Fachada da Ocupação Lanceiros Negros no Centro de Porto Alegre. Crédito: Guilherme Santos
No dia 14 de julho de 2016 a Ocupação Lanceiros Negros, localizada no centro de Porto Alegre, completa 8 meses. E seus moradores continuam enfrentando uma dura negociação com o Governo do Estado, proprietário do prédio que estava desocupado há mais de 10 anos. Neste depoimento de Nanashara D. Sanches, do Núcleo PoA do Observatório das Metrópoles, conhecemos um pouco da história de luta pelo direito à moradia no sul do Brasil. O relato mostra que a política habitacional brasileira caminha, muitas vezes, em oposição às classes populares: o Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, dispõe de 6 mil imóveis desocupados; porém, nenhum deles pode ser destinado à construção de habitação de interesse social. A solução proposta pelo Governo do RS é leiloar os imóveis e, com os recursos arrecadados, construir presídios.
A Rede INCT Observatório das Metrópoles divulga o texto “Lições da Ocupação Lanceiros Negros: desafios e superação pela habitação popular no centro de Porto Alegre”, de Nanashara D. Sanches, em apoio à luta e debate sobre a habitação de interesse social no país.
Nanashara D. Sanches é Doutoranda em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre e Coordenadora Nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB).
LIÇÕES DA OCUPAÇÃO LANCEIROS NEGROS: DESAFIOS E SUPERAÇÃO PELA HABITAÇÃO POPULAR NO CENTRO DE PORTO ALEGRE
Nanashara D. Sanches
No dia 14 de julho de 2016 a Ocupação Lanceiros Negros, localizada no centro histórico de Porto Alegre, completa 8 meses. Desde seu princípio, a conjuntura do País mudou e os moradores da Ocupação tiveram que enfrentar novos desafios. Se, inicialmente, o principal desafio era organizar internamente a Ocupação, hoje a mesma busca parcerias e enfrenta uma dura mesa de negociação com o Governo do Estado, proprietário do prédio que estava desocupado há mais de 10 anos.
O centro de Porto Alegre traz outros casos emblemáticos da questão da moradia. Nele encontram-se também a Ocupação Saraí, iniciada em 2013 em um prédio privado, o assentamento 20 de Novembro, de famílias removidas pelas obras do entorno do Estádio Beira-rio por ocasião da Copa do Mundo de 2014 e o assentamento urbano Utopia e Luta, em prédio desapropriado do INSS em 2005.
Obviamente, a luta que permeia os movimentos responsáveis por estas ocupações tem o mesmo objetivo: disputar o espaço central da metrópole. Assim como em outras capitais, o centro da cidade de Porto Alegre, com uma população estimada em mais de 40 mil habitantes (39.154 habitantes segundo o Censo de 2010), abriga milhares de apartamentos em prédios que encontram-se vazios, sem cumprir sua função social, apesar das diretrizes do Estatuto das Cidades, sancionado em 2001. Apesar (ou por causa) da saída do comércio de maior prestígio, ocorrida desde a década de 1990, a área também tem sido alvo de disputas em torno de projetos de “revitalização” que visam a sua revalorização imobiliária, como é o caso do Cais Mauá.
De acordo com a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, o déficit habitacional de Porto Alegre está estimado em 70 mil famílias. Estes dados não são exatos devido à falta de atualização cadastral, que não ocorre desde 2009, ano em que iniciaram-se (e se encerraram) os contratos do Programa Minha Casa Minha Vida na cidade. Apesar da crescente demanda, a cidade sofre com a carência de políticas habitacionais que resolvam, de fato, os problemas que permeiam a questão da moradia.
Atualmente, Porto Alegre apresenta a formação de bairros periféricos inteiros que tornaram-se depositórios de ocupações irregulares. Concomitante a isso, o espaço urbano da capital é marcado pela expulsão/higienização histórica do centro da cidade alvo da especulação imobiliária. Vide o caso da Vila Chocolatão, removida do centro da cidade em 2011 e cujo terreno hoje constitui-se um imenso vazio urbano em plena área central. Nada disso é novidade, mas como explicar este processo àqueles que sentem, em suas próprias vidas, as consequências deste atual modelo de produção do espaço urbano?
Foi no intuído de aprender e ensinar mais sobre a desigualdade social de Porto Alegre que o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) iniciou seu trabalho na cidade, mais precisamente em bairros carentes de Porto Alegre e, após nove meses de reuniões semanais, as famílias do MLB deram início à Ocupação Lanceiros Negros. O nome da Ocupação marca a data de início da mesma: 14 de novembro de 2015. Este dia marca 171 anos do massacre de Porongos, ocorrido em 1844, no qual centenas de escravos que lutavam por sua liberdade foram assassinados. O massacre deu-se através de um acordo entre Duque de Caxias, à época barão, e Davi Canabarro, no final da Guerra dos Farrapos.
As 70 famílias que construíram esta ocupação, na maioria negros e negras, provem de áreas de risco, onde perdem anualmente pertences devido a eventos climáticos e que não conseguem pagar aluguel para residir em uma habitação digna. Algumas famílias buscaram a Ocupação para fugir de áreas disputadas pelo tráfico de drogas. Percebe-se, assim, que a questão habitacional envolve uma gama de políticas públicas ineficientes (habitacional, urbana, de segurança pública) e, mormente, paliativas.
Embora pareça óbvio, cabe ressaltar que as ocupações ocorrem exatamente pela falta de políticas voltadas principalmente às populações mais carentes. E, através destas ocupações, milhares de famílias garantem através de seus próprios esforços, uma moradia, nem sempre próximas a equipamentos públicos de qualidade, frisa-se. Ao ocupar o centro, o acesso a equipamentos públicos é garantido, o que se demonstra no caso da Ocupação Lanceiros Negros.
O primeiro mês da Ocupação foi marcado pelo cadastramento das famílias no Centro de Saúde Santa Marta. Neste processo inicial, todas as crianças da Ocupação foram pesadas, tiveram atendimento odontológico e, quando necessário, foram medicadas. O próximo passo foi ir até a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre apresentando a demanda por creches e escolas para crianças e adolescentes da Ocupação.
Cozinha comunitária da Ocupação Lanceiros Negros. (Crédito: Ramiro Furquim)
Internamente a Ocupação serve como escola para um novo tipo de sociedade. O refeitório, a biblioteca e a lavanderia são coletivos e de responsabilidade de todas famílias que lá residem. Tarefas como alimentação, segurança e limpeza são compartilhadas entre todos, conforme a disponibilidade de horários.
Contudo, ao longo desse tempo, uma demanda das mães da Ocupação resultou na organização de um berçário e de um novo espaço de aprendizagem para crianças entre 2 e 6 anos. Berçários públicos são raros em Porto Alegre, o que resultou na organização da creche e berçário Valdete Guerra, que atende crianças da Ocupação e da comunidade do centro de Porto Alegre.
Ensaio de bloco de carnaval e oficina de instrumentos com crianças. (Crédito: Mídia Ninja)
Além disso, apoiadores da sociedade civil, estudantes e sindicatos formaram um Comitê de Apoio à Ocupação. O Comitê reúne-se semanalmente e delibera, junto à Coordenação da Ocupação, atividades culturais e educacionais que ocorrem nos espaços internos da Lanceiros Negros. As atividades são abertas ao público e a entrada no prédio ocorre mediante a doação de um quilo de alimento não perecível e/ou um litro de leite. Dentre as atividades realizadas estão: debates e rodas de conversa, shows musicais, peças teatrais, oficinas e aulas de esportes e yoga.
Estes direitos básicos foram garantidos, porém, manter o prédio para as famílias tem se tornado uma batalha.
O processo de reintegração de posse iniciou-se logo após o início da Ocupação. Neste processo, o juiz responsável determinava a reintegração de posse do prédio mediante a apresentação de uma alternativa por parte do Estado para abrigar as famílias ocupantes. O Estado contestou a decisão, quando então foi retirada a exigência de uma destinação para as famílias. Menos de um mês após tal decisão, a Brigada Militar de Porto Alegre organizou a reintegração. Sem mandado de justiça e com a ajuda do Batalhão de Operações Especiais, a Brigada manteve os ocupantes isolados na Ocupação durante a madrugada mais fria do ano até então na capital. Apesar do frio, centenas de pessoas se mantiveram ao lado de fora do prédio. Seriam testemunhas do que viesse a acontecer e talvez seriam agredidas por lá estarem.
Isto tudo ocorreu na noite de 24 para 25 de maio. Devido à iminência de um conflito social, a reintegração foi suspensa por um desembargador plantonista. Esta suspensão está alinhada a dois recursos usados pela equipe jurídica que representa a Ocupação, mas a qualquer momento o processo da reintegração pode voltar a correr.
Para evitar tal possibilidade, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas busca apoio político para suas demandas. Nossa última atividade foi a organização de Audiência Pública na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, realizada no dia 6 de julho e na qual vereadores e representantes de diversas entidades (entre elas o Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre), e órgãos públicos estiveram presentes para encontrar soluções para a Ocupação.
Audiência na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. (Crédito: Guilherme Santos)
Atualmente, a Ocupação está envolvida como parte em audiências de conciliação mediadas pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, coordenada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Esta mediação tem se tornado cada vez mais complicada. No momento que escrevo, saímos da segunda audiência de conciliação, com uma próxima marcada para 15 de agosto.
Na segunda audiência de conciliação, representantes do Estado trazem a baila um dado importante para o estudo habitacional no Estado do Rio Grande do Sul: o Estado dispõe de 6 mil imóveis desocupados. Dentre estes há apartamentos e prédios. Contudo, o Estado reforça que nenhum desses 6 mil podem ser destinados à construção de moradias populares. A razão? Estes 6 mil imóveis serão leiloados e os recursos arrecadados utilizados para a construção de presídios.
Num contexto trágico, o Estado do Rio Grande do Sul apresenta sua política habitacional voltada para a população carente, realizada através da construção de presídios. Sem acesso à educação, à saúde, a condições mínimas, o Estado impõe a caminhada tortuosa e violenta de jovens e adultos para as prisões.
Parece óbvio que o acesso à moradia digna e todos os equipamentos que vem atrelados a esta garante um outro futuro, garante cidadania. Cansados de esperar, as famílias da Ocupação Lanceiros Negros decidiram por garantir sua cidadania. É, com certeza uma lição, e um exemplo a ser seguido.
Para não se limitar em garantir só para os seus as possibilidades de dignidade, a Ocupação apresentou para a população de Porto Alegre e para Estado e Prefeitura o Projeto de Casa de Acolhimento Lanceiros Negros, a ser implantada no prédio atualmente ocupado. Através do Projeto, famílias em vulnerabilidade teriam um local para morar até a implementação da política de moradia voltada para elas. Marca a história de Porto Alegre os abrigos precários oferecidos pela Prefeitura de Porto Alegre. Para mudar tal cenário, a Casa de Acolhimento Lanceiros Negros buscará, através da sociedade organizada e movimentos sociais manter um equipamento público que seja uma referência para famílias que necessitam de abrigo, amparo e atendimento médico, jurídico e social.
É uma proposta inovadora e um novo desafio para estas famílias na sua luta pelo direito à moradia e à cidade.
Divisórias de dormitórios da Ocupação Lanceiros Negros. (Crédito: Ramiro Furquim)
Publicado em Artigos Semanais | Última modificação em 14-07-2016 20:24:23