Em artigo para o BrCidades, Celso Santos Carvalho (Coordenação BrCidades), analisa criticamente a gestão do patrimônio da União e defende a implementação de um programa efetivo de destinação dos imóveis urbanos para o atendimento às necessidades habitacionais, às demandas de mobilidade urbana, à proteção ambiental e demais usos de utilidade pública e interesse social.
1) Os bens dominiais urbanos da União
No Brasil, a União dispõe de um imenso patrimônio imobiliário. Além dos bens comuns de uso de todos (como praias e parques) e dos bens usados pela própria administração no serviço público federal, há os bens dominiais, imóveis que não estão vinculados a um uso público específico e podem ser destinados tal qual um bem particular. São os terrenos de marinha e seus acrescidos, os terrenos marginais dos rios federais, as ilhas marítimas (quando não forem sede de município), os imóveis recebidos em pagamento de dívidas e os imóveis que pertenciam a órgãos extintos da administração federal (como Rede Ferroviária Federal, LBA, IBC etc.), entre outros.
Dos bens dominiais, os que tem maior incidência nas nossas cidades são: (1) os terrenos de marinha e seus acrescidos: e, (2) os imóveis incorporados ao patrimônio da União devido à extinção de órgãos da administração federal. Esses imóveis são administrados pela Secretaria do Patrimônio da União – SPU, que conta com superintendências em todos os Estados.
Segundo nossa legislação, os terrenos de marinha são aqueles localizados na faixa de 33 metros de largura contados a partir do ponto onde a água do mar atingia a terra, considerando a média das marés máximas mensais do ano de 1.831. A linha formada por esses pontos é denominada Linha de Preamar Média (LPM). A SPU estima que o comprimento total da LPM no Brasil seja de 20 mil quilômetros, dos quais apenas 24% encontra-se demarcado (BRASIL, 2017). Já os acrescidos de marinha são todas as áreas localizadas entre a LPM e o mar, englobando, portanto, os terrenos formados natural ou artificialmente (aterros), após o ano de 1831, em áreas que até então eram cobertas pelo mar, além dos mangues atuais.
Considerando uma faixa de 33 metros por 20 mil quilômetros, haveria em torno de 660 milhões de metros quadrados (equivalente a 66.000 mil quarteirões de 100 x 100 metros) de terrenos da União localizados na nossa costa, com presença fundamental nas áreas urbanas de importantes cidades como Florianópolis, Santos, Rio de Janeiro, Vitória, Salvador, Maceió, Aracaju, Recife, João Pessoa, Natal, Fortaleza, São Luís e Belém, entre várias outras. 660 milhões de metros quadrados dos quais apenas uma pequena parcela encontra-se delimitada e cadastrada. A esse valor deve-se somar ainda todos os acrescidos de marinha (mangues e aterros), cuja dimensão total nem se conhece.
Dos imóveis incorporados ao patrimônio da União em função da extinção de órgãos federais, é emblemático o caso da Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, empresa extinta pela Lei Federal 11.483/2007, que estabeleceu que cabe à SPU incorporar ao patrimônio da União todos os imóveis não operacionais, ou seja, imóveis que não são mais utilizados no transporte ferroviário, como os ramais ferroviários extintos, com suas estações e pátios de manobras e de serviços. Também neste caso, apenas uma pequena parcela dos imóveis esta cadastrada pela SPU, sendo que a documentação de grande parte encontra-se em arquivos nos antigos escritórios da RFFSA. No caso do Estado de São Paulo, por exemplo, esses imóveis localizam-se em áreas urbanas importantes, na Capital e em cidades como São Caetano, Santo André, Sorocaba, Campinas, Jundiaí, Rio Claro, São Carlos, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Franca, Bauru, São José dos Campos, Jacareí, entre outras.
2) A privatização das terras da União
Assim como os “bens de uso comum do povo”, como os rios, praças, vias públicas e praias, os bens dominiais da União também deveriam ser destinados para o bem da coletividade, porque constituem patrimônio de todos os brasileiros.
No entanto, essa destinação está muito longe de acontecer. Primeiro, porque apenas uma pequena parcela dos imóveis dominiais encontra-se cadastrada, condição inicial para que se possa fazer a gestão do patrimônio imobiliário. A maior parte, não estando identificada pela SPU, encontra-se sujeita à apropriação por particulares e empresas privadas, principalmente por aqueles que detêm maior força e poder econômico.
Com relação à parcela que se encontra cadastrada, esta deveria ser destinada para implantação de equipamentos sociais, equipamentos de cultura, esporte e lazer, sistemas de mobilidade urbana, parques urbanos, conjuntos habitacionais e das demais atividades de utilidade pública e de interesse social necessárias para o bom funcionamento das cidades e para a melhoria das condições de vida da população. No entanto, nossa legislação permite que os imóveis sem destinação pública ou social sejam disponibilizados para uso privado, contra o pagamento de uma taxa anual. E este é um grande problema, porque o que deveria ser exceção acabou virando regra.
Os dois instrumentos tradicionais para permitir o uso privado dos imóveis da União são o aforamento e a inscrição de ocupação.
No aforamento, instrumento muito antigo que vem da época do império, a União permanece proprietária de 17% do imóvel e transfere o restante (83%) para o particular. Em contrapartida, este deve pagar o foro, que corresponde a 0,6% do valor cadastrado do terreno. Além disso, no caso de venda, é necessário pagar o laudêmio, que corresponde a 5% do valor cadastrado do terreno. Esses imóveis já se encontram privatizados, apesar da União manter uma pequena parcela da sua propriedade. Sua única função pública é a arrecadação do foro e do laudêmio, que corresponde a um valor irrisório, pois a base de cálculo – valor cadastrado do imóvel – encontra-se completamente defasada.
Ao contrário do aforamento, a inscrição de ocupação é (em princípio) um instrumento precário, por meio do qual a SPU permite que um particular use o imóvel da União contra o pagamento anual de uma taxa de ocupação de 2% do valor cadastrado. É uma espécie de aluguel do terreno, que permitiria o uso temporário do terreno até que a SPU providenciasse sua destinação definitiva.
Para conseguir a inscrição de ocupação, o particular precisa demonstrar que utiliza o terreno público da União desde antes de 10/06/2014, data estabelecida pela Lei Federal 13.139/2015, apresentar uma planta com a delimitação do terreno e solicitar por meio de um processo administrativo junto à SPU sua inscrição como ocupante. Apesar de ser definido como um instrumento precário, dificilmente a SPU cancela uma inscrição de ocupação, o que a transforma, na prática, em um instrumento definitivo de “aluguel” da terra pública. Pior que isso, com uma inscrição de ocupação, o particular pode requerer o aforamento e virar sócio majoritário desse terreno, com todas as regalias do proprietário. Se a ocupação do terreno estiver inscrita na SPU desde antes de 1940, o aforamento é gratuito. Se for posterior, o ocupante deve pagar 83% do valor do terreno, mas, se sua inscrição for anterior a 10/06/2013, não precisa participar de licitação. Resumindo, apesar de ser caracterizada na nossa legislação como sendo um instrumento precário, a inscrição de ocupação confere ao particular uma preferência para aquisição definitiva do imóvel público.
Nunca é demais ressaltar que, apesar da legislação garantir para todos a possibilidade da inscrição de ocupação, apenas aqueles que têm condições de elaborar um levantamento topográfico relativamente sofisticado e que contam com assessoria técnica e jurídica especializada conseguem efetivar sua inscrição. Assim, grande parte dos imóveis inscritos é ocupada por empreendimentos imobiliários, como loteamentos e edifícios, terminais portuários e empresas de logística. A inscrição de ocupação de imóveis populares é uma parcela insignificante do conjunto de imóveis inscritos.
É comum, inclusive, a prática de empresas de grande poder econômico expulsar famílias que há décadas ocupam informalmente terrenos estratégicos, realizar a inscrição de ocupação em seu nome, para, em seguida, requerer o aforamento. Um caso que revela o funcionamento desse mecanismo é discutido por MOREIRA (2018), que estudou uma tentativa de apropriação privada de uma extensa área no estuário de Santos, para implantação de um terminal portuário privado.
Na Tabela 1 apresenta-se a distribuição de imóveis da União de acordo com o regime de utilização, envolvendo a inscrição de ocupação, o aforamento e o uso especial (imóveis afetados à administração pública federal). Observa-se que o total de imóveis cadastrados nesses regimes equivale a 662.010 unidades, incluindo terrenos, condomínios, casas e apartamentos de edifícios. Desse total, 46% encontra-se inscrito sob o regime de ocupação e 45% sob o regime de aforamento, ambos regimes que atendem prioritariamente ao interesse privado.
Tabela 1 – Regimes de utilização de imóveis da União (número de imóveis em setembro de 2018)
Sabe-se que valor arrecadado pela SPU com os imóveis da União no ano de 2017 atingiu menos que R$ 800 milhões. Considerando que esse valor corresponde aos 601.348 imóveis inscritos sob os regimes de aforamento e ocupação, conclui-se que a arrecadação média anual por imóvel é de R$ 1.330,34, o que representa apenas R$ 110,86 por imóvel por mês.
Além de gerar uma arrecadação irrisória para a União, a inscrição de ocupação sempre foi um instrumento de privatização dos terrenos da União, pois permite que um particular vire foreiro (ou seja, proprietário de 83% do terreno público) por meio de um simples processo administrativo, sem licitação (e as vezes de forma gratuita), bastando apenas a decisão do superintendente do Patrimônio da União no Estado.
A partir da aprovação da Lei Federal 13.240/2015, complementada pela Lei Federal 13.465/2017, foram ampliadas consideravelmente as possibilidades de privatização das terras da União. Hoje, não só o foreiro pode comprar a parte de 17% que pertence à União, como tornou-se possível a compra de 100% do terreno pelo particular beneficiado com uma inscrição de ocupação. Sendo que nos dois casos não é exigida licitação! Além disso, e o mais grave, é que essas leis permitem que os imóveis da União possam ser destinados à integralização de fundos de investimento.
O fundo de investimento estabelece um novo patamar na privatização do patrimônio da União. Os imóveis colocados no fundo poderão ser vendidos, alugados, reformados, edificados e permutados, sempre sob a lógica financeira e especulativa do mercado imobiliário, com o objetivo de propiciar o máximo retorno financeiro para os investidores.
Obviamente serão destinados aos fundos de investimento os imóveis mais bem localizados e de maior interesse para o mercado, as joias da coroa. Dessa forma, abre-se mão de um patrimônio estratégico, que deveria ser usado para alavancar usos de interesse público e social, para favorecer o interesse privado na sua forma mais especulativa.
Essa privatização vem sendo preparada há alguns anos e recentemente, a Medida Provisória nº 852, de 21 de setembro de 2018, autorizou e definiu recursos para a SPU contratar instituição financeira pública ou privada para criação e operação do fundo de investimento formado com os imóveis da União, o que torna possível sua viabilização em curto prazo.
Com a posse do novo governo, a política federal de privatização radical das terras da União fica explícita. A Secretaria do Patrimônio da União, designada agora Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União, passa a integrar a Secretaria Especial de Desestatização e Desinvestimento, vinculada ao Ministério da Economia, comandado por um representante do capital financeiro.
3) A função social das terras da União
No período de 2003 a 2014, o governo federal buscou conciliar o processo de privatização das terras da União com um avanço na sua destinação social.
Assim, atuou fortemente para alterar a legislação e permitir que os imóveis da União fossem destinados gratuitamente para municípios e estados implantarem equipamentos sociais, parques públicos, sistemas de mobilidade urbana, conjuntos habitacionais e regularização fundiária de interesse social. Tornou possível também a destinação gratuita de terrenos e prédios vazios para a produção por autogestão de conjuntos habitacionais no âmbito do programa Minha Casa Minha Vida Entidades.
A política de conciliação do interesse público com o interesse privado trouxe avanços importantes, embora insuficientes. Vejamos, por exemplo, o caso do Programa Minha Casa Minha Vida, o único programa habitacional da nossa história que chegou a atender em larga escala a famílias de baixa renda. Ao ter que buscar no mercado os terrenos necessários para produzir quatro milhões de unidades habitacionais, o programa contribuiu para a elevação do preço da terra em todas as nossas principais cidades. Essa elevação do preço dos terrenos impactou o preço dos imóveis, que puxou junto o preço do aluguel. Em consequência, apesar da produção expressiva, o déficit habitacional aumentou, porque uma parte importante das famílias passou a gastar mais que 30% da sua renda com aluguel, ou então, não conseguindo arcar com o aluguel, teve que se abrigar na casa de parentes, ocupar prédios abandonados ou engrossar o contingente de moradores em situação de rua. Enquanto isso, a quantidade de imóveis da União vazios, não demarcados ou “alugados” a preço vil poderia ter atendido à necessidade de terrenos para a produção de unidades habitacionais em uma escala capaz de diminuir significativamente o déficit habitacional, sem impactar o preço dos terrenos no mercado imobiliário.
Com a nova política do governo federal para as terras da União, os problemas urbanos só tendem a se agravar.
É necessária a construção de um projeto alternativo, democrático e popular para as cidades brasileiras. Um projeto que considere o papel fundamental do patrimônio imobiliário da União na resolução do problema habitacional do País. Que perceba que essas terras públicas são necessárias para a implantação de corredores exclusivos de transporte público e ciclovias, tanto em ramais ferroviários extintos, quanto em trechos da faixa de terrenos de marinha e de terrenos marginais ao longo da costa e dos rios federais. Para atender à necessidade de imóveis para implantação de creches, escolas, hospitais e centros de cultura. Para favorecer a proteção de ecossistemas importantes, como os mangues, bem como para a implantação de parques públicos. Para a proteção nas nossas costas, nos trechos mais vulneráveis aos desastres decorrentes das mudanças climáticas globais. E que o mercado imobiliário é incapaz que fornecer esses terrenos sem que haja um aumento explosivo no preço das terras e dos imóveis.
Em síntese, é inadmissível que o patrimônio da União continue sendo privatizado, quando há tantas demandas sociais por terras bem localizadas nas nossas cidades. Precisamos estabelecer um programa efetivo de destinação dos imóveis urbanos da União para o atendimento às necessidades habitacionais, às demandas de mobilidade urbana, à proteção ambiental e demais usos de utilidade pública e interesse social.
Por isso, propomos:
- Revogar as leis que permitem a venda e a incorporação dos imóveis da União em Fundos de Investimento Imobiliário.
- Interromper os novos processos de inscrição de ocupação dos imóveis da União e realizar uma auditoria nos processos dos 300.000 imóveis inscritos sob esse regime, revertendo para uma destinação de interesse social todos aqueles que não estejam sendo efetivamente utilizados.
- Promover a regularização fundiária de todos os terrenos da União ocupados por população de baixa renda para atendimento ao direito constitucional à moradia.
- Demarcar, cadastrar, registrar e destinar os imóveis da União exclusivamente para fins de utilidade pública ou interesse social, tratando com prioridade a implantação de conjuntos habitacionais nas áreas centrais e bairros plenamente urbanizados.
4) Referências bibliográficas
BRASIL (2017). Plano Nacional de Caracterização do Patrimônio da União. Secretaria do Patrimônio da União. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Dezembro 2017. Versão 3. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/assuntos/gestao/patrimonio-da-uniao/plano-nacional-de-caracterizacao
MOREIRA, Fernanda Accioly (2018). Terras de exclusão, portos de resistência: um estudo sobre a função social das terras da União. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018. 320 p.