Juciano Rodrigues¹
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro²
A análise da distribuição espacial da população de um país fornece lentes poderosas para se observar os processos sociais e econômicos em curso. À medida que essa distribuição se altera ao longo do tempo é possível entender o fenômeno em si e sua relação com processos mais amplos de transformação na sociedade. Em um país de dimensão continental como o Brasil, a análise da distribuição da população serve ainda como ponto de partida para mapear as demandas por políticas públicas em vários níveis, desde o local, o metropolitano e o macrorregional.
O debate sobre esse importante aspecto do país é renovado a cada Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com a divulgação dos primeiros resultados do Censo 2022 não foi diferente. Voltam à tona duas questões que, há pelos menos duas décadas, norteiam os debates a respeito das tendências de distribuição da população brasileira. A primeira delas diz respeito à trajetória das grandes cidades e metrópoles: o acúmulo de problemas como insegurança pública, falta de oportunidades de emprego, trânsito caótico e transporte público precário estaria provocando seu esvaziamento, já que os moradores desses espaços estariam buscando lugares com melhor “qualidade de vida”? A segunda pergunta trata justamente desses destinos: a gravidade da questão urbana-metropolitana estaria finalmente resolvida com o deslocamento demográfico para as sempre mencionadas, mas nunca definidas, “cidades médias”, que representariam – em uma narrativa bastante difundida pelo senso comum jornalístico – verdadeiros paraísos de prosperidade econômica e social?
Se fossemos nos orientar pelas análises precipitadas e incompletas difundidas na última semana, a única resposta possível para as duas perguntas seria sim. No entanto, é preciso dizer que tais análises, além de apressadas, se baseiam numa compreensão limitada e simplista da organização espacial brasileira. Parte dessa visão equivocada se sustenta numa abordagem que olha para os municípios – a unidade mínima de análise nesse caso – como um recorte isolado e espacialmente autônomo, ignorando as realidades socioespaciais complexas que podem estar inseridos.
Dentro dessa visão, a única característica relevante é o porte populacional, independente do ponto que estão situados no território. Nessa ótica, não importa se são municípios de 100 mil habitantes localizados de forma isolada em uma região de expansão do agronegócio ou se são municípios do mesmo porte inseridos dentro de uma dinâmica metropolitana, onde a prevalência de uma mancha urbana contínua não permite sequer identificar suas fronteiras políticas. Ambos seriam considerados “cidades médias”. No entanto, são dois tipos de municípios semelhantes do ponto de vista populacional, mas diferentes do ponto de vista espacial. Esses últimos, sem dúvida, estão posicionados em uma realidade socioespacial muito mais complexa.
A inclusão de municípios com características espaciais tão distintas em uma mesma categoria gera, por sua vez, conclusões distorcidas sobre as mudanças na distribuição da população brasileira, como temos visto em algumas análises divulgadas pela imprensa com os dados do Censo 2022. Em outras palavras, usar apenas o tamanho populacional é equivocado porque reforça uma narrativa simplista sobre a realidade complexa e dinâmica das cidades no Brasil.
Para uma compreensão adequada da situação da distribuição populacional no país, é fundamental considerar a definição correta dos recortes básicos de análise, ou seja, aqueles nos quais os dados serão representados. Sendo, na maioria das vezes, o município, esse recorte não pode ser caracterizado apenas pelo seu tamanho populacional, mas é preciso levar em consideração sua importância econômica, cultural, política, infraestrutural e – principalmente – por sua posição na rede de cidades. Essa preocupação se torna ainda mais relevante quando se trata de municípios inseridos no território funcional de cada metrópole. Por isso, uma leitura coerente de quais são os espaços efetivamente metropolitanos no país é imprescindível.
A série de estudos Regiões de Influência das Cidades do IBGE (REGIC) tem se consolidado como a principal referência sobre a caracterização da rede urbana brasileira e sobre o fenômeno urbano no país. O quadro fornecido por esse estudo é baseado no estabelecimento das hierarquias e, principalmente, vínculos entre as cidades e suas áreas de influência. A atual edição é de 2020, sendo resultado do aperfeiçoamento primoroso e contínuo dos aportes teóricos e metodológicos de trabalhos desenvolvidos desde a década de 1970.
Trata-se de um esforço empírico que busca avançar na identificação de concentrações urbanas, que se caracterizam não só por suas relações de longa distância e influências sobre outros territórios, mas também pelo compartilhamento de funções públicas de interesse comum (como nas áreas de saneamento e transporte) e pelo intenso fluxo cotidiano de população entre municípios próximos. Em outras palavras, tal estudo identifica as concentrações como territórios funcionais, compreendidos pelo agrupamento de municípios que efetivamente têm relações de interdependência no plano da produção, do mercado de trabalho e da vida coletiva.
Ao mesmo tempo, esses territórios funcionais, ao conformarem áreas de significativa concentração populacional, sobrepõem divisas políticas municipais e aglutinam cidades. A formação desses espaços, por sua vez, encontra suporte conceitual em outro estudo do IBGE, que os classifica como Arranjos Populacionais (IBGE, 2016). Ou seja, trata-se de agrupamentos de municípios também integrados espacialmente por possuírem muitas vezes manchas urbanas contínuas ou deslocamentos frequentes de populações para trabalho e estudo, que os tornam indissociáveis como unidades urbanas.
Com base nos Arranjos Populacionais – neste artigo operacionalizado como Concentrações Urbanas – o IBGE identificou cinco níveis de hierarquia urbana: Metrópole, Capital Regional, Centro Sub-Regional, Centro de Zona e Centro Local. Nos interessa destacar as Concentrações Urbanas identificadas como Metrópole: São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Salvador, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Manaus, Goiânia, Belém, Florianópolis, Vitória e Campinas (Figura 1).
Essas 15 Metrópoles são formadas por 214 municípios onde residem, segundo o Censo de 2022, mais de 70,3 milhões de pessoas, sendo 39 milhões em seus 15 núcleos e 31,3 milhões nos municípios do entorno. O peso populacional desses recortes metropolitanos propriamente ditos por si só já justifica a necessidade de descontruir as conclusões apressadas e consequentemente equivocadas a respeito dos primeiros dados do Censo 2022, e que tomaram conta do noticiário nas últimas semanas.
Desconsiderando esse dado, matéria do Portal G1 (Censo do IBGE: Cidades médias ‘puxam’ crescimento do Brasil), por exemplo, concluiu que as cidades médias estariam “puxando” o crescimento do Brasil. O problema dessa matéria é justamente o fato de incluírem na categoria “cidade média” municípios de população entre 100 mil e 500 mil habitantes sem olhar para suas posições no sistema de cidades, ignorando que muitos deles fazem parte de concentrações urbanas metropolitanas.
Na realidade, 83 municípios dos 278 nessa faixa populacional fazem parte de alguma Concentração Urbana classificada como Metrópole. Recalculando a contribuição dos municípios entre 100 e 500 mil habitantes para o crescimento nacional, esse percentual está longe dos 83% apontados pela matéria. Assim, diferentemente dessa conclusão, a análise da contribuição no crescimento sob a ótica da complexidade da organização territorial brasileira mostra que esse percentual é de apenas 36% e que as metrópoles ainda contribuem com mais de um quarto do crescimento populacional no Brasil, que foi de 12,3 milhões de habitantes entre 2010 e 2022 (Tabela 1).
Ao contrário do que tem sido difundido, e em sintonia com o escrito por Alexandre Queiroz Pereira, professor da Universidade Federal do Ceará e integrante do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles, sobre as metrópoles do Nordeste, as concentrações urbanas mostram resiliência e, em alguns casos, os dados revelam seu fortalecimento em termos populacionais (Primeiros dados do Censo 2022: o fortalecimento das concentrações urbanas). De fato, analisando a taxa de crescimento geométrico anual das 15 metrópoles brasileiras, sete delas apresentam ritmo de crescimento acima da média nacional, sendo que quatro crescem a taxas duas vezes superior a essa média: Brasília (1,16 a.a), Florianópolis (2,47 a.a), Goiânia (1,49 a.a) e Manaus (1,14 a.a). Algumas dessas Metrópoles experimentaram, sim, variações negativas entre os dois Censo, são os casos de Belém (-0,29 a.a), Porto Alegre (-0,05 a.a), Rio de Janeiro (-0,13 a.a) e Salvador (-0,4 a.a).
Nesse cenário, é importante reconhecer que algumas regiões do Brasil podem de fato estar experimentado um êxodo populacional para cidades menores, motivado por diversos fatores como a busca por segurança, infraestrutura mais adequada e menor custo de vida. Entretanto, como vimos, é errôneo generalizar essa tendência para todas as metrópoles do país. Ao analisarmos os dados mais recentes e considerarmos uma variedade de aspectos, torna-se evidente que muitas metrópoles brasileiras estão longe de estar vazias e, na verdade, ainda estão em constante crescimento.
Ao contrário das conclusões produzidas com os primeiros resultados do Censo 2022 e difundidas pela imprensa, uma análise mais cuidadosa e coerente com essa realidade demonstra, além da resiliência das metrópoles, com o crescimento de algumas delas acima da média nacional, um quadro diferente daquele que transmite uma ideia pouco fundamentada de que as pessoas estão migrando desenfreadamente para cidades de menor porte. Aliás, análises sobre migração interna no país só serão possíveis quando o IBGE divulgar dados detalhados da coleta, os chamados microdados da amostra.
Portanto, ao analisar a distribuição da população brasileira à luz da complexidade da rede urbana e do conceito de concentração urbana, podemos imaginar que esses espaços tendem a continuar exercendo um papel central na dinâmica do país. São nesses centros urbanos que se encontram os principais polos econômicos, instituições de ensino e pesquisa, serviços de saúde de alta qualidade, além de abrigarem eventos culturais e esportivos de relevância nacional e internacional. Essa centralidade nas esferas econômica, social e cultural confere às metrópoles uma atratividade constante, contrapondo a ideia de esvaziamento populacional. A título de exemplo, mais do que a população, as 15 metrópoles concentram 44,9% do PIB nacional e 37,7% do valor adicionado da Indústria, segundo dados de 2020.
Ao mesmo tempo, não se trata de desconsiderar o crescimento populacional de áreas no interior do Brasil, mas sem esquecer que as metrópoles ainda funcionam como centros econômicos, políticos e culturais, concentrando uma série de oportunidades de emprego, negócios e desenvolvimento profissional. Trata-se também de considerar que esses são espaços em constante transformação social e demográfica. São lugares onde os padrões de moradia têm se modificado, com maior verticalização e densificação urbana, mas também com a dispersão das moradias que transborda os limites dos municípios. Dessa forma, uma possível intensificação do fenômeno migratório para cidades menores não invalida a importância e a vitalidade das grandes cidades, que continuam a atrair pessoas em busca de oportunidades econômicas, serviços especializados e, também, qualidade de vida.
De fato, estamos falando de um contexto muito diferente de quando o país experimentou processos de migração em massa: do campo para a cidade; do norte e do nordeste para as grandes cidades do sudeste; e de várias partes do país em direção à fronteira agrícola do centro-oeste. No entanto, é essencial analisar com cautela e criticidade os discursos sobre o esvaziamento das metrópoles, a fim de compreender a complexidade dos fenômenos urbanos e promover um debate mais embasado sobre o futuro das cidades brasileiras.
Nesse contexto, reforçamos mais uma vez que o ponto de partida é observar a distribuição da população brasileira – e as mudanças ocorridas em comparação ao Censo 2010 – sob a ótica da organização complexa do território brasileiro, em que essas Metrópoles ocupam a posição mais elevada na hierarquia de cidades. Colocar essa configuração em perspectiva ajuda não só a compreender melhor os processos com os quais esse fenômeno está relacionado, mas significa também considerar um aspecto fundamental para entender os problemas brasileiros e para formular qualquer política pública na escala nacional – considerando que estes são pontos do território capazes de influenciar todas as cidades no país, formando grandes regiões de influência direta.
Em resumo, as conclusões sobre os fenômenos que acontecem nos limites dos municípios não podem ser analisadas desconsiderando sua posição na rede de cidades e, em última instância, sua relação com seus vizinhos. No conjunto de municípios que compõem as concentrações urbanas metropolitanas, em muitos aspectos, os limites político-administrativos são apenas imaginários. Na realidade cotidiana, não constituem nenhuma barreira para que milhões de pessoas circulem em busca das oportunidades urbanas disponíveis em cada um deles, especialmente em seus núcleos, para onde conflui um fluxo de milhares de pessoas todos os dias para trabalhar e estudar. Por fim, a maioria das Metrópoles ainda cresce mais do que o país. Esse é um fato que não pode ser desconsiderado e, além disso, reafirma a centralidade da dimensão metropolitana na questão social brasileira. Reconhecê-las como espaços de vida comum é o primeiro passo para o desenho – urgente – de soluções para os impasses políticos que impedem o desenvolvimento desses territórios.
¹ Professor. Doutor em Urbanismo (PROURB/UFRJ). Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais (ENCE/IBGE). Pesquisador do Núcleo Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e integrante do Comitê Gestor do INCT Observatório das Metrópoles (CNPq/FAPERJ).
² Professor-Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR/UFRJ e Coordenador do INCT Observatório das Metrópoles (CNPq/FAPERJ).