A edição número 25.2 da Revista de Ciências Sociais Plural apresenta o Dossiê “Teoria Social Urbana e Direito à cidade: um debate interdisciplinar”, organizado pelos professores Lucas Amaral de Oliveira (Universidade Federal de Goiás) e Derek Pardue (Universidade de Aarhus – Dinamarca).
Os/as autores/as que participam deste dossiê partem da suposição de que a cidade condensa encontros, conexões, negociações, conflitos e disposições múltiplas de agenciamento. Nesse sentido, o dossiê centra-se na negociação de tensões sociais e políticas em torno de questões étnicas, sociais e culturais, incluindo modos performativos de ocupação e fluxos. Se seguirmos Siu (2005) e Pennycook (2010), por exemplo, podemos assumir a posição política, analítica e metodológica de dizer que práticas culturais expressivas, como a arte, não apenas possuem valor simbólico em si, como refazem as realidades materiais da vida urbana de forma marcante. Enfatizando a interdependência e contingência da cultura, adotamos a posição de que os processos de “fazer cidade” são instáveis e múltiplos; portanto, emergem do contato híbrido das interações sociais contemporâneas, dos encontros e das convivências, das epistemologias, da diferença cotidiana, que são elementos tão numerosos quanto presentes na vida da cidade.
Como o/a leitor/a terá oportunidade de apreciar, o dossiê tem uma questão metodológica e epistemológica que o orienta, qual seja: refletir sobre uma articulação possível com a cidade que não seja essencializadora, mas sim o exato contrário disso: um esboço dialógico e indutivo – ou seja, da observação à descrição, da etnografia à interpretação –, desprendendo a teoria de presunções normativas sobre “cidade”. Trata-se de examinar um processo em plena ocorrência, analisando a cidade que é vivida, sentida, narrada, negociada, tecida e em constante construção.
Sempre escrevemos de um lugar determinado e imersos em um contexto sócio-político específico. Por isso, querendo ou não, nossa escrita evidencia algo além do tema estudado – e revela muito mais do que nós mesmos. O exemplo de Marielle Franco – assassinada em 14 de março de 2018 por “cavaleiros armados” da cidade ou, como prefere Rita Segato (2014), pela esfera paraestatal de controle da vida – é sintomático destes dias, marcados pela brutalidade extrema travestida de normalidade. E não podemos ignorar algo representativo disso, que foi o salto drástico à direita anunciado nas últimas eleições, a nível federal e estadual, fato que, certamente, terá sérias implicações nas disputas e negociações políticas sobre a produção da cidade brasileira, bem como nos sentidos sobre suas dinâmicas diárias. Para ficar em um exemplo, em setembro de 2018, o Instituto Pólis, via Observatório das Metrópoles, publicou um guia prático para entender o compromisso dos candidatos à presidência com os princípios orientadores do “direito à cidade”, conforme lei federal conhecida como Estatuto da Cidade. Ainda que nenhuma das candidaturas oferecesse uma plataforma inteiramente coerente com o Estatuto, uma delas se destacou negativamente pelo desprezo em relação à lei e pela inversão de seus princípios constitutivos. Dentre os 14 eixos ligados ao “direito à cidade”, o futuro presidente, antes do processo eleitoral, apresentava, em sua proposta de governo, pontos que tangenciavam apenas 3 desses eixos, pautando mais a questão da vigilância social e da repressão biopolítica ao “agir urbano” do que, propriamente, os temas ligados à acessibilidade, à sustentabilidade, à garantia de direitos fundamentais e à democratização de espaços públicos. A avaliação dessas categorias, segundo a análise do Instituto Pólis, mostra que o programa de governo de Jair Bolsonaro para os próximos anos explicita diretrizes antagônicas à ideia de “direito à cidade”. Contudo, neste caso, a negligência não é inócua; e, por isso, não pode ser ignorada. Pelo contrário, ela nos parece proposital, reveladora, nociva. O “direito de ter direitos”, que Hannah Arendt (1989, p. 330) situou como condição necessária para o exercício mínimo da cidadania, periga de tornar-se, cada vez mais, prerrogativa marginalizada. Isso nos leva a deduzir que políticas públicas básicas de inclusão urbana estão sob forte ameaça. Pelo menos, é isso o que vem sendo aclamado na retórica nacionalista e anacrônica que ocupará o posto maior do executivo, especialmente quando ataca minorias sociais e movimentos do campo progressista.
No entanto, ainda que afetados por um derrotismo intelectual momentâneo, precisamos buscar explicações, exemplos e saídas para tal condição. Muitos sujeitos sociais coletivos vêm demonstrando que a resistência não é de hoje e, para além disso, que ela é grande, rebelde, indomável e heterotópica nas frestas das cidades. É isso o que os/as autores/as do dossiê nos informam. Há um exuberante, variado e colorido processo de invenção e reinvenção da cidade e de seus espaços possíveis colocados em prática, todos os dias e obstinadamente, pela aguerrida juventude periférica, em toda a sua abundância identitária e performática. A cultura expressiva marginal e antifascista é potente, rizomática. Existe muita coisa nela que buscará interditar, de maneira radical se necessário, o avanço do conservantismo social, cultural e político. E é nessa produção ressignificada de saberes, corpos, agências, identidades, espaços, bens, projetos, ideias e valores “marginais” que devemos nos amparar para ver mais além da cortina de fumaça imposta por representantes do retrocesso. Os próximos anos serão decisivos para o “direito à cidade”, ideia e realidade que, não é demais salientar, e hoje mais do que nunca, exige proteção intelectual e muito ativismo de todos/as nós. Marielle, presente! Anderson, presente!