Esgoto a céu aberto em São João do Meriti, Baixada Fluminense
Quais os obstáculos para a universalização na oferta dos serviços de saneamento básico na metrópole do Rio de Janeiro? Principal ator da gestão do saneamento metropolitano, a Cedae apresenta indicadores negativos de desempenho, como alto índice de perdas, política tarifária inadequada, falta de integração entre os sistemas, entre outros. Tal ineficácia decorre do uso da empresa como instrumento político do governo estadual. É o que aponta Ana Lúcia Britto em artigo do livro “Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana”. Os serviços de saneamento básico na metrópole fluminense também são regidos pelas classes proprietárias que diferenciam a oferta do que vai para a capital e para as periferias urbanas.
O artigo “A gestão do saneamento ambiental no Rio de Janeiro: entre o mercado e o direito”, de Ana Lúcia Britto (PROURB/UFRJ) é um dos destaques do livro “Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana”, lançamento do INCT Observatório das Metrópoles.
O ponto de partida da análise de Ana Lúcia Britto são os obstáculos à efetivação de um modelo de gestão de serviços de saneamento orientado pelos valores de justiça social e universalização decorrentes dos serviços da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – Cedae.
“Na primeira parte do artigo buscamos construir um retrato do acesso aos serviços na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) tendo como fontes de dados o Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SNIS) e diagnósticos realizados no âmbito dos Planos Municipais de Saneamento que se encontram em fase de elaboração, traçando um quadro das desigualdades no acesso aos serviços”, explica Ana Lúcia Britto e completa:
“A pergunta central da investigação é por que a Cedae – criada em 1975 a partir da fusão da Empresa de Águas do Estado da Guanabara (CEDAG), da Empresa de Saneamento da Guanabara (ESAG) e da Companhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro (SANERJ) – não conseguiu universalizar os serviços de saneamento básico na região metropolitana do Rio de Janeiro? Quais os obstáculos para a universalização e justiça social na oferta dos serviços?”.
Ana Lúcia Britto aponta, por exemplo, que em relação à distribuição da rede de esgotamento sanitário na metrópole do Rio de Janeiro é emblemático a ineficiência do poder público.
“Com relação ao esgotamento sanitário os índices de atendimento com rede são inferiores a 50% em quase todos os municípios. As exceções são os municípios do Rio de Janeiro e Niterói. Os dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) são diferentes dos dados do IBGE, mas vale lembrar que o IBGE não distingue atendimento por rede de esgoto sanitário e esgotamento via rede pluvial. Mesmo assim, pelos dados do IBGE, existem municípios cujo indicador do destino do esgoto é ‘rede geral ou pluvial’ que está abaixo de 50%, como Itaboraí (17,32%), Belford Roxo (40,99%), Magé (40,14%), Japeri (39,84%), São Gonçalo (38,54%), Guapimirim (41,49%), Seropédica (18,27%) e Paracambi (44,23%).”
Se a coleta do esgoto é precária na maior parte dos municípios, o tratamento do esgoto coletado é também extremamente insuficiente. O estudo aponta que os esgotos coletados pelas redes pluviais não são tratados e, dos esgotos coletados pela rede de esgotamento, apenas dois municípios do Rio de Janeiro, Niterói e Maricá, apresentam indicadores de tratamento acima de 50%, com 84,4% e 66,6%, respectivamente.
De acordo com Ana Lúcia Britto, o caso do esgotamento sanitário na Região Metropolitana do Rio de Janeiro é emblemático da ineficiência do poder público, ao se considerar os diferentes programas desenvolvidos e o volume de recursos mobilizados. Desde 1996, com os investimentos do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), e até 2010 (PAC I) foi investido um volume expressivo de recursos em esgotamento no território da Baixada Fluminense. Diferentes análises mostram que os resultados são muito aquém do esperado. Os principais problemas são sistemas incompletos e desconectados com estações de tratamento que não operam por falta de esgotos para tratar.
“Os dados apresentados denotam graves problemas de gestão dos serviços de saneamento básico: dificuldades de generalizar o acesso ao abastecimento de água, sobretudo nos municípios da periferia metropolitana, um índice de perdas de água considerável, um vasto território nos municípios da periferia metropolitana sem rede sem rede de coleta de esgotos, servido por um sistema de drenagem que não foi projetado para operar como unitário, por valas a céu aberto, ou por fossas muitas vezes precárias, contaminando o lençol freático e a água dos poços construídos como forma de garantir ou completar o abastecimento de água”, afirma Britto.
Segundo a autora, esse retrato da área não difere muito do que havia no início da década de 2000. A partir dessa constatação o artigo busca levantar elementos que expliquem essa situação – especialmente analisando o modo da gestão e a relação entre os principais atores do setor no contexto da metrópole do Rio de Janeiro.
Gestão dos serviços de saneamento na metrópole do Rio
Principal ator na gestão do saneamento metropolitano, a Cedae é uma empresa pública vinculada à Secretaria de Obras. Até o final de 2006 entre os diversos problemas que comprometiam o bom desempenho da empresa destacavam-se: o baixo índice de hidrometração, o alto índice de perdas, a política tarifária inadequada, a ausência de capacidade de investimento, o alto índice de evasão de receitas e inadimplência, o crescimento exponencial de causas judiciais e a falta de integração entre os sistemas. A companhia vinha fechando os anos com resultados financeiros negativos.
No início do primeiro mandato do governador Sergio Cabral, 2007, foi iniciado um programa de recuperação e modernização da companhia, pelo governo do estado, a partir de projeto elaborado pela Fundação Getúlio Vargas. Desde então, a política da companhia vem sendo focada em uma estratégia de recuperação financeira centrada no aumento do índice de faturamento, mediante a coibição de ligações clandestinas de grandes e médios usuários. No balanço de 2010 a companhia anunciava sua recuperação financeira: “A CEDAE provou ser uma Companhia lucrativa, apresentando lucro pelo quarto ano seguido” (Cedae, 2010). Contudo, desde então, os resultados têm sido cada vez menores. O lucro recuou e, em 2011, a Cedae registrou um prejuízo.
De acordo com o artigo, apesar dos impasses enfrentados, o projeto de recuperação financeira é acompanhado da tentativa de orientar a gestão por uma visão empresarial. Essa visão empresarial, aplicada aos serviços de saneamento é coerente com as tentativas de substituir o princípio de serviços como direito social da cidadania, que devem responder aos interesses e demandas sociais, por princípios mercantis, em que o ator interpelado é o(a) consumidor(a) ou o cliente, e não o(a) cidadão(ã) portador(a) de direitos (HELLER; CASTRO, p. 4).
Segundo Ana Lúcia Britto, essa visão empresarial ou mercantil dos serviços não é estranha ao modelo Planasa, ao contrário, estava na base do projeto de modernização da gestão dos serviços do regime militar.
“Como vamos observar, apesar de uma forte tendência de mudanças na gestão do saneamento, induzidas pelo novo quadro normativo, na RMRJ a resistência da Cedae a adaptar-se às novas normas para a gestão dos serviços é particularmente importante. Podemos identificar atualmente, no que concerne à atuação da companhia, um modo de gestão dos serviços muito semelhante ao estabelecido na segunda metade dos anos 70, quando a empresa pública foi constituída, nos marcos da fusão entre os antigos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. Essa semelhança se deve a uma forte dependência de trajetória (“path dependence”) na política pública de saneamento metropolitana”, argumenta.
“Nesse sentido, a Cedae é permeável aos interesses políticos do governo do estado, seguindo a trajetória desenhada em período anterior, quando da sua constituição no contexto do Planasa. A empresa vinculada à Secretaria de Obras é, sem dúvida, um instrumento importante na construção da rede de subordinação da maior parte dos municípios metropolitanos ao governo do Estado. Isso fica evidente nas renovações de contrato e na inexistência de cobranças efetivas da maior parte dos municípios à companhia. Vale lembrar que essa é uma característica específica das relações políticas que vigoram no estado do Rio de Janeiro, isto é, das condições sistêmicas particulares que marcam esse território. Essas relações têm sua origem no chaguismo e na hegemonia do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) no estado. Elas não são inerentes ao federalismo brasileiro; nas RMs de São Paulo e Belo Horizonte verifica-se uma maior autonomia de municípios com relação ao governo estadual”.
RECOMENDAÇÃO. Para Ana Lúcia Britto, a ruptura com a trajetória anterior, moldada pelo Planasa, é um impasse fundamental a ser enfrentada na área do saneamento básico na RMRJ. Essa ruptura demanda uma mudança que não se esgota na política setorial de saneamento, mas vai além, se colocando no âmbito das estruturas e da cultura política específicas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
“A ruptura com a trajetória anterior depende da instauração de um modelo de governança metropolitano democrático e aberto à participação social, no qual poderá ser gestado um processo de mudança da cultura política que marca o território da metrópole. Sem isso, a oportunidade de uma gestão democrática, universalista e orientada pela justiça social não se realizará.”
Faça o download do livro “Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana” e leia o artigo completo sobre o tema saneamento básico na metrópole fluminense.
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