Discurso higienista e a ordenação do espaço urbano em Fortaleza
A professora Maria Clélia Lustosa Costa, Universidade Federal do Ceará/INCT Observatório das Metrópoles, analisa em “O discurso higienista e a ordenação do espaço urbano em Fortaleza”, tese de doutorado defendida na Université Sorbonne Nouvelle/Paris III, as transformações do espaço urbano ocorridas a partir da metade do século XIX na cidade de Fortaleza mediante o discurso médico-higienista. Segundo Clélia, a Geografia contribuiu para compreender o papel das ideias e do impacto das mudanças de mentalidade para a geração de novas configurações territoriais e paisagens geográficas, sendo que a difusão de teorias médicas teve efeitos significativos na ordenação das cidades brasileiras.
A tese “O discurso higienista e a ordenação do espaço urbano em Fortaleza” é mais um produto da rede nacional do INCT Observatório das Metrópoles. A professora Maria Clélia Lustosa Costa (UFC) defendeu o trabalho no último mês de maio em Paris, sob a orientação de Hervé Théry (CNRS-Paris 3).
A seguir parte da Apresentação da professora Maria Clélia durante a defesa na Université Sorbonne Nouvelle.
Apresentação | Maria Clélia Lustosa Costa
No doutorado, fui buscar a Fortaleza, em seu momento fundador. Eu quis entender como essa cidade, capital do Ceará, estado do Nordeste Brasileiro, situado em região de clima semiárido, sujeito a grandes períodos de estiagem, lidara com as consequências que mais lhe atingiam naqueles períodos: o imenso fluxo migratório de gente pauperizada pela intempérie e o cortejo de doenças que traziam consigo ou que adquiriam depois de precariamente abrigados na capital.
A secas foi elemento fundamental para a configuração urbana de Fortaleza. Os recursos recebidos pela administração da província eram direcionados para construção de obras públicas, utilizando a mão de obra do migrante. As secas eram, ao longo do século XIX e boa parte do XX, quase sempre acompanhados de epidemias. Doenças que dizimavam a população que migrava do sertão para o litoral, indo buscar socorro na, comparativamente rica capital do Estado. Acabavam por serem abrigados em condições insalubres, pois a cidade não tinha infraestrutura para receber tamanho acréscimo populacional. E, algumas vezes a população se multiplicava por cinco. Esta população de retirantes, com “hábitos rústicos e incivilizados”, tinha que ser alojada, alimentada, vacinada e urbanizada e afastada da área central para evitar a disseminação das epidemias.
No século XIX, com base no discurso médico, houve uma mudança de mentalidade, uma nova percepção da natureza, da cidade, uma alteração na representação da doença e da saúde, em função das teorias médicas dominantes na Europa. A cidade foi considerada a principal fonte de doenças físicas e morais, portanto um espaço a medicalizar e que deveria passar por grandes cirurgias urbanas. O higienismo que se propõe intervir no espaço é usado como bandeira política e social. Há uma transfiguração da teoria higienista em uma concepção de higienismo como ideologia. Este pensamento médico-higienista interferiu nas práticas médicas e nas práticas urbanas na Europa, mas ao ser transladado para um país tropical, passou por alterações. O marco foi a chegada da família real no Brasil, que obrigou a capital a se civilizar, europeizar, ocidentalizar, higienizar para receber a corte portuguesa. Estas ideias e práticas se difundem pelo Brasil, país de grande dimensão e diversidade natural e cultural.
Fortaleza foi uma das cidades onde as então modernas ideias higienistas do século XIX foram aplicadas. O pensamento médico europeu dominante foi absorvido e adotado nas configurações e reconfigurações de seu espaço urbano e do modo de vida de seus habitantes.
Ao longo de sua história, a cidade passou por muitas intervenções baseadas em diferentes paradigmas. A cidade foi sendo disciplinada desde a chegada do primeiro arruador, em 1800. Em seguida, vieram os engenheiros, Paulet, Herbster, que elaboraram plantas orientando o sentido em que devia se dar sua expansão. O padrão adotado foi o do traçado de um tabuleiro de xadrez. Desde 1835, leis e códigos de posturas, fundamentados em tratados de higiene pública, definiram não só como deveriam ser as edificações, mas também qual deveriam ser os hábitos de higiene, alimentação e lazer dos moradores dessa Fortaleza.
Os ambientes doentios, pântanos e alagados foram aterrados, as edificações insalubre afastadas das áreas habitadas e situadas a sotavento da cidade: os cemitérios, hospitais, prisões, etc. Expulsam-se também para a periferia, os abarracamentos, que aglomeravam os migrantes. A recomendação dominante era fazer circular o ar, a água, os dejetos, os esgotos. Tudo que estivesse parado, estagnado era doentio, produtor de miasmas. Ruas alargadas, grandes bulevares construídos, praças e parques com fontes com água circulando embelezaram a cidade. E depois de anos de luta as redes de água e esgoto foram implantadas (1924). Primeiro, a intervenção foi no espaço das ruas, nos espaços públicos, os espaços coletivos. Posteriormente os espaços privados. Edificações são normatizadas nos códigos de posturas que determinam a altura do teto, o material de construção, o tipo de piso, a quantidade e o tamanho de portas e janelas.
Século XIX, foi um século do princípio das políticas sociais, da higienização e disciplinamento da sociedade e dos espaços urbanos. Século das exposições internacionais, mostrando o progresso tecnológico no mundo. E paralelamente a aplicação da máquina a vapor aos meios de transportes acelera não só a circulação de mercadorias, mas também a disseminação das doenças. Ocorrem também as conferências internacionais de higiene pública.
No século XX, os problemas urbanos e de saúde pública perduram, mas com uma nova roupagem. Diante da releitura do papel da natureza, temos uma revisão dos debates da relação sociedade e meio, sobre o meio ambiente. A preocupação com o sistema ambiental esteve presente na elaboração da “Enciclopédia de Higiene e Medicina Pública” do Dr. Jules Rochard (1892), verdadeiro tratado de Geografia Médica. Nos anos 1940, na obra do geógrafo francês Max Sorre, Os Fundamen¬tos de Geografia Humana – Ensaio de uma Ecologia do Homem, fica ainda mais evidente a associação do discurso médico-higiênico com o discurso eco¬lógico. Sorre ressalta a importância de conhecer os aspectos naturais (do meio ambiente) para melhor analisar os problemas sociais, principalmente os relacionados à saúde, articulando a Geografia Mé¬dica com a Ecologia do Homem.
Se, no final do século XIX, foram organizadas Conferências Internacionais de Higiene, visando o controle das epidemias que desconheciam as fronteiras políticas dos países, dizimavam a população e prejudicavam o comércio internacional, no final do século XX, aquelas conferências foram substituídas pelas Conferências Internacionais sobre a Questão Ambiental (Estocolmo, 1972 e Rio de Janeiro, 1992). A associação dos problemas urbanos com os problemas de saúde, nestes tempos em que a poluição entrou na ordem do dia, atualiza esse debate ao trazer para a cena principal o discurso ecológico que pensa a saúde do homem a partir da saúde da natureza. Agora são as questões ambientais que também desconhecem fronteiras, ameaçam a es¬pécie humana e exigem o estabelecimento de políti¬cas e normas internacionais. O discurso da Ecologia penetrou os mais variados espaços e perpassa quase todas as áreas científicas, norteando as políticas de desenvolvimento econômico. Assistimos, assim, à implantação de outro paradigma que vai adquirindo o poder de orientar políticas públicas urbanas. O desenvolvimento sustentável direciona programas sociais e econômicos e uto¬pias na sociedade capitalista desde a década de 1970.