Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Coordenador Nacional do Observatório das Metrópoles
Novamente as chuvas assolam as cidades brasileiras e as autoridades invariavelmente alegam as mesmas razões: a combinação de eventos climáticos incomuns e a irracionalidade da população que ocupa áreas de risco e não cuida dos seus resíduos sólidos. No entanto, a razão decorre da lógica de gestão das nossas cidades, onde o planejamento, a regulação e a rotina das ações são substituídos por um padrão de operações por exceção, com organismos públicos fragilizados tentando responder casualmente aos efeitos sobre a população de uma cidade em situação de indefesa permanente. Estamos diante dos resultados de catastrófica gestão urbana.
Utilizando como exemplo o caso de São Paulo, é possível identificar o atual padrão de gestão do urbano: as cidades são organizadas por práticas totalmente à margem da regulação pública, dos planos diretores, das leis de uso e ocupação do solo urbano, dos códigos de construção e de posturas. Um verdadeiro laissez faire impera como fundamento da irracionalidade mencionada pelas autoridades. Irracionalidade que não está presente apenas nos territórios das classes populares, mas também nas residências das elites construídas pela lógica especulativa em áreas ambientalmente vulneráveis. Os territórios dos ricos e dos pobres compõem o mosaico da desordem urbana.
Os fenômenos climáticos, por sua vez, são hoje previstos com a precisão e antecipação que permitiriam a adoção de ações preventivas pelos governos municipais e estaduais que poderiam, senão evitar algumas destas catástrofes, minimizar os efeitos materiais e humanos. No entanto, não se tem um sistema de defesa civil que proteja afetivamente a população.
Os governos municipais e estaduais são hoje comandados por elites que se orientam por uma concepção gerencial, tratando as cidades como se fossem empresas. Na maioria dos casos, esta orientação se materializa na constituição de bolsões de gerência técnica, diretamente vinculados aos chefes do executivo e compostos por pessoas recrutadas fora do setor público.
Este modelo de empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica no abandono e mesmo desvalorização da organização burocrática cuja função é, de um lado, a aplicação dos mecanismos de regulação da produção da cidade, portanto o planejamento do funcionamento e crescimento da cidade. Os salários dos funcionários são aviltados, suas carreiras perdem prestígios, não são capacitados, os cadastros são abandonados e mesmo a base técnica dos órgãos públicos é fragilizada. De outro lado, como ela é também responsável pela provisão dos serviços urbanos básicos, mobiliza recursos e competências de grande utilidade na viabilização da gramática política do clientelismo, do cartorialismo e do corporativismo que sustenta em termos político-eleitoral os projetos de empresariamento urbano comandado pelas novas elites políticas. Recursos e competências desta burocracia são usados como moeda de troca nas transações que dão sustentação política a estas elites modernizantes, na forma de favores, omissões, proteções, cargos, etc.
O clima de catástrofe cria um ambiente que justifica uma reforma urbana: uma espécie de New Deal Urbano, política que concentraria investimento na reforma estrutural das cidades, criando simultaneamente bem-estar coletivo, emprego, renda e crescimento. Isso incluiria amplos e maciços programas de investimento nas várias escalas da drenagem, na habitação social com o aumento da oferta de opções de moradia, na mobilidade urbana com o aumento da oferta de solo utilizável diminuindo o seu preço, em equipamentos coletivos nos bairros de periferia, e muito mais.
O atual micro boom imobiliário fundado na construção de moradias de alto luxo evidência os impactos imediatos que um programa como este pode ter no crescimento econômico. A pequena diminuição no gigantesco contingente de desempregados observada nos últimos meses mostra o potencial do efeito multiplicador de um New Deal Urbano.
Nesse sentido, precisamos também de planejamento urbano e consequentemente de valorização da Administração Pública, fortalecendo o sentido de Serviço Público – realidade hoje menosprezada e atacada, composta por “parasitas” que bloqueiam as supostas virtudes do funcionamento do mercado autorregulado.
O que estamos assistindo no país nesta era de política disruptiva, comandada pela coalizão dos interesses financeiros-extrativistas e da ideologia conservadora-reacionária bolsonarista, é o contrário. Desmontam-se os avanços que ocorreram no país em termos de planejamento e de políticas urbana orientadas pelos princípios da Reforma Urbana, consagrados na Constituição de 1988 e institucionalizados pelo Estatuto das Cidades e pela criação do Ministério das Cidades. Ao mesmo tempo, é desmontado o Programa Minha Casa, Minha Vida que, apesar dos seus defeitos, trazia a promessa de um grande programa de reforma do habitat urbano brasileiro.
Como alerta o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) em dossiê lançado recentemente, assistimos atualmente a um desmonte da política urbana federal, o avanço da austeridade fiscal e do conservadorismo sobre as cidades. A publicação aborda o desmonte da política de promoção do direito à cidade e da reforma urbana sob os seus diversos temas, sinalizando seus impactos sobre as cidades, assim como traz recomendações para reversão desse quadro.