Outros resultados deste projeto foi a publicação de um volume sobre os impactos urbanos negativos decorrentes da onda de megaeventos realizados no Rio de Janeiro e uma pesquisa baseada em um índice de cidadania e regime urbano.
Esse experimento demonstrou que agir no nível da cidade pode trazer benefícios em termos de resultados pedagógicos. Uma vez que a África (especialmente o Norte da África) é o continente onde se espera um aumento significativo na população e na urbanização, as cidades daquela região, enquanto pontos de encontro de fluxos intercontinentais diversos, podem ser um laboratório brilhante para consolidar processos democráticos e iniciativas inovadoras de educação para a cidadania.
¹ Pedro Bastos é doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e gerente de projetos em descarbonização de veículos pesados pela C40 Cities Climate Leadership Group.