Concebido pelo discurso do “imaginário da revitalização” a partir de modelos como o do Porto de Baltimore (EUA) e Port Vell (Barcelona), o Projeto Porto Maravilha no Rio de Janeiro mostra que, na prática, se aproxima mais de um modelo clássico de renovação urbana. Com a demolição de imóveis, o rompimento com a comunidade local, e o uso de recursos públicos para gerar benefícios a investidores privados. Essas são algumas das conclusões do e-book “Porto Maravilha”, mais novo lançamento do Observatório das Metrópoles.
O Observatório das Metrópoles promove o lançamento do e-book “Porto Maravilha: antecedentes e perspectivas da revitalização da região portuária do Rio de Janeiro” (Editora Letra Capital), do geógrafo Nelson Diniz. O trabalho é resultado da dissertação defendida pelo pesquisador, no segundo semestre de 2013, no IPPUR/UFRJ, sob a orientação do professor Pedro Novaes.
No Prefácio do livro, o professor Orlando Alves dos Santos Jr. afirma que a obra é um convite à reflexão sobre as políticas de revitalização urbana no contexto de difusão do empreendedorismo neoliberal. “Nelson Diniz propõe compreender este projeto à luz da teoria urbana crítica. Assim, debruçando-se sobre o processo de transformação da região portuária e sobre os diferentes projetos de renovação desse espaço, o autor empreende uma análise em torno da construção social do discurso da revitalização das áreas centrais das cidades, no caso em questão, da área portuária da cidade do Rio de Janeiro”, afirma Orlando.
Mas o que fundamenta discursivamente o Porto Maravilha?
Nelson Diniz aponta, no Capítulo 1, que o Projeto Porto Maravilha se baseia em termos da construção social do discurso no “imaginário da revitalização”. Quando o Brasil e o Rio de Janeiro são escolhidos, respectivamente, para sediar a Mundial FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 delineia-se um momento oportuno – aliado à conjuntura de crescimento econômico do país – para realizar o chamado “milagre carioca”do qual emergiu uma coalizão urbana envolvendo os diferentes níveis de governo e os tradicionais e novos atores da economia da cidade. Todos praticando um novo modelo de governança empreendedora a fim de transformar o Rio em uma global city.
O Porto Maravilha se insere nesse processo. O modelo que o fundamenta são experiências internacionais “bem-sucedidas” como de Boston e Baltimore (EUA); Puerto Madero, Buenos Aires; Kop van Zuid, em Roterdã; e especialmente Port Vell, em Barcelona. Nelson Diniz cita no livro o discurso do próprio prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (2011) em que enaltece o modelo de Barcelona:
“Como preparar o Rio para receber o maior evento esportivo do planeta e aproveitar essa oportunidade para transformar as condições de vida dos cariocas? Estamos seguindo à risca o que me disse Pascal Maragal, prefeito de Barcelona à época das Olimpíadas de 1992 e cujo modelo de organização é uma inspiração” (p.77).
Mas quais as diferenças entre revitalização e renovação urbana? Diniz mostra citando Del Rio (1991, 2001, 2010) que a revitalização caracteriza-se, entre outros aspectos, pela conservação do patrimônio, a contextualização, o estímulo aos usos mistos e as formas “flexíveis” de gestão e planejamento. Por sua vez, os princípios de ordem, normatização e funcionalidade caracterizariam as políticas de renovação urbana, assim como o desprezo pelas tradições e particularidades culturais, históricas e ambientais. Tais argumentos fundamentam-se num maniqueísmo que opõe renovação/modernidade e revitalização/pós-modernidade.
“A partir de Boston e Baltimore, a revitalização de regiões portuárias tornou-se um modelo difundido e reproduzido em diversas cidades do mundo. A revitalização urbana contrastaria com as práticas de renovação, de demolição-reconstrução, inspiradas no ideário do movimento modernista”, afirma Nelson.
No caso do Rio de Janeiro, porém, a opção discursiva pela revitalização urbana não eliminou o eventual recurso à demolição-reconstrução e seus efeitos. “No Porto Maravilha, destacam-se a demolição do Elevado da Perimetral e de antigas edificações que abrigam ocupações populares. Apesar das controvérsias sobre a destruição da principal ligação viária das zonas Sul e Norte do Rio de Janeiro, o que dizer da remoção dos moradores das ocupações, além daqueles do Morro da Providência?”, questiona Nelson e conclui:
“Ao analisar na prática o Projeto Porto Maravilha e o seu modo de implementação, fica claro que se aproxima mais de um conceito clássico de renovação urbana caracterizado por romper ligações comunitárias, favorecer a formação de centros de negócios de luxo e por permitir, com a ajuda de recursos públicos, benefícios a investidores e proprietários”.
Percurso histórico: projetos sucessivos de renovação do porto
No Capítulo 2, Nelson Diniz investiga os vários projetos elaborados para o Porto do Rio de Janeiro desde a década de 1980 com o objetivo de demonstrar que o ideário de revitalização da zona portuária é antigo, mas sempre esbarrou nos entraves políticos e conflitos de interesse.
De acordo com o pesquisador, as primeiras propostas de revitalização da região portuária, elaboradas pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e por outros atores da iniciativa privada, surgiram no contexto da crise econômica do país, do estado e da cidade do Rio de Janeiro, na década de 1980. Resistências das autoridades portuárias, dos Governos Municipal e Federal e mobilizações comunitárias pela conservação das características históricas dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, inviabilizaram os projetos.
Já nos anos 1990, às ações da ACRJ e dos órgãos da administração portuária acrescentaram-se aquelas dos Governos Municipal e Federal. “A Lei de Modernização dos Portos, de 1993, estabeleceu as bases jurídicas da revitalização de áreas portuárias no Brasil, implicando em complexas negociações entre as autoridades portuárias, a iniciativa privada e as esferas de governo. As relações entre esses atores manifestaram ora tendências à cooperação, ora conflitos de interesses. No caso do Rio de Janeiro, divergências entre os atores envolvidos comprometeram a realização dos diversos projetos”, explica.
No início dos anos 2000, a elaboração do Porto do Rio: Plano de Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro marcou a retomada dos debates. O livro mostra que pela primeira vez, desde os anos 1980, construíram-se grandes equipamentos urbanos: a Vila Olímpica da Gamboa e a Cidade do Samba. Ao mesmo tempo, controvérsias acerca da instalação de uma filial do Museu Guggenheim no Píer Mauá impediram a continuidade das ações.
Somente no final da década de 2000, e em estreita relação com as propostas que o antecederam, o Projeto Porto Maravilha foi instituído pela Lei Complementar Municipal n. 101, de 23 de novembro de 2009. “Trata-se de uma Operação Urbana Consorciada (OUC), numa área de aproximadamente 5 milhões de metros quadrados. A lei 101/2009 alterou os parâmetros de uso e ocupação do solo da região portuária, estabeleceu intervenções prioritárias de infraestrutura e transporte, assim como mecanismos público-privados de gestão e financiamento”, afirma.
Projeto Porto Maravilha, renovação urbana e gentrificação
O Capítulo 3 traz a descrição do Projeto Porto Maravilha e analisa o seu modo de implementação. Nelson Diniz aponta a expansão da área central da cidade e a produção dos chamados marcos de distinção; além de tendências à gentrificação da região portuária da cidade.
Segundo o autor, em 2010 as moradias de 671 famílias do Morro da Providência foram marcadas para demolição no âmbito do projeto Morar Carioca, programa municipal de urbanização de favelas. “Embora o Morar Carioca não tenha sido objeto das reflexões do meu estudo, pode-se dizer que suas intervenções, assim como a UPP, complementam as do Porto Maravilha. Dentre elas, sobressai a construção de um teleférico conectando a Central do Brasil, na Avenida Presidente Vargas, o Morro da Providência e a Cidade do Samba, o que coincide com os princípios e diretrizes da Lei 101/2009 sobre a expansão da Área Central da cidade”, argumenta.
Diniz afirma que esses projetos (Morar Carioca, UPPs, Porto Maravilha e Porto Olímpico) fazem parte de um projeto maior de inserção do Rio de Janeiro na lista das “global citys” e, também, simbolizam um aparato para receber a comunidade internacional durantes os grandes eventos esportivos.
Sobre o processo de gentrificação, o autor mostra que o discurso da Prefeitura do Rio de Janeiro prevê um adensamento demográfico na região. Sérgio Dias, atual Secretário de Urbanismo da cidade do Rio de Janeiro afirmou em 2010:
“Espera-se que a população atual de 22 mil habitantes, distribuída basicamente em seis bairros vizinhos – Centro, Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Cidade Nova e São Cristóvão –, chegue, numa primeira etapa, a 100 mil pessoas. Como ocorreu em outras cidades que fizeram a reconversão da região portuária, a ideia é ter edificações não apenas residenciais, mas que mesclem habitações com outras funções de cunho comercial, empresarial, cultural etc”.
Porém, no que se refere aos usos residenciais, destacam-se os correspondentes às classes médias. “O projeto da Prefeitura é atrair a classe média e, num segundo momento, as classes populares. O que se verifica até agora é que ações de promoção de moradia de interesse social e de regularização fundiária são residuais, o que coloca em questão a base social do crescimento demográfico esperado para a região portuária”, afirma Diniz e conclui:
“O Porto Maravilha não é simplesmente o resultado de um novo momento do Rio de Janeiro, associado à realização de megaeventos na cidade e à conjuntura política e econômica recente do Brasil. Na verdade, o projeto realiza, sob novas e velhas formas, o que foi transformado em consenso ao longo do debate sobre a revitalização da região portuária. Por último, em que pese ser temerário afirmar desde já a gentrificação da região portuária, o que exige o desenvolvimento de pesquisas posteriores, estão dadas as condições para a reconquista do centro da cidade por setores sociais afluentes. Resta saber se eles realmente virão”.