O ensaio fotográfico da edição comemorativa nº 30 da Revista e-metropolis mostra a cidade de El Carmen, no Peru, a partir do registro das memórias da viagem de sociólogo João Martins. Foi naquele pequeno povoado que o turista-sociólogo encontrou danças, canções, histórias e memórias que brotaram das lutas do povo negro contra a escravidão e a colonização espanhola. “O Distrito de El Carmen é a doce memória da liberdade. É um lugar de alegria e orgulho da construção de uma vivência coletiva e do ‘ser afro-peruano’. É um espaço onde a diversidade se cristaliza numa espécie de realismo mágico andino”, aponta o autor.
João Martins é mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e graduado em Relações Internacionais pela PUC Minas. (jipemartins@gmail.com)
O ensaio El Carmen, a cidade onde nasceu a vida afroperuana é um dos destaques da Revista e-metropolis nº 30.
EL CARMEN, A CIDADE ONDE NASCEU A VIDA AFRO-PERUANA
JOÃO PEDRO SILVEIRA MARTINS
No verão de 2016 tive a oportunidade de conhecer o Peru, onde passei um tempo explorando diferentes regiões e formas de vida, sintetizadas após um duro perí odo de colonização, como o resto da América Latina. Ao sul de Lima, na região árida de Ica, escondida entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico, há um pequeno vale que guarda a memória da luta afro-peruana por liberdade. Seguindo pela rodovia Panamericana Sur, ao quilômetro 202, se vê um aviso de boas-vindas ao Distrito de El Carmen. Para subir até a praça central, um sol (moeda peruana) é suficiente num táxi local. Esse pequeno povoado, que se situa na cidade de Chincha, é símbolo de luta dos escravos das grandes fazendas da região por liberdade.
“Só podemos pensar este imaginário social, que cria a linguagem, as instituiçõ es, os costumes, como a capacidade criadora do anônimo coletivo que se põe em funcionamento cada vez que os humanos se reúnem e se dão, cada vez, uma figura singular instituída para existir” (CASTORIADIS, 1992, p. 92). Nesta passagem, Castoriadis (1992) invoca o imaginário social criado pelas representações sociais personificadas pelas instituições. No contexto de El Carmen, a busca pela identidade afro-peruana foi a força que moveu aqueles homens e mulheres para buscar o sentido de coletividade e criar seu modo de vida, expresso pela linguagem corporal nas danças de zapateo, na tradição oral das canções sobre a luta dos escravos, o sotaque de Chincha e todo o orgulho dos antepassados.
Sua história remonta a colonização espanhola, na qual grandes fazendas traziam escravos caribenhos até a região para trabalhar no plantio de cana-de-açúcar e algodão. No século 19 uma grande resistência do povo negro foi criada e uma série de rebeliões organizadas pelos escravos de diversas fazendas contra os escravocratas espanhóis conseguiu lentamente liberdade à região. Quando a cabeça de Julio Carrillo de Albornoz y Mendoza foi decapitada e caiu pelas escadarias de seu casarão na Hacienda San José, os primeiros habitantes já haviam levantado suas casas no povoado de El Carmen e já começavam a reconstruir suas vidas com liberdade.
Até hoje o espírito de luta e força do povo negro está vivo na cidade. Pelas ruas, todas as portas ficam abertas para os vizinhos chegarem mais perto. No sábado, a padaria (a casinha branca e azul na rua esquerda à matriz) decidiu não abrir. Mas a dona dos sacolés (ou chupetes, como se diz localmente) está trabalhando até mais tarde, pois as crianças estão brincando até de madrugada na praça, os adultos tomam uma cerveja no El Atardecer de Bigote e os adolescentes com seus penteados afro fofocam e planejam as férias.
No outro dia de manhã, um grupo toca zapateo e uma barraquinha de artesanato está aberta para alguns turistas curiosos que vieram experimentar comida afro-peruana no restaurante El Refugio de Mamainé. O grupo de crisma aprende a rezar na igreja, cujo altar é cheio de anjinhos negros e uma imagem do “Jesús afroamericano”. Uma mulher trans dança cúmbia com os amigos no bar da esquina e o sapateiro da cidade oferece seu trabalho aos passantes e conta que ali trabalha há mais de quarenta anos. Seguindo mais adiante, a duas esquinas da praça, o senhor Guillermo Santa Cruz, famoso violinista, recebe crianças de outras cidades em sua sala para cantar antigas canções dos escravos sobre a vida nas fazendas e o desejo de liberdade.
O Distrito de El Carmen é a doce memória da liberdade. É um lugar de alegria e orgulho da construção de uma vivência coletiva e do “ser afro-peruano”. É um espaço onde a diversidade se cristaliza numa espécie de realismo mágico andino.
Acesse o ensaio fotográfico completo no site da Revista e-metropolis.