De que maneira a expansão das plataformas digitais de serviços urbanos, particularmente as de aluguel de curto prazo, afeta a vida dos habitantes das cidades?
De um lado, há quem defenda que essas plataformas estão abrindo novas oportunidades para pequenos e médios proprietários de imóveis, os quais podem auferir rendas que compensam a tendência geral ao declínio dos rendimentos familiares. De um ponto de vista semelhante, sugere-se que elas contribuem para democratizar o turismo, ao pressionar para baixo o preço dos serviços de hospedagem e oferecer uma experiência que equivale a “morar como um habitante local”.
De outro lado, existem muitas críticas sobre as consequências dessa expansão nas condições de vida e de reprodução social nas cidades. Dessa perspectiva, é comum sustentar que o modelo de negócios de plataformas desse tipo, a exemplo da Airbnb, incide na elevação dos preços dos aluguéis em geral, agravando a crise habitacional. Também há argumentos a respeito do impacto sobre os segmentos mais tradicionais do turismo e sobre a tendência de monopolização do setor.
São polêmicas como essas que circulam, cada vez mais, no debate público sobre a vida e a experiência urbana do século XXI.
Considere-se, por exemplo, o título de uma reportagem recente da BBC News Brasil: “As cidades que decidiram banir o Airbnb”. Trata-se de uma reportagem cuja motivação principal foi o anúncio dos planos do prefeito de Barcelona, Jaume Collboni, de proibir, a partir de novembro de 2028, aluguéis de imóveis de curto prazo na cidade.
Conforme esse relato jornalístico, a decisão teria sido tomada para “solucionar a crise de moradia que retirou moradores e trabalhadores do mercado habitacional devido aos altos preços dos imóveis”. Além disso, ressalta-se que o caso de Barcelona não é inédito, uma vez que cidades como Nova York e Santa Mônica, nos Estados Unidos, e Berlim, na Alemanha, já proibiram e/ou impuseram fortes restrições aos aluguéis de curto prazo mediados por plataformas digitais.
Os mecanismos de proibição/regulação das plataformas de aluguel de curto prazo estariam voltados para combater ao menos duas tendências: i) a já mencionada elevação dos custos com moradia; e ii) o agravamento dos efeitos disruptivos do turismo de massa (“overtourism”) na vida local.
O caso de Barcelona é bastante emblemático das tensões e dos conflitos que estão em curso. Em 06 de julho, milhares de pessoas se manifestaram contra o turismo de massa e seus efeitos sobre os moradores da cidade, um dos destinos mais concorridos de milhões de visitantes de todo o mundo. Na ocasião, algumas pessoas chegaram mesmo a disparar pistolas de água na direção dos turistas, alimentando o debate internacional sobre a “turismofobia”.
O título de outra reportagem da BBC News Brasil é igualmente sugestivo: “Nômades digitais e aluguel em dólar: por que moradores estão sendo expulsos de seus bairros na América Latina”. O relato dá destaque, antes de tudo, aos dizeres que podem ser encontrados nos muros de bairros de Medellín, na Colômbia: “Medellín não está à venda. Parem a gentrificação”.
A reportagem utiliza dados da plataforma AllTheRooms, que reúne informações sobre habitações e aluguéis de temporada em todo o mundo, para enfatizar o expressivo aumento de estadias na “modalidade Airbnb” na América Latina. Os mercados mais importantes seriam o brasileiro e o mexicano, representando, aproximadamente, 72% da receita total de aluguel de curto prazo na região. Tudo isso para sugerir que fenômenos como o afluxo de “nômades digitais” estariam aumentando os custos de vida nas principais cidades latino-americanas. Ou seja, os preços do acesso à habitação e de outros bens e serviços estariam sofrendo a influência da chegada de estrangeiros, remunerados em moeda valorizada, que procuram cidades mais baratas, mas com maior qualidade de vida, para morar ou passar longas temporadas.
Enfim, para nós, tudo isso torna ainda mais pertinente – e urgente – a elaboração de uma agenda de pesquisa e de debate público em torno dos impactos socioterritoriais da expansão das plataformas digitais de serviços urbanos. Fenômeno que tem sido problematizado com base em conceitos e expressões tais como “digitalização do espaço urbano” (Lee et. al., 2020), “urbanismo de plataforma” (Grahan, 2020), “urbanização da internet” (Mezzadra, et. al. 2024), dentre outras possibilidades.
Na América Latina, o Brasil é o mercado mais importante das plataformas digitais de aluguel de curto prazo, o que também é verdadeiro para outros tipos de plataformas de serviços urbanos. Esse é o caso, por exemplo, da centralidade do país na estratégia de expansão das plataformas de transporte de passageiros (Uber, 99, Indrive etc.). Sendo assim, é preciso reforçar o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa – teórica, mas também empírica e comparativa – que se ocupe das principais tendências e consequências do processo de digitalização do espaço urbano.
No que se refere às plataformas digitais de serviços urbanos em geral, é necessário antes de mais nada, descrever e analisar as “estratégias espaciais” correspondentes aos “modelos de negócios” de cada uma delas.
O sucesso dessas plataformas, em termos de acumulação de poder e riqueza, diz respeito, acima de tudo, ao monopólio de tecnologias georreferenciadas que permitem o controle, algorítmico e remoto, do território.
E é com base nesse controle que as empresas digitais extraem e capturam valor de uma vasta rede de interações e de formas de cooperação nas cidades, que elas impõem e/ou que já existem fora de seus domínios organizacionais.
Interações e formas de cooperação que são próprias da complexidade da vida urbana, da cidade como “valor de uso complexo”, mas que se convertem no substrato da criação (social) e da apropriação (privada) de valor. Esse é o caso, por exemplo, das conexões entre a informalidade estrutural urbana e a “nova economia digital”. Daí a pertinência da ideia do advento de algo como um “extrativismo urbano” (Duplat, 2017), mediado por plataformas digitais. Em resumo, é preciso compreender como esse extrativismo opera em cada caso, variando conforme os setores, os tipos de plataformas, os recursos e mercados envolvidos etc.
No caso específico das plataformas digitais de aluguel de curto prazo, como a Airbnb, é imprescindível que se ampliem os esforços de investigação dos impactos que elas exercem nas cidades brasileiras. Quer dizer, é preciso realizar, no campo dos estudos urbanos, algo semelhante ao que tem sido feito, pela sociologia e pela economia, em termos de reflexão sobre a digitalização/plataformização do trabalho. Isso porque, ao que tudo indica, essas plataformas estão inaugurando novas tendências e novos dilemas no que tange aos debates sobre a renda da terra urbana e seus nexos com a produção social do espaço.
Ou seja, as plataformas digitais de aluguel de curto prazo estão contribuindo para aumentar os custos com a habitação e outros serviços urbanos? Isso estaria em questão por que os modelos de negócios e as estratégias espaciais dessas plataformas reforçam a mercantilização e a tendência de tratamento da terra e do ambiente construído como ativos financeiros? Como se sabe, já há lançamentos imobiliários, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, cujos produtos são vendidos como uma “oportunidade de investimento”, na forma do subsequente engajamento no setor de aluguéis de curto prazo.
Diante de casos como esse, é possível falar da “digitalização” e/ou da “plataformização” dos mercados imobiliários? Existiria algo como uma “especulação imobiliária digitalizada”? Seu impacto é maior nas pequenas e médias cidades? Ou nas cidades com “vocação turística”? Nessas cidades, em particular, esse processo está agravando a crise socioambiental? Enfim, empresas como a Airbnb estariam realizando o que o automóvel começou e Jane Jacobs profetizou: a morte das cidades como cultura acumulada, autêntica e reproduzida pelos seus moradores?
Por último, defendemos o imperativo de ampliar, especialmente em um ano eleitoral, o debate público sobre a regulação das plataformas digitais que atuam nas aglomerações urbanas brasileiras, a exemplo do que tem sido feito em outros países. Quer dizer, em nossa opinião, quando o que está em jogo é o direito à cidade, não se pode mais fazer abstração dos processos de digitalização do espaço urbano, sobretudo daqueles que exigem a atualização das reflexões sobre os efeitos da especulação imobiliária.
¹ Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. Professor titular do IPPUR/UFRJ e coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles.
² Nelson Diniz. Professor do Departamento de Geografia do Colégio Pedro II e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.
REFERÊNCIAS
DUPLAT, Ana María Vasquez. Extractivismo urbano: debates para una construcción colectiva de las ciudades. Buenos Aires: Ceapi; El Colectivo; 2017.
GRAHAM, Mark. Regulate, replicate and resist – the conjunctural geographies of platform urbanism. Urban Geography, vol. 41, n. 3, p. 453-457, 2020.
LEE, A. et al. Mapping Platform Urbanism: Charting the Nuance of the Platform Pivot. Urban Planning, v. 5, n. 1, p. 116-128, mar/2020.
MEZZADRA, Sandro et. al. Introduction. The Platform Age. In: MEZZADRA, Sandro et. al. Capitalism in the Platform Age. Emerging Assemblages of Labour and Welfare in Urban Spaces. Berlin: Springer, 2024.