“A polícia brasileira não sabe administrar conflito, ela é parte do conflito”. Nesta entrevista o profº Roberto Kant de Lima, coordenador do InEAC/UFF, fala sobre a criação do Fórum Permanente “Metrópole, Administração de Conflitos e Segurança Pública” em parceria com o Observatório das Metrópoles, dentro do novo edital INCT/CNPq.
O Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC/UFF) integra o Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), e é um dos parceiros do Observatório das Metrópoles no desenvolvimento de pesquisas relacionadas à dinâmica metropolitana e à gestão de conflitos. Tendo agora como contexto a abertura do novo edital INCT, Observatório das Metrópoles e InEAC irão propor a criação do Fórum Permanente “Metrópole, Administração de Conflitos e Segurança Pública” com foco na investigação dos conflitos gerados em territórios metropolitanos, criminalidade violenta e funcionamento dos sistema de Segurança e de Justiça Criminal no país.
A criação do fórum permanente é um dos temas da entrevista com o profº Roberto Kant de Lima, que também comenta o programa das UPPs, o papel da polícia e a administração de conflitos. “Em uma sociedade democrática é preciso ter divergência para haver igualdade”, afirma.
ENTREVISTA
ROBERTO KANT DE LIMA, InEAC
Por Breno Procópio, Comunicação Observatório das Metrópoles
P. Como está sendo concebido o Fórum Permanente “Metrópole, Administração de Conflitos e Segurança Pública”? Quais são seus objetivos?
R. Primeiro é preciso explicar que o fórum é resultado da articulação que já vem sendo feita entre o InEAC e o Observatório das Metrópoles a partir da troca de informações e de participações das duas equipes em bancas de defesa, conferências, mesas redondas etc. E houve sempre um desejo de institucionalizar essa parceria já que existe uma relação direta entre segurança pública e as dinâmicas dos territórios urbanos – e sobretudo metropolitanos espaços onde vemos a intensificação da violência e dos conflitos. O debate, por exemplo, sobre as UPPs no Rio de Janeiro passa por essa relação.
Além disso, os conhecimentos sobre a metrópole envolvem a segurança pública e administração de conflitos. E é importante explicar que quando falamos em segurança pública aqui não estamos falando somente de crime, arma, tráfico de drogas; estamos falando também de circulação de pessoas, abastecimento de água, abastecimento de luz, moradia etc. Esses temas envolvem conflitos porque quando falta água tem disputa, briga, então existe conflito.
Desse modo, conhecer de maneira mais ampla o contexto da metrópole que é o expertise do Observatório das Metrópoles significará para o InEAC ampliar a nossa visão macro do território metropolitano. Em contrapartida, o nosso instituto sediado na Universidade Federal Fluminense (UFF) desenvolve etnografias e pesquisas qualitativas relacionadas a temas como segurança, mercados formais e informais, mercados lícitos e ilícitos, sistema da Justiça Criminal, entre outros. Queremos com o fórum convergir essas duas perspectivas, gerando resultados que possam colocar em pauta o tema da metrópole e da administração de conflitos.
Inicialmente o fórum irá funcionar como um espaço para que pesquisadores do InEAC e Observatório das Metrópoles possam se encontrar, debater, e trocar informações e saberes. A iniciativa visa institucionalizar e formalizar um espaço de pesquisa para dois institutos da área das Ciências Humanas que integram o Programa INCT. Em certa medida, estamos ampliando o escopo do programa ao colocar em diálogo dois institutos que já atuam em rede.
P. O InEAC vem desenvolvendo pesquisas sobre o Sistema de Segurança e Justiça criminal no país. Quais são as dificuldades para acessar dados nessa área? E o que já avançou nesse sentido?
R. O principal desafio na área de Segurança Pública são os dados mesmos. Já que as quantificações são feitas em cima dos registros realizados pela política, ou seja, em outras áreas há levantamentos mais sistematizados como no caso do Censo Demográfico. Na Segurança Pública os dados variam de acordo com as intenções de cada policial – o que quer ser mostrado ou omitido; além do mais só temos registro do que dá errado, não há informações sobre ações executadas de maneira correta etc.
Assim, o registro é um indício de como a polícia está pensando e registrando as ações que executa. Na pesquisa qualitativa podemos avaliar a qualidade desse dado, o que está querendo mostrar.
P. O InEAC está desenvolvendo alguma pesquisa relacionado à geração de dados em Segurança Pública?
R. Estamos desenvolvendo em parceria com o Instituto de Segurança Pública um projeto, financiado pela FAPERJ, sobre práticas policiais – o que eles fazem, formação etc. A coordenação desse projeto é feita pelos professores Luciane Patrício e Lenin Pires.
O InEAC também está implementando um curso, inédito no Brasil, que é de Tecnólogo em Segurança Pública. É um curso à distância uma parceria entre a UFF, a SEDERJ e a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, destinado aos profissionais de segurança, ou seja, por lei as 80% das vagas são reservadas para policiais e os outros 20% para guarda municipal, bombeiro etc. São 500 alunos por semestre, dois anos de duração. Acredito que esse curso terá um impacto, visto que atende um grupo grande de alunos, é um curso de graduação para os profissionais que estão no começo da carreira.
E para nós do InEAC tanto o curso de Tecnólogo quanto o Bacharelado representam um espaço efetivo para pensar a Segurança Pública com um instrumento de administração de conflito. Vemos muitos policiais querendo argumentar que tal coisa ou ação é errada dentro da polícia, porém não têm um discurso e argumentos para contrapor. Os cursos do InEAC propõem essa reflexão a fim de quebrar o chamado “monodiscurso” da polícia – que propaga de “bandido bom é bandido morto” entre outras falas.
Além disso, a Polícia brasileira se caracteriza por lugares muito hierárquicos, principalmente a Polícia Militar – que tem um modelo ainda baseado no Exército e, quando não, do Direito. Isso significa que o espaço não é para o argumento e a busca de consenso, mas é o contraditório – isso ou aquilo, oposição sistemática. E o contraditório só se resolve com a autoridade, o poder é quem tem o argumento. Nas Ciências Sociais e Ciência em geral é a argumentação e a busca por consensos que se resolvem os problemas.
Vemos muitos policiais nos cursos trazendo como formação o contraditório. Isso significa que esse profissional não está preparado para ver a complexidade ou argumentar em busca de consensos. Quando tem um problema ele se volta para o nível hierárquico e quem tem mais poder é quem tem a verdade.
P. Nesse sentido, podemos afirmar que essa a hierarquia e a formação baseada no contraditório impede o policial de ser um bom administrador de conflitos. Essa seria uma das barreiras para o programa das UPPs? A polícia pacificadora consegue administrar conflitos nas comunidades ocupadas?
R. A primeira coisa a se dizer é que as UPPs tem um projeto de pacificação, mas isso é uma coisa complicada. A palavra “pacificação” sugere uma ausência de conflito, mas as sociedades democráticas têm conflitos. Portanto a questão não é acabar com o conflito, mas administrá-los. A pergunta que surge daí é: temos uma instituição para administrar conflitos? Parece que não. A polícia está aí e ela é o que é – continua autoritária e não apta para dialogar com a população. De que maneira então podemos resolver o problema da violência nas comunidades se a polícia é quem representa o Estado. E a polícia não é uma boa administradora de conflitos.
E é claro que as UPPs geraram um sentimento de mais segurança para parte da população, e isso deve ser elogiado. No entanto, eu vejo limites para o programa, sobretudo em relação à forma com a polícia entra em contato com a população. As UPPs representam um outro estágio e uma tentativa de diálogo? Podemos dizer que sim – não temos formas tão acirradas e autoritárias por parte da polícia – como a entrada do caverão nas favelas. Porém, para que o programa dê certo é preciso vencer um preconceito histórico da população da favela com a polícia, e vice-versa. E, muitas vezes, o policial é oriundo da comunidade e, por isso mesmo, trata a população ali com preconceito como forma de se diferenciar.
Lembro que logo que começaram a ser instaladas as UPPs, os juizados especiais criminais se encheram de ações por desacato à autoridade. Ou seja, o policial tinha acabado de se instalar na favela, mandava a população fazer as coisas, mas ela não aceitava, desobedecia. Quer dizer, o policial não tinha uma autoridade legitimada naquele território, e não sei se o programa conseguiu construir isso de fato.
Enfim, as UPPs avançaram um pouco, mas ainda está longe de um modelo em que a polícia é administradora de conflitos, e não apenas autoridade que faz parte do conflito. A polícia quando entra nas comunidades é para acabar com o conflito ou com as pessoas que estão envolvidas com ele. Quer dizer, não é uma administradora de conflito, o resultado é o grande número de mortes, principalmente nas regiões mais pobres.
P. E vemos a polícia atuando ainda com dois pesos e duas medidas – sendo que nas regiões mais pobres ela é muito mais violenta.
R. De fato vemos a polícia atuando de maneiras diferentes no território. Na cidade do Rio de Janeiro a polícia oferece um tipo de tratamento em Copacabana e outro na Baixada Fluminense, no interior de outro jeito. Dentro da corporação os policiais sabem que precisam se adaptar aos contextos. E esse é o maior problema porque é com a população mais pobre que tem preconceito.
Lembro que um pesquisador fez uma tese sobre o Pavão Pavãozinho; e ele entrevistou uma moradora que falou: ‘Eu não quero uma polícia comunitária, eu não quero isso aqui. Eu quero uma polícia igual a que tem lá embaixo, só isso’. Porque é isso na favela tem que ter uma polícia diferente, preparada, porque se não ela chega com preconceito.
Publicado em Entrevistas | Última modificação em 21-08-2014 18:25:44