Vista aérea de Vila dos Atletas, que será transformada em condomínio residencial de luxo: habitação social não está nos planos do legado olímpico na Barra da Tijuca (RJ).
Na contramão do debate que procura instituir zonas de interesse de habitação social no Porto do Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca, que também sediará grande parte das instalações olímpicas para 2016, quer se consolidar como o bairro exclusivo da elite. Pelo menos no que depender de Carlos Carvalho, único acionista da empreiteira Carvalho Hosken, em entrevista à BBC Brasil da última segunda-feira 10 de agosto. Detentora de mais de 10 milhões de metros quadrados de terra livre naquela região, o consórcio formado pela Carvalho Hosken, Odebrecht e Andrade Gutierrez tem expressiva participação nas obras do Parque Olímpico.
Tida como fronteira da expansão urbana carioca a partir dos anos 1980, a Barra da Tijuca tornou-se uma importante centralidade nas últimas duas décadas. Considerada também “o novo Centro carioca”, tal fato, por si só, já justificaria a necessidade de se destinar áreas de habitação de interesse social no bairro. Seria uma forma de maior agregação social em área bem infraestruturada, contribuindo também positivamente para o mercado de trabalho e economia local.
No entanto, as investidas da Prefeitura têm convergido para outras estratégias. Uma delas é a implantação de corredores de ônibus expressos (como o Bus Rapid Transit –BRT), que prometem facilitar o deslocamento de trabalhadores entre a periferia e a Barra. Tal investimento justificaria às empreiteiras manter a produção de unidades habitacionais locais para o mercado voltado às classes mais altas, alternativa sem dúvida mais rentável a elas, mas que segue reproduzindo a lógica de segregação territorial nas metrópoles.
Esse é o caso da Carvalho Hosken. Proprietária de terras naquele local desde os anos 1970, quando a região da Baixada de Jacarepaguá ainda era um grande vazio urbano, a área contígua ao parque onde está sendo construída a Vila dos Atletas terá todos os seus edifícios convertidos em empreendimentos imobiliários de alto padrão. Assim que o Comitê Olímpico Internacional (COI) liberar as acomodações após os Jogos, os planos da empresa é que as obras de readequação dos imóveis sejam iniciadas até 2018.
Questionado sobre a necessidade de moradia popular no Rio de Janeiro a exemplo de Londres, cuja hospedagem dos atletas deu lugar a habitações de interesse social, Carlos Carvalho foi categórico: “Há muitos bairros que agasalham pessoas com poder aquisitivo mais modesto”. Em depoimento ao The Guardian, alegou que a Barra da Tijuca é um local destinado “à elite e ao bom gosto”.
Sobre a Vila Autódromo, comunidade em vias de remoção junto a um dos terrenos recém-adquiridos recentemente pela Carvalho Hosken por R$ 1 bilhão, Carvalho disse não estar envolvido no caso por tratar-se de um “problema político”.
Por outro lado, defende que a área em questão é privilegiada e que está recebendo toda sorte de infraestrutura para obter um “desenvolvimento urbano ordenado”. Na sua perspectiva, a manutenção de uma favela (no caso, a Vila Autódromo) naquele espaço vai de encontro a esse objetivo:
– Ali tem muita área que não pode ser habitada, e tudo depende de como você organiza. Você só não consegue organizar com favela, até porque você não pode pensar em tirar um favelado de onde ele vive, do habitat dele, para que ele venha a pagar aluguel e condomínio. Se ele não for preparado e se não houver um apoio correto para ensiná-lo sobre o seu novo habitat, o plano realmente não vai poder dar certo – afirmou Carlos Carvalho ao repórter Jefferson Puff, da BBC Brasil.
Enquanto o Rio de Janeiro expande a sua fronteira urbana em meio a conflitos sociais e interesses particulares, a cidade de San Francisco, na costa oeste estadunidense, evidencia a problemática de uma cidade que já não tem mais para onde se expandir.
Em reportagem assinada por Raul Juste Lores à Folha de S. Paulo do último domingo, 9 de agosto de 2015, mostrou-se o panorama contemporâneo de San Francisco nesse ponto de vista. O crescimento populacional e econômico local já não acompanha a estrutura de cidade reproduzida por San Francisco, protegida por leis que inibem a construção de novos edifícios, sobretudo residenciais.
Mission District, em San Francisco: tradicional bairro de imigrantes latinos é alvo de gentrificação por conta do aumento de população de alta renda na cidade (Reprodução: Street Advisor)
Localizada próxima ao Vale do Silício, que despontou nos últimos anos como grande celeiro de empresas poderosas, tais como a Apple, Google, Facebook, Cisco, entre outras, San Francisco tem hoje o aluguel médio mais caro dos Estados Unidos, ultrapassando Nova York.
A chegada de trabalhadores financeiramente bem-sucedidos se depara com a insuficiência de unidades habitacionais para atender a esse novo contingente populacional. Segundo números levantados pela Folha, San Francisco cresce a uma taxa de 12 mil habitantes por ano, embora apenas 1.500 unidades residenciais novas cheguem ao mercado no mesmo tempo.
Esse cenário vem incitando processos de gentrificação em diferentes bairros são-franciscanos, onde as disputas territoriais por lá são múltiplas. Percebe-se tanto a “invasão” de techies – como são chamados os trabalhadores afluentes do Vale do Silício – aos bairros tradicionalmente de imigrantes, como a destinação de terrenos em bairros nobres para implantação parcial de moradia popular. Noe Valley, antigo distrito da “contracultura” e do movimento hippie, por exemplo, está sendo convertido em local de residência de magnatas digitais, como Mark Zuckerberg, CEO do Facebook. Nesse sentido, pode-se inferir que esses movimentos também estejam revertendo identidades culturais e socioespaciais naquela cidade.
As manifestações sociais, no entanto, não mostram timidez mesmo diante da resistência das forças conservadoras. Enquanto eventos promovidos por ONGs locais refletem sobre alternativas de moradias em San Francisco, o debate sobre a ausência de planejamento e fiscalização, ou até mesmo de conivência do poder público com o mercado imobiliário, chega às urnas em forma de plebiscito.
O próximo, que ocorrerá em novembro deste ano, pretende institucionalizar que todo e qualquer terreno público vendido para um empreendimento imobiliário tenha pelo menos 33% de suas unidades reservadas à moradia econômica. A proposta transgride a concepção de que deva existir áreas pré-determinadas para esse fim, ampliando a função social da cidade para todos os bairros independentemente de sua renda per capita.
De acordo com a Folha, dos 11 vereadores em exercício político atualmente em San Francisco, apenas 4 concordam com a medida. Entretanto, a opinião pública a ser verificada no final deste ano pode ser decisiva – ou, pelo menos, fortalecedora – para o importante debate que procura elucidar os rumos de uma fronteira urbana invisível.
No Rio de Janeiro, os manifestos seguem em igual proporção, a exemplo do movimento a favor da Vila Autódromo. Mas há, nesse caso, o diferencial de que existe um considerável espaço livre na Barra da Tijuca cuja ocupação parece estar direcionada às classes sociais elevadas através do legado olímpico. Com a preponderância dos interesses comerciais nesse enredo, a necessidade de amplificar o número de moradias sociais em áreas bem localizadas acaba sendo preterida.
Assim, ambas cidades evidenciam casos de deficit habitacional entremeados por disputas territoriais que, cada qual com seu contexto, evidenciam seus próprios conflitos e particularidades.
* por Pedro Paulo Bastos – pesquisador do Observatório das Metrópoles (Rio de Janeiro)