Lei Geral da Copa: contexto de exceção para a Fifa
O Senado aprovou na última quarta-feira (09/05) o projeto da Lei Geral da Copa, que regulamenta os direitos comerciais da Federação Internacional de Futebol (Fifa) no Mundial de 2014 no Brasil. A proposta, que segue agora para sanção presidencial, cria um contexto de exceção, com alterações legais e administrativas de caráter excepcional, como a suspensão da validade de trecho do Estatuto do Torcedor que veta a venda de bebidas alcoólicas nos estádios. Para o pesquisador do Observatório das Metrópoles, Erick Omena, o projeto de lei fere “direitos já consolidados” do povo brasileiro.
Para viabilizar a venda de bebidas alcoólicas nos estádios durante os jogos, o texto suspende o artigo 13-A do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671, de 2003), que impede o consumo dessas bebidas nos estádios. Dessa forma, o que se prevê é que a Fifa terá de negociar a liberação com cada estado que sediar o evento – e a negociação pode variar devido às diferenças nas legislações estaduais.
Além disso, a Lei Geral da Copa fixa privilégios para a Fifa, como a titularidade dos direitos sobre imagens e sons relacionados ao evento. Essas regras também valem para a Copa das Confederações de 2013. Apesar de ser inicialmente criticado pelo governo federal, um dos itens do projeto aprovado prevê que a União responderá pelos danos que causar à Fifa ou aos seus empregados, seja “por ação ou omissão”.
De acordo com o projeto, os preços dos ingressos serão determinados pela Fifa, ficando suspensas as leis estaduais e municipais que permitem descontos e gratuidades. Haverá quatro faixas de preços, sendo a “Categoria 4” a mais barata, que necessariamente representará ao menos 10 % do total de ingressos disponibilizados para todas as 64 partidas do campeonato e que provavelmente valerá US$ 50,00. Estudantes e participantes de programas federais de transferência de renda (como o Bolsa Família) terão direito à meia-entrada na Categoria 4. Porém, caso a FIFA não coloque à venda entradas desta categoria para além da quantidade mínima imposta pela lei (300.000 para toda a competição), o acesso à meia-entrada de estudantes e beneficiários de programas de transferência de renda somente se dará através de sorteio. Em outras palavras, o que está efetivamente garantido a este público é a prioridade na participação do sorteio, mecanismo obrigatório na oferta do lote mínimo de ingressos da categoria 4. Somente idosos a partir de 60 anos poderão comprar a meia-entrada em qualquer categoria de preço.
Desrespeito a direitos consolidados
Segundo o pesquisador do Observatório das Metrópoles, Erick Omena, o governo brasileiro está desrespeitando “direitos já consolidados” no Brasil para garantir os lucros da Fifa. Ou seja, o que se vê com a Lei Geral da Copa é um retrocesso da legislação em vigor, que está sendo alterada por conta dos interesses da Federação Internacional e de seus parceiros.
Além da Lei Geral da Copa que ocupa o centro do debate, Erick explica que há outras medidas e consequências relacionadas ao megaevento que podem ferir os direitos da população brasileira.
Estatuto do Torcedor
Com uma cervejaria entre seus patrocinadores oficiais, a Fifa contraria o Estatuto do Torcedor e libera o consumo de álcool nos estádios. Além disso, suspende o artigo do estatuto que limita os preços dos alimentos comercializados durante os jogos.
Código de Defesa do Consumidor
A Lei da Copa concede à Fifa e aos seus parceiros megacoorporativos exclusividade na divulgação, propaganda, venda e distribuição de produtos, serviços e marcas relacionadas ao evento esportivo. As regras relativas aos ingressos, por exemplo, seriam determinadas pela entidade, e não pelo Código de Defesa do Consumidor.
Meia entrada
A Fifa reservou 300 mil ingressos para os assentos da chamada categoria 4 (os piores lugares dos estádios) para brasileiros, nos quais pessoas de baixa renda, indígenas e estudantes terão direito à meia entrada. Apenas idosos terão seu direito à meia-entrada integralmente garantido para qualquer categoria. Os estudantes só poderão pagar meia na categoria 4, segundo informações do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro.
Comércio local e ambulantes
É proibido comercializar qualquer produto que faça menção à Copa de 2014 dentro das chamadas Áreas de Restrição Comercial, isto é, nos estádios, em seus entornos e vias de acesso. Nessas áreas, somente a Fifa pode operar. Além de constituir monopólio, a medida restringe a liberdade de escolha, direito garantido pelo Código de Defesa do Consumidor.
Livre expressão popular
A utilização de qualquer nome ou símbolo que faça menção à competição só poderá ocorrer mediante autorização da Fifa. Vale lembrar que isso coloca em questão, inclusive, a tradição de colorir e adornar ruas em épocas de Copa do Mundo.
Tribunais especiais
A“utilização indevida de símbolos oficiais” será crime punido com detenção e multa. “A punição é mais severa do que seria na nossa legislação vigente. No entanto, a garantia de monopólio da Fifa, que esvazia o potencial do comércio local, está legitimada”, afirma Erick Omena.
Direitos de imagem, som e radiodifusão
A Fifa é titular exclusiva de todos os direitos de imagem, som e radiodifusão. A entidade pode limitar a presença da imprensa, como fez durante o sorteio das eliminatórias, em julho de 2011.
Responsabilidade da União
A União responderá amplamente por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos eventos”. A obrigação de indenizar a Fifa com verbas públicas é legitimada de forma genérica, já que quase tudo se enquadraria nessa formulação.
Isenção de impostos
A lei 12.350, conversão de uma medida provisória, isenta a Fifa e seus parceiros de impostos como Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), Imposto de Renda e até mesmo contribuições sociais. “Essa lei vai contra todo o discurso político de benefícios trazidos por megaeventos”, declara Omena.
Regime Diferenciado de Contratações
O já aprovado Regime Diferenciado de Contratações, ou RDC, torna as regras de licitações ligadas à Copa menos rigorosas, sobretudo quanto à obediência ao princípio da publicidade de dados públicos. “Pelo RDC, é possível atribuir a uma mesma empresa a responsabilidade por todo o processo de planejamento e execução, isto é, a própria empresa contratada pode determinar os parâmetros a serem seguidos por ela mesma ao longo da implantação do empreendimento, através da chamada contratação integrada”, afirma Omena.
Megaendividamento
A Lei 12.348, conversão de uma medida provisória, altera o limite de endividamento dos municípios para a Copa. “Os mesmos municípios não podem comprometer o seu Orçamento além do limite com questões urgentes, como saneamento básico”, diz Omena.
Remoções compulsórias
A previsão é que 150 mil famílias das doze cidades sedes da Copa sejam removidas até 2014, segundo levantamento do Comitê Popular da Copa. No Morro da Providência, Centro do Rio, as remoções já começaram. Engenheiros voluntários do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Crea-RJ) contabilizam que ao menos 832 famílias da Providência devem ser desalojadas para a construção do Porto Maravilha. “Não está havendo debate com a sociedade, principalmente com os grupos mais afetados, dos pequenos comerciantes, ambulantes e moradores de comunidades”, afirma Erick Omena. “Onde estão os ganhos da população?”.
Imóveis mais caros
Um levantamento feito pelo Sindicato da Habitação do Rio de Janeiro (Secovi Rio) mostrou que os valores de imóveis na cidade aumentaram 700% nos últimos dez anos. Desde 2008, os preços crescem acima da inflação. Para o Comitê Popular da Copa, a especulação imobiliária somada às remoções de moradias populares “aprofundam o apartheid social pela vertente da habitação”.
Transporte
A mobilidade urbana também foi analisada pelo Comitê, conforme publicado no Dossiê de Megaeventos e Violações de Direitos Humanos, lançado em abril. A passagem de ônibus teve reajuste de 10% em 2012, enquanto a das barcas que ligam o Rio a Niterói aumentou mais de 60%. O metrô carioca, a R$ 3,20, é o mais caro do país, e as obras de integração estão sendo realizadas sem transparência, segundo o Comitê.
Com Agência Senado, Ibase e Agência Pública