As obras previstas para a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas têm gerado uma quantidade expressiva de remoções e desapropriações para a implantação dos BRTs, construção de equipamentos esportivos e urbanização. As denúncias e reivindicações dos movimentos e organizações sociais1 sobre os processos de violação do direito à moradia devido à remoção de famílias de baixa renda começam a ganhar espaço na agenda do governo federal e no debate público2.
Sobressai na grande imprensa e nas declarações de membros da FIFA, da CBF, e de grande parte do governo e da oposição, a preocupação na adoção de mecanismos que facilitem a agilidade na implementação das obras. Entretanto, tão importante quanto a realização das obras é o seu planejamento, que inclui estudos prévios dos possíveis impactos socioambientais das intervenções, debate público e participação da sociedade na escolha das melhores alternativas.
Nesta semana, mesmo que de forma tardia, duas importantes decisões estão sendo tomadas em âmbito nacional que podem contribuir para alterar a maneira como as cidades têm se preparado para os megaeventos. A primeira foi a resolução do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos Humanos de criar um Grupo de Trabalho para prevenir remoções forçadas em função da Copa. A resolução assinada pela Ministra da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, cria o Grupo de Trabalho para “… receber denúncias, monitorar e propor diretrizes para garantir o direito humano à moradia adequada e prevenir remoções forçadas, em decorrência das atividades para a Copa do Mundo de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016”. Participam do Grupo de Trabalho representantes de diversos ministérios, a Caixa Econômica Federal, o Ministério Público Federal, representantes dos movimentos de moradia, do Fórum Nacional de Reforma Urbana, Movimento Nacional da População de Rua e do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH).
A outra resolução, ainda em estudo pelo governo federal, é a adoção de previsão orçamentária nos projetos de obras públicas em áreas urbanas para a remoção de famílias. A medida visa atingir principalmente as obras vinculadas à Copa do Mundo de 2014. A notícia foi apresentada pela secretária Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, Inês Magalhães, como resposta a uma das reivindicações dos movimentos sociais e de moradia que integram o Fórum Nacional de Reforma Urbana. O ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, declarou que a expectativa do governo é de anunciar uma proposta concreta na audiência marcada para o dia 25 de outubro de 2011, entre a presidente Dilma Rousseff e o Fórum Nacional de Reforma Urbana.
Monitoramento das remoções durante os preparativos para a Copa
A Rede Nacional INCT Observatório das Metrópoles, através do Projeto Metropolização e Megaeventos, financiado com recursos da FINEP e bolsas de pesquisa do CNPq, vem realizando estudos sobre os impactos sociais, econômicos, ambientais e políticos dos megaeventos nas metrópoles brasileiras. Uma das dificuldades para a realização de tais estudos recai, exatamente, na ausência de transparência nas informações fundamentais sobre as obras, como a de previsão das remoções projetadas para a preparação das cidades para a Copa.
Num primeiro levantamento, realizado no site específico do governo federal para acompanhar as obras vinculadas à Copa de 2014 – www.portaltransparencia.gov.br/copa2014, pode-se perceber que somente com as obras de BRTs e melhorias viárias para a Copa serão gastos cerca de R$ 1,5 bilhão com desapropriações mediante recursos dos governos municipais ou estaduais. Esse montante é ainda mais expressivo ao se observar que, em alguns casos, os recursos previstos para as desapropriações totalizam cerca de um terço ou mais do recurso global projetado para a obra.
Entretanto, cabe ressaltar que não está claro no site do governo federal se os recursos destinados às desapropriações incluem as indenizações relativas aos imóveis informais. Também não é disponibilizado o número total de famílias afetadas pelas desapropriações. Além disso, as remoções não ocorrem somente nas melhorias voltadas à mobilidade urbana. No caso do Rio de Janeiro, a reforma do Maracanã inclui a construção de um estacionamento e a urbanização do seu entorno e irá provocar a remoção de cerca de 700 famílias da Favela do Metrô Mangueira³, entretanto, os recursos para desapropriação não aparecem no site.
A diferenciação entre desapropriação e remoção é fundamental, tendo em vista que os governos têm assumido posturas distintas nos casos de imóveis formais e informais. Enquanto nas áreas formais, o processo de desapropriação leva em consideração o valor do solo e da benfeitoria, no caso das áreas informais, o valor disponibilizado se restringe às benfeitorias. Não estamos falando de imóveis em áreas de preservação ambiental ou não-edificantes, mas de imóveis passíveis de regularização.
O caso do Rio de Janeiro é ilustrativo. A Relatoria do Direito Humano à Cidade da Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambiental realizou visitas a oito comunidades afetadas pelas obras da Copa e das Olimpíadas com processos de remoção (colocar link para acessar relatório). São mais de 3.000 famílias atingidas, somente nestas oito comunidades, sem que haja um plano de garantia do direito à moradia dessas famílias. Nestas visitas, pôde-se constatar que os valores das indenizações eram insuficientes para assegurar a permanência das famílias na mesma localidade ou região, tendo em vista a valorização imobiliária provocada pelos investimentos e o não reconhecimento do direito à posse dessas famílias. Com raras exceções, a opção à indenização é um apartamento do Programa Minha Casa Minha Vida em áreas periféricas e distantes do local de origem4.
Link Relatório Plataforma Dhesca
A outra questão a considerar é que os projetos estão sendo implementados sem que haja estudos prévios a respeito dos impactos sociais de tais obras e da inevitabilidade das remoções5. Relatório de Acompanhamento do TCU – Tribunal de Contas da União referente aos financiamentos aos governos estaduais e municipais para as obras de mobilidade urbana relacionadas à Copa de 2014 (nº 010.765/2010-7), elaborado em dezembro de 2010, já alertava para os riscos de a Caixa Econômica Federal ter firmado contratos de financiamento com os governos municipais e estaduais, antes mesmos que estes apresentassem os estudos de impactos ambientais (EIA) e os estudos de impacto de vizinhança (EIV), exigidos pelo Estatuto da Cidade. Sob a alegação de que estes seriam apresentados no primeiro desembolso, o relatório aponta o risco de não expressar mais validade ou implicar na paralisação ou atrasos do projeto em curso: “… nos casos em que deva ser realizado o EIV, observadas as especificidades da legislação local, há o risco de que a análise dos efeitos positivos e negativos do empreendimento quanto à qualidade de vida da população residente na área de sua realização e em suas proximidades, cerne do referido estudo, indique eventual inadequação das intervenções constantes dos contratos de financiamento já firmados”.
O relatório, portanto, conclui que “… a não realização do EIA e do EIV previamente às contratações, fato cuja principal consequência é a possibilidade de considerável atraso na execução dos empreendimentos, tanto pelo caráter participativo dos estudos a serem realizados anteriormente ao início das obras, quanto por eventuais alterações nos instrumentos contratuais em razão da necessidade de modificações nas intervenções propostas identificadas nos referidos estudos”.
Por fim, consideramos que as medidas anunciadas podem se constituir em importantes instrumentos para alterar a forma como os projetos relativos à Copa do Mundo e às Olimpíadas têm se desenvolvido, na perspectiva da maior transparência e da garantia do direito à moradia.
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1 Cabe destacar a formação de Comitês Populares da Copa em 10 das 12 cidades-sede da Copa do Mundo 2014, agregando uma diversidade de movimentos, universidades, sindicatos e ONGs, bem como organizações e movimentos sociais ligados aos direitos humanos e à reforma urbana.
2 A adoção de medidas de prevenção às remoções e de garantia do direito a moradia na implementação das obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas já tinham sido recomendadas pelo Ministério Público Federal – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (Recomendação nº 07/2011, de 27 de abril de 2011).
3 Cerca de 350 famílias já foram retiradas, sendo que 100 para o empreendimento do Programa Minha Casa Minha Vida em Cosmos (a cerca de 50 km da comunidade) e 250 famílias para o empreendimento do MCMV Mangueira em terreno ao lado da comunidade. 350 famílias aguardam a construção do MCMV Mangueira II para serem reassentados. Cabe destacar que a opção do reassentamento em terreno próximo à Favela do Metrô só surgiu após muita resistência da comunidade.
4 No Rio de Janeiro, além da indenização simples e do reassentamento, existe a opção da “aquisição assistida”, que viabiliza um acréscimo no valor da benfeitoria para aqueles que desejem comprar outro imóvel com o dinheiro da indenização. Entretanto, a base do cálculo continua sendo o valor das benfeitorias. Cabe destacar que ainda não foi possível avaliar quais os efeitos práticos da recente medida introduzida no decreto nº 34522 de 03 de outubro de 2011, da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, que possibilita ampliar em até 80% o valor das benfeitorias, dependendo da localização no que diz respeito à acessibilidade e disponibilidade de serviços. Entretanto, não há um plano com medidas concretas para garantir a permanência das famílias na mesma localidade.
5 A questão da inevitabilidade das obras e dos benefícios públicos das mesmas é colocada à prova quando verificamos o exemplo da remoção prevista para a comunidade Vila Autódromo em Jacarepaguá para a construção da Vila Olímpica na cidade do Rio de Janeiro em área de extrema valorização imobiliária. A comunidade é consolidada e atualmente conta com cerca de 1.000 famílias. A Via Olímpica utilizará apenas 25% da área e os 75% restantes serão oferecidos à empreiteira para produção imobiliária, como contrapartida pelas despesas realizadas na obra, no formato de parceria público-privado.