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Tarson Núñez*

Dois governos que atuam na direção privatizar o setor visitam e buscam lições em uma experiência que se baseia na gestão pública das águas.

A gravidade da crise climática e o impacto dos eventos extremos de maio do ano passado colocaram o debate sobre as políticas públicas de gestão de eventos extremos na ordem do dia. O maior desafio de todos os gestores responsáveis hoje é o de ser capazes de prevenir os desastres, mitigar os impactos e adaptar nossa sociedade para um ambiente cada vez mais desafiador. Não se trata mais de pensar na crise climática como algo que pode acontecer, mas de começar a atuar agora de forma consistente e estratégica. No entanto, o que a realidade tem mostrado é que nessas horas que as contradições entre os discursos e as práticas emergem de forma mais intensa.

No final de fevereiro, o prefeito de Porto Alegre e o governador do Estado viajaram à Europa para conhecer experiências de soluções para a prevenção e gestão de enchentes. Realmente é uma iniciativa importante, a de buscar identificar as melhores práticas em escala internacional de forma a replicar aqui o aprendizado já realizado em outros países. O problema é que, no caso prefeito e do governador, a distância entre os possíveis aprendizados e as práticas dos seus governos é enorme.

Uma primeira lição que poderia ser aprendida é a da importância das políticas públicas e do papel do Estado na gestão do território. Este tema das águas na Holanda é administrado pelo Rijkswaterstaat, uma agência executiva ligada ao Ministério da Infraestrutura e Gestão das Águas do governo holandês. A agência é responsável pela proteção contra as enchentes, mas também pelo fornecimento de água aos cidadãos. Esta gestão é compartilhada, no âmbito da Rijkswaterstaat, entre o governo nacional e as unidades subnacionais. Na Holanda, portanto, este tema das águas é gestionado de forma pública, como uma política de Estado.

Eis uma lição importante para um governador que já privatizou sua empresa pública de água e para um prefeito que tem como prioridade privatizar a autarquia que gerencia as águas na Capital. E o governo do Estado já divulgou publicamente a ideia de que as estruturas de prevenção de enchentes, que serão recuperadas com os bilhões enviados pelo governo federal, poderiam também ser objeto de concessão para a iniciativa privada. Isto nos leva a uma primeira ironia, pois os dois governos que atuam na direção privatizar o setor, passando esta atribuição para o mercado, visitam e buscam lições em uma experiência que se baseia na gestão pública das águas.

E este aprendizado deveria se estender ao também ao tema do planejamento territorial, essencial para garantir uma prevenção eficiente. Aqui no Rio Grande do Sul, durante o governo de José Ivo Sartori (2015-2018), se aprovou a extinção da Metroplan, um órgão estadual que tinha como função o planejamento e a gestão territorial na região metropolitana de Porto Alegre. Em 2019, o governador Eduardo Leite suspendeu a extinção da fundação, mais por conta de problemas legais do que por convicção. Mesmo mantendo a existência formal da fundação em 2021, sua proposta de reorganização da estrutura administrativa do Estado passou as atribuições da fundação para a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano. O fato é que este papel de planejamento e gestão territorial em escala regional foi abandonado a mais de uma década. E isto, como veremos a seguir, tem tudo a ver com as enchentes na região metropolitana de Porto Alegre.

Uma das políticas utilizadas na Holanda como instrumento de mitigação e prevenção das cheias é um programa chamado “Room for the River”, que é uma ideia que se classifica no campo das políticas que vem sendo denominadas como “soluções baseadas na natureza”. A ideia é de que o enfrentamento às enchentes demanda um planejamento urbano voltado para a prevenção e mitigação dos riscos ambientais. De acordo com esta abordagem, é preciso garantir a existência de regras de ocupação urbana que evitem a presença de construções em áreas adjacentes aos cursos d’água. O pressuposto é de que se pode reduzir o impacto das enchentes nas áreas urbanas construídas e ocupadas, dando mais espaço para os rios.

Melo e Leite durante visita à cidade de Veessen, na Holanda. Foto: Prefeitura Municipal de Porto Alegre (Divulgação).

As áreas de risco potencial, os terrenos mais baixos e historicamente mais alagáveis, precisam ser mantidas livres de construções, atuando como reservatórios que impedem as águas de ocupar as áreas urbanas. Desta maneira, mantidas na forma de parques ou em utilizações que comportam as periódicas inundações, como a agricultura, estas áreas cumprem um papel de barreiras naturais que previnem que a inundação tenha um impacto maior nas cidades. Uma abordagem inteligente, baseada em uma visão científica contemporânea de como se pode enfrentar a crise climática.

No caso da Capital do Rio Grande do Sul, a experiência mostra que temos andado na direção contrária das políticas de “Room for the River”. A ausência de planejamento urbano pode ser vista claramente na inundação da zona norte da cidade. Uma observação deste território, compartilhado entre Porto Alegre, Canoas e Cachoeirinha, permite identificar que ali temos uma região de banhado, uma área baixa que faz parte da várzea do Rio Gravataí e dos Sinos, parte do extenso delta que forma o estuário do Guaíba. A expansão da área urbana dos três municípios vem ocupando este território. Nos anos 50 e 60, esta ocupação se deu pelo afluxo de moradores que eram expulsos do centro das cidades e se deslocavam para as áreas então periféricas. Foi o momento em que se formam as vilas que compõem o Sarandi.

Mais recentemente, esta área, especialmente em torno da avenida Assis Brasil, no acesso para Cachoeirinha, passou a ter uma ocupação mais empresarial. Em torno deste eixo se situam a sede da Federação das Indústrias, a fábrica da Coca-Cola/FEMSA e a loja da Havan. E estes são apenas os três exemplos mais notórios de uma ocupação que vem se intensificando. Quem trafega hoje na Freeway na direção ao litoral e olha para a direita, na direção do centro da cidade, vai poder ver a qualquer dia da semana caminhões basculantes desembarcando suas cargas de terra e caliça. Isto pode ser visto também facilmente utilizando o Google Maps, uma grande área de banhado vem sendo aterrada de maneira sistemática e acelerada.

O que acontece quando uma área alagadiça é aterrada? Esta área, que servia como uma espécie de esponja que retinha a água nos momentos de chuva mais intensa, deixa de cumprir esta função. A água que antes se acumulava nesta área se espalha sobre as áreas adjacentes. Isto explica uma parte importante do impacto da enchente no bairro Sarandi. Não foi somente o colapso daquele trecho dos diques, a cheia é também resultado da ocupação desordenada e predatória de uma área de banhado que deveria ser preservada, como nos ensinam os holandeses e sua política de “Room for the River”.

No caso de Porto Alegre, portanto, o que se vê é o resultado do sucateamento do planejamento urbano. Não deixa de ser irônico, portanto, que nossos governantes se declarem admirados com as soluções adotadas na Holanda enquanto suas ações nos governos têm apontado sempre para uma direção diametralmente oposta, de privilegiar a ocupação urbana desordenada, desconhecendo regras básicas de hidrologia. O correto, se formos levar a sério os exemplos estudados, seria uma imediata suspensão da expansão urbana naquela região. Mais do que isso, a formulação de uma política de preservação daquela região de banhados como um elemento a mais nas estruturas de defesa da região metropolitana contra os futuros eventos extremos que certamente virão.

Mas a verdade é que o apreço dos nossos governantes por essas ideias inovadoras é muito mais superficial do que real. Seu compromisso real é com a limitação da ação do Estado, e com a defesa de que a iniciativa privada deve ter uma liberdade absoluta. O resultado disso é uma sociedade despreparada para os desafios da crise climática, onde a maioria dos cidadãos seguem vulneráveis em relação aos problemas que sabemos que surgirão. Cabe a sociedade gaúcha pressionar seus governantes para que de fato aprendam ao menos algumas das lições da experiência holandesa.


*Doutor em Ciência Política pela UFRGS, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.

Artigo publicado originalmente no portal Sul21, em 09 de abril de 2025.