Do Mal-estar Urbano ao Acordar das Consciências
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
O Brasil vem vivendo os últimos dias sob a emoção da explosão cívica. A cidade é palco e ator de uma mobilização política histórica, comparável à ocorrida na luta pelas eleições diretas. Na segunda-feira (17/06) pelo menos 240 mil pessoas tomaram as ruas de 11 capitais para protestar contra o aumento das passagens de ônibus. No entanto, o problema da mobilidade serviu mais de estopim que fez eclodir o mal-estar urbano presente na sociedade brasileira, resultado da privatização da cidade e da política. O Observatório das Metrópoles apoia as manifestações populares pacíficas e reafirma a necessidade de debater a política atual de mobilidade urbana do país em busca de modelos efetivamente mais inclusivos, coletivos e democráticos.
Segundo os dados do IBGE, nas 12 principais metrópoles brasileiras, mais de 13 milhões de pessoas se deslocam diariamente entre os municípios. Metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro não suportam mais tantos veículos, poluição, tempo no trânsito e acidentes. O Observatório das Metrópoles tem mostrado que a chamada crise de mobilidade é resultado, sobretudo, da opção pelo transporte individual em detrimento das formas coletivas e da falta de planejamento do poder público. Na última década o que se verificou foi o aumento da frota de veículos, mais tempo no deslocamento casa-trabalho, congestionamentos e, ainda, em parte dos casos a precarização dos serviços e tragédias cotidianas. Tudo isso colocou o tema da mobilidade no centro do debate das políticas públicas nas grandes cidades brasileiras.
É nesse contexto – e diante das manifestações populares que tomaram as ruas do país – que o Observatório divulga suas principais pesquisas relacionadas ao tema da mobilidade urbana, defendendo a ampliação do debate sobre o modelo de cidade que se quer para o Brasil. Será que seremos capazes de aproveitar o momento de virtuosidade econômica para a construção de um legado efetivo para a sociedade brasileira, transformando as cidades em espaços de respeito às diferenças e de democracia efetiva?
TARIFAS DE TRANSPORTE: QUANTO CUSTA NO BRASIL?
Definitivamente, o assunto foi parar nas ruas, pelo grito de descontentamento do povo, afinal, é ele quem mais sofre com os problemas decorrentes da crescente precariedade das condições de deslocamento nas cidades brasileiras. As manifestações pela redução de tarifa em São Paulo – coordenada pelo Movimento Passe Livre – influenciaram outras cidades e o que se viu na última segunda-feira (17/06) foram atos de reivindicação em vários municípios brasileiros, reunindo mais de 240 mil pessoas.
O tema principal das manifestações foi o aumento das tarifas de transporte no Brasil – um dos mais caros do mundo – e, ao mesmo tempo, a precarização e a baixa da qualidade dos serviços. De acordo com o IBGE, na última década as tarifas subiram até 118,36% (ônibus intermunicipais) e 113,21% (ônibus municipais), enquanto o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – índice oficial do Governo Federal para medição das metas inflacionárias) avançou 81,7% no mesmo período. Ou seja, num cenário de alta de inflação o reajuste dos ônibus serviu como detonador da maré de insatisfação que levou a sociedade civil às ruas. O preço é alto, o serviço é ruim e faltam alternativas.
CRISE DE MOBILIDADE E A OPÇÃO PELO TRANSPORTE INDIVIDUAL
O Observatório das Metrópoles vem mostrando que a crise de mobilidade urbana é decorrente, sobretudo, da opção pelo transporte individual em detrimento das formas coletivas e da falta de planejamento do poder público. O artigo “Da Crise da mobilidade ao apagão urbano” mostra que a realidade vivida na maioria das 15 metrópoles brasileiras é de aumento do número de automóveis em 66% entre 2001 e 2010, enquanto a população cresceu por volta de 10,7%. O resultado é que um maior número de pessoas leva mais tempo em seus deslocamentos cotidianos. Uma verdadeira via-crúcis: com o enfrentamento de longas distâncias, engarrafamentos e as constantes panes do sistema público de transporte.
Nas metrópoles temos hoje 3,3 habitantes para cada veículo de passeio, o que corresponde aproximadamente a um veículo para cada domicílio. Algumas delas, porém, apresentam o índice de habitantes/veículos ainda menor. Como são os casos de Curitiba, com 2,2 hab/veiculo, Campinas com 2,3 hab/veículo, Florianópolis e São Paulo, com 2,5 hab/veículo cada uma. Outras metrópoles, sentindo o reflexo do crescimento expressivo no número de automóveis, apresentam o índice bem próximo a essas já mencionadas. Como são os casos de Belo Horizonte, Brasília e Goiânia. Na metrópole mineira o índice de habitantes por veículo caiu de 5,2 para 3,1 entre 2001 e 2010, resultante de um aumento de 88,5% do número de automóveis. Em Brasília, considerando sua região de desenvolvimento integrado, no mesmo período esse aumento foi de 86,6%, enquanto sua população aumento em 20,4%, com isso seu índice de hab/veículo passa de 4,7 para 3,2. Em Goiânia, onde o aumento no número de veículos foi de 81,5%, o índice passou de 4,4 para 3,0 hab/veículo.
Para o coordenador do Observatório das Metrópoles, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, o problema da mobilidade urbana coloca a sociedade brasileira diante de um dilema histórico, já que para sustentar a trajetória virtuosa da última década de crescimento econômico com expansão dos empregos formais, distribuição da renda com a incorporação de amplos segmentos da população historicamente marginalizados ao mercado de bens modernos, será necessário realizar uma verdadeira Reforma Urbana. “Não realizá-la, por outro lado, certamente significará que encontraremos em poucos anos o obstáculo do apagão urbano, cujas consequências serão maiores e mais graves que a diminuição do ritmo de crescimento: a consolidação exacerbada do modelo urbano brasileiro de mal-estar coletivo, em razão do aprofundamento da degradação social, urbanística e ambiental das metrópoles. Na verdade representa um limite efetivo a esse crescimento na medida em que surgem sinais da perda de eficiência econômica das cidades”, explica Ribeiro.
RELATÓRIO FROTA DE AUTOMÓVEIS E MOTOCICLETAS (2001/2011)
O Observatório publicou em 2012 o relatório “Metrópoles em números: Crescimento da frota de automóveis e motocicletas nas metrópoles brasileiras 2001/2011”, organizado pelo pesquisador Juciano Martins Rodrigues a partir das informações fornecidas pelo DENATRAN. O trabalho aponta a explosão do número de automóveis e motocicletas nas metrópoles brasileiras. Entre 2001 e 2011, o número de automóveis nas 12 metrópoles aumentou de 11,5 milhões para 20,5 milhões. Já as motocicletas passaram de 4,5 milhões para 18,3 milhões nestes mesmos dez anos.
Em 2011 o número de automóveis nas metrópoles brasileiras chegou a atingir a marca de 20.525.124 veículos. Este número representa aproximadamente 44% de toda a frota brasileira. Nessas metrópoles, entre 2001 e 2011, houve um aumento de mais de 8,9 milhões de automóveis, aproximadamente 77,8%. Em média, foram adicionados mais de 890 mil veículos por ano.
São Paulo, a metrópole mais populosa, conta com a maior frota, aproximadamente 8,2 milhões, o que equivale a 17,8% de toda a frota nacional. Entre 2001 e 2011 a frota da metrópole paulistana cresceu em 68,7%, o que corresponde a mais de 3,4 milhões em termos absolutos. Embora abaixo do crescimento das metrópoles e do crescimento do Brasil (90%) é uma soma considerável, principalmente se considerarmos a frota já existente em 2001, que era de 4,9 milhões de automóveis.
Apesar de apresentar crescimento relativo menor do que as médias nacional e metropolitana, o Rio de Janeiro registrou um aumento absoluto considerável. Nos dez anos considerados, a frota da metrópole fluminense cresceu 62% ou mais de 1 milhão de automóveis em termos absolutos.
Na Região Integrada de Desenvolvimento Econômico do Distrito Federal (RIDE DF), nucleada pela Capital Federal, a frota de automóveis cresceu em 103,6%, passando de pouco mais de 626 mil veículos em 2001 para mais de 1,2 milhão em 2011. Destes, quase a metade, ou 537.803 automóveis, estão em Brasília. Mas vale destacar, que o entorno do núcleo metropolitano registrou um crescimento da frota na ordem de 220,7%.
Entre as maiores metrópoles Belo Horizonte foi a que registrou o maior crescimento relativo no número de automóveis nos dez anos considerados nesta análise, com um percentual de crescimento superior, inclusive, a média nacional. Em 2001 a frota da metrópole era de 841.060 veículos e, com um aumento de 108,5%, atingiu a marca de 1,7 milhão em 2011. Na metrópole mineira, foram acrescentados em média a cada ano 91.235 veículos.
TEMPO DE DESCOLAMENTO CASA-TRABALHO NO BRASIL (1992-2009)
Uma importante contribuição sobre o tema dos deslocamentos nas grandes cidades é o estudo “Tempo de deslocamento casa-trabalho no Brasil (1992-2009): diferenças entre regiões metropolitanas, níveis de renda e sexo”, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em março de 2013 com o objetivo de analisar o tempo que a população gasta em deslocamentos urbanos casa-trabalho no Brasil no período compreendido entre 1992 e 2009. A análise enfatiza as diferenças encontradas entre as nove maiores regiões metropolitanas (RMs) do país mais o Distrito Federal (DF), além de destacar como estas diferenças variam de acordo com níveis de renda e sexo.
Do estudo destacam-se cinco principais resultados: i) o tempo de deslocamento casa-trabalho, que no ano de 2009 era 31% maior nas RMs de São Paulo e Rio de Janeiro se comparado às demais RMs; ii) os trabalhadores de baixa renda (1o decil de renda) fazem viagens, em média, 20% mais longas do que os mais ricos (10o decil), e 19% dos mais pobres gastam mais de uma hora de viagem contra apenas 11% dos mais ricos; iii) esta diferença de tempo de viagem entre ricos e pobres varia entre as RMs, sendo muito maior em Belo Horizonte, Curitiba e no DF, e quase nula em Salvador, Recife, Fortaleza e Belém; iv) os dados apontam para uma tendência de piora nas condições de transporte urbano desde 1992, aumentando os tempos de deslocamento casa-trabalho; no entanto, esta piora tem sido mais intensa entre as pessoas do 1º decil de renda e especialmente entre a população mais rica (entre 7oe 10o decil), diminuindo as diferenças de tempo de viagem entre faixas de renda no período analisado; e v) a diferença do tempo médio gasto nos deslocamentos casa-trabalho entre homens e mulheres diminuiu consideravelmente desde 1992, com pequenas diferenças ainda presentes nos grupos extremos de renda.
TRAGÉDIAS ANUNCIADAS E A CRISE DA MOBILIDADE URBANA NO BRASIL
Além do aumento da frota de veículos e, consequentemente, do aumento dos congestionamentos e do tempo de deslocamento nas cidades, outra lado da crise de mobilidade refere-se à eficiência, segurança e gestão do transporte público coletivo. E nesse sentido o Brasil também vai mal. No país o número de mortos em acidentes de trânsito não para de subir. Em 2010, registraram-se mais de 42 mil mortes, isto nos leva a ter uma das maiores taxas de mortalidade no trânsito do mundo, são 22,4 mortes por cada 100 mil habitantes. Nos EUA essa mesma taxa está em torno de 10 por 100 mil habitantes. Entre as causas do problema estão a má gestão pública do transporte, a falta de fiscalização e de prioridades que garantam opções seguras e eficientes de mobilidade urbana para a população.
O resultado mais trágico são os incontáveis acidentes e as mortes diárias nas ruas das cidades brasileiras. No artigo “Tragédias anunciadas: a face mais cruel da crise da mobilidade urbana no Brasil”, o pesquisador Juciano Martins Rodrigues mostra que a tragédia envolvendo o ônibus da linha 328, no dia 2 de abril de 2013 no Rio de Janeiro, que caiu do alto de um viaduto na Avenida Brasil matando oito pessoas, é apenas a ponta do problema.
MEGAEVENTOS: REVOLUÇÃO NO TRANSPORTE OU REFORÇO DO MODELO RODOVIARISTA?
Durante as últimas décadas os investimentos em transporte de massa, na cidade do Rio de Janeiro, foram insuficientes e reforçaram o modelo rodoviarista que mostra hoje seus limites – a frota de automóveis saltou de 1.602.170, em 2000, para 2.438.287, em 2011. De fato, a cidade enfrenta a chamada “crise de mobilidade”. No artigo “Megaeventos: revolução no transporte ou reforço do modelo rodoviarista?” Jean Legroux analisa os investimentos do poder público nos preparativos para os megaeventos esportivos e sugere que mesmo se boa parte dos valores aplicados para a Copa no Rio for destinado aos projetos de transporte (86,23%), prevalece ainda um modelo que continua favorecendo o uso do automóvel individual.
Jean Legroux é doutorando do LET (Laboratoire d’Economie des Transports) da Universidade de Lyon e participa como pesquisador do projeto “Metropolização e Megaventos” do INCT Observatório das Metrópoles, reforçando o interesse do instituto brasileiro em avançar nas parcerias internacionais a fim de difundir o tema urbano e o seu papel para o desenvolvimento social.
RIO DE JANEIRO: MOBILIDADE URBANA PRA QUEM?
O poder público tem prometido uma “revolução nos transportes” no Rio de Janeiro, com a construção das vias Transcarioca, Transolímpica e Transoeste, e o metrô Lagoa-Barra (alongamento da Linha 1) – todos ligados à realização da Copa e dos Jogos Olímpicos. Apesar da propaganda oficial, o que se vê cotidianamente é um transporte coletivo caro, precário e insuficiente para a demanda existente. Na cidade que tem o metrô mais caro do Brasil, os cerca de R$ 6 bilhões de recursos para a mobilidade urbana no contexto dos megaeventos serão usados de forma desigual, com uma concentração maciça na Zona Sul e na Barra da Tijuca.
O artigo “Mobilidade urbana pra quem?” integra o dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio”, produzido pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas, em parceria com o Observatório das Metrópoles e outras entidades.
Segundo Orlando dos Santos Júnior, coordenador do projeto “Metropolização e Megaeventos” do Observatório das Metrópoles, essa segunda versão do dossiê reafirma um processo em curso de reestruturação urbana da cidade e de realocação dos pobres para as zonas mais periféricas. “No caso das remoções, esse processo continua sendo marcado pela completa invisibilidade e falta de transparência, pois, até agora, não se sabe quem será removido. Numa perspectiva mais ampla o que podemos afirmar é que os projetos relacionados aos megaeventos são estruturadores, já que apontam para este tríplice-vetor: com a revitalização do centro do Rio, o fortalecimento da centralidade da Zona Sul e a criação de uma centralidade na Barra da Tijuca”, afirma.
Revolução nos transportes?
Na cidade do Rio de Janeiro os recursos previstos para intervenções no campo da mobilidade urbana são da ordem de aproximadamente 6,2 bilhões de reais, incluindo os investimentos para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Até o momento foi inaugurado apenas o BRT Transoeste, que é uma linha de ônibus em sistema BRT que liga o Bairro de Santa Cruz ao Bairro da Barra da Tijuca. Menos de um ano depois da inauguração da linha do BRT, sua infraestrutura já vem apresentando falhas, como mostrou a série de matérias jornalísticas que mostravam danificações no asfalto e queda de revestimento e infiltrações no Túnel da Grota Funda, na zona oeste, por onde passa o BRT.
É preciso lembrar que a rede de transporte e as opções de modais disponíveis (o grau de prioridade dado a cada modal, como ao automóvel, por exemplo) influenciam no padrão de mobilidade urbana que se tem em cada cidade. Também é preciso considerar como o sistema de transporte pode, ou não, promover justiça social. No caso do Rio de Janeiro, constata-se, primeiramente, uma forte concentração espacial dos investimentos em infraestrutura de transportes quando consideramos a escala metropolitana. Isto, por si só, coloca em dúvida se, apesar dos volumes de investimento envolvidos, as intervenções no campo da mobilidade estariam de fato provocando transformações na estrutura urbana extremamente desigual da cidade.
Os investimentos em mobilidade são os principais indutores de reestruturação das cidades, incidindo sobre a dinâmica urbana na perspectiva da (re)valorização de certas áreas (criação e revitalização de centralidades) e na capacidade de acesso da população aos equipamentos de mobilidade e acessibilidade. De fato, a simples provisão de infraestrutura não garante o bem-estar da população e o respeito aos direitos humanos.
A análise dos investimentos na cidade do Rio de Janeiro indica que estes não estão voltados para o atendimento das áreas mais necessitadas e que apresentam os piores indicadores de mobilidade. Mas, pior do que uma infraestrutura mal construída ou mal distribuída pelo território da cidade, constata-se que muitas comunidades têm sido removidas compulsoriamente ou sofrido ameaça de remoções por conta da construção da infraestrutura de transporte par a Copa e as Olimpíadas. Isto, por si só, constitui uma violação ao direito à moradia garantido em diversos tratados internacionais.
É preciso lembrar, ainda, que muitas das ações e projetos previstos correm o risco de não serem executados e pouca ou quase nenhuma infraestrutura para os deslocamentos não motorizados, como a pé ou de bicicleta, estão sendo previstos.