“Em relação aos direitos humanos, o Brasil vive um período de contradições. De um lado, temos avanços como o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social; do outro, verifica-se uma nova rodada de mercantilização das cidades. O projeto da cidade-mercado subordina o Estado e os direitos humanos aos interesses econômicos”. A opinião é do professor do IPPUR/UFRJ, Orlando dos Santos Júnior. Durante dois anos (2010-2011), ele foi relator do Direito à Cidade da Plataforma Dhesca Brasil e testemunhou as ações de despejo, as remoções e os diversos conflitos fundiários urbanos no país.
Orlando dos Santos Júnior é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles. Em 2010, ele assumiu o cargo de relator especial da Relatoria do Direito Humano à Cidade, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil). Sua função: receber e recolher denúncias de violações dos direitos humanos à cidade e encaminhá-las aos órgãos competentes; realizar as chamas “missões” in loco de investigação para verificar as situações concreta de violações dos direitos em questão e buscar facilitar a identificação de mecanismos administrativos, políticos e legais capazes de remediar as mesmas de violação dos direitos humanos.
Durante dois anos (2010-2011), Orlando realizou missões em vários estados brasileiros, a fim de monitorar e verificar as denúncias de violações do direito à cidade no País. Foram diversos casos investigados no Rio de Janeiro (processos de remoção devido às obras de preparativo para os megaeventos esportivos); em São Paulo (processos de remoção devido a grandes empreendimentos urbanos – caso do Rodoanel); Piauí – ações de despejo e desapropriação; Maranhão – Comunidade Terra Sol – processo de remoção. Além disso, o relator dialogou com os inúmeros movimentos populares que lutam pela reforma urbana, especialmente o Fórum Nacional de Reforma Urbana. E também participou das reuniões do Conselho das Cidades, Ministério das Cidades – sempre atuando em prol da luta pela reforma urbana e a função social da propriedade.
Articulação com os movimentos populares
Para Donizete Fernandes de Oliveira, da coordenação da União Nacional de Moradia Popular (UNMP) e da coordenação do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), a Relatoria do Direito à Cidade teve um contribuição muito importante, já que abriu espaços para a participação popular. “O diálogo do relator Orlando dos Santos Júnior foi muito próximo do Fórum Nacional de Reforma Urbana e dos movimentos populares; ou seja, num período importante de muitas obras relativas aos processos dos megaeventos esportivos, o FNRU e entidades filiadas contaram com o apoio permanente da Plataforma Dhesca e da Relatoria do Direito à Cidade. Nesse contexto de megaeventos e grandes investimentos, o Orlando Júnior pegou a Relatoria e monitorou todas essas transformações urbanas; mas eram obras sem a participação popular. A Relatoria, nesse sentido, serviu como instrumento para nos dar voz e permitir que os movimentos sociais pudessem participar”, afirma.
Dentre as missões de destaque da Relatoria do período, Donizete cita os casos das remoções forçadas. “A Relatoria do Direito à Cidade produziu um relatório importante sobre as remoções no Rio de Janeiro, incluindo aí a luta da Vila Autódromo. No caso de São Paulo, o Itaquerão foi outro exemplo de violação de direitos à cidade e direitos humanos”.
Direito à cidade e grupos vulneráveis
No primeiro semestre de 2012, Orlando dos Santos Júnior terminou o seu mandato na Relatoria do Direito à Cidade da Plataforma Dhesca Brasil, passando o cargo para o professor da Universidade Federal do Paraná (UFP) e pesquisador do núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, Leandro Franklin Gorsdorf. Com mestrado em Direito pela UFP, ele é conselheiro da entidade de direitos humanos – Terra de Direitos, e tem experiência na área atuando nos seguintes temas: direitos humanos, direito urbanístico e direito à arte.
Ao assumir o cargo na Relatoria do Direito à Cidade, Leandro Franklin explica que as missões continuarão dando enfoque à luta pela reforma urbana, mas também irão integrar o direito à cidade às questões dos direitos humanos de grupos vulneráveis (mulheres, idosos, população de rua, crianças e adolescentes). “Também vou relacionar o direito à cidade com outros contextos, como o da política pública na área da segurança por exemplo; ou seja, como o direito à cidade está sendo contemplado numa política pública de segurança pensando nos direitos de quem mora na cidade. Essa é um pouco a tônica que pretendo dar na Relatoria”, afirma.
Na área da reforma urbana, o novo relator explica que vai discutir a questão da habitação em termos de políticas nacionais. “O PAC será avaliado e monitorado. As missões da relatoria irão incorporar esses temas na sua agenda. Também queremos fazer ações preventivas. Por exemplo, participei como relator de um projeto de humanização no bairro Dois de Julho em Salvador. O projeto, no entanto, tinha uma lógica de não participação (participação não democrática), mais uma ideia de higienização e um projeto urbanístico que garantiria os objetivos privados, e não os objetivos públicos. A Relatoria participou, deu suporte e a prefeitura voltou atrás. Fiz uma visita a toda comunidade, participei da audiência pública e indiquei algumas recomendações gerais sobre o projeto, mostrando a lógica e dando suporte à comunidade”, comenta.
Leandro Franklin afirma ainda que trabalhar com o direito à cidade é lutar pelos princípios da reforma urbana, estabelecidos legalmente e expresso nas bandeiras dos movimentos populares. “Os princípios estão lá no Capítulo I, Art. 2º, do Estatuto da Cidade. São eles: garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; gestão democrática por meio da participação da população; oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; entre outros”.
Entrevista: Orlando dos Santos Júnior
Em entrevista para o Observatório das Metrópoles, Orlando dos Santos Júnior comenta sobre as principais ações durante o seu mandato na Relatoria do Direito Humano à Cidade da Plataforma Dhesca; cita o caso de Pinheirinho (interior de São Paulo), que foi, segundo ele, um dos mais emblemáticos na violação dos direitos humanos – “em Pinheirinho, o estado foi o agressor”. E também analisa o contexto atual brasileiro: se de um lado, o Brasil vê o fortalecimento da sua economia, o interesse dos investidores estrangeiros e dos grandes projetos urbanos (incluindo megaeventos); do outro, temos a violação dos direitos humanos, o Estado se subordinando aos interesses econômicos. É o confronto entre dois projetos de desenvolvimento urbano: o da cidade-mercado e o da cidade de direito. Leia a entrevista abaixo.
– No período em que foi relator do Direito à Cidade da Plataforma Dhesca Brasil (2010-2011), a tua proposta era atuar na luta pela reforma urbana, visando o cumprimento da função social da cidade e da propriedade. Quais foram as principais ações desse período?
Orlando Júnior: A Relatoria do Direito à Cidade atua por meio das missões. Nesse sentido, foram realizadas missões relativas aos temas que consideramos estratégico desse período, como os megaeventos esportivos no Rio de Janeiro e os impactos de grandes projetos urbanos no caso de São Paulo; além disso, atuamos na parceria com o Fórum Nacional de Reforma Urbana na perspectiva da promoção social da propriedade – que é uma bandeira do Fórum. Tivemos uma atuação muito forte no GT Conflitos, no âmbito no Conselho das Cidades. E isso foi muito importante porque trabalhamos na perspectiva dos conflitos urbanos, relacionados especialmente com os conflitos fundiários.
Nesse período, a Relatoria do Direito à Cidade teve uma vitória muito importante. Foi aprovada uma Resolução do Conselho Nacional das Cidades sobre os conflitos urbanos, casos de remoção forçada em conflitos fundiários urbanos. Essa resolução foi usada em muitas das missões que fizemos em São Paulo, Piauí, Rio de Janeiro, São Luís do Maranhão. No caso do Maranhão, existe a proposta de criação de uma Relatoria local, que é algo inédito já que a Plataforma Dhesca trabalha com relatorias nacionais. Isso é uma vitória bem importante.
– No caso das missões no Rio de Janeiro, cidade-sede da Copa e cidade olímpica, o que foi verificado em termos de violação do direito à cidade? Como tem sido o processo de remoções das famílias para as obras dos megaeventos?
Orlando Júnior: No caso do Rio de Janeiro, as remoções tal como estão acontecendo na cidade, sob o ponto de vista do direito à moradia, caracterizam-se pela violação desse direito em vários aspectos. Primeiro, as remoções, por exemplo, não estão sendo acompanhadas de debates com as famílias que estão sendo atingidas como determina o Estatuto das Cidades. Ou seja, as obras de intervenção urbana estão sendo implementadas sem o mínimo debate e participação com as comunidades afetadas. Em segundo lugar, as remoções no Rio não respeitam direitos fundamentais do próprio processo civil – acompanhamos casos de determinação de despejo em 24 horas. E por último, o poder público não tem respeitado o direito da moradia propriamente dito, ou seja, o direito de uma moradia digna cujo conceito não se refere apenas a ter quatro paredes, mas também garantir condições dignas de reprodução social.
O que percebemos no caso do Rio de Janeiro é um processo de remoção sem o respeito aos direitos. Se esse processo fosse construído com o debate e a decisão tomada pelas famílias, seria correto. Mas o que vimos foi a transferência massiva de famílias de classes populares para áreas distantes. O que caracteriza um claro processo de relocalização dos pobres no Rio de Janeiro.
– E São Paulo, o que foi verificado nas cidades com as grandes obras urbanas?
Orlando Júnior: As obras urbanas em São Paulo têm outra magnitude. Casos como do Rodoanel, evidenciou também o processo de relocalização dos pobres na cidade, com a incorporação das áreas onde viviam as famílias pobres pelo mercado imobiliário.
– E o caso de Pinheirinho? A Relatoria do Direito à Cidade se manifestou, à época, com uma carta aberta endereçada ao Ministério da Justiça e outros órgãos do poder público?
Orlando Júnior: O caso de Pinheirinho é um dos mais graves. A nossa Relatoria não conseguiu ir ao local, mas se manifestou publicamente sobre a ação do Estado de São Paulo. Quer dizer, o caso é um dos mais graves porque o estado ali é o agressor. Se em outros casos, o estado viola direitos, ele o faz por meio dos mecanismos institucionais, como o Poder Judiciário e a ordem de despejo – mecanismos mais sutis e legitimados, de alguma forma, pelas instituições. Em Pinheirinho, o que vimos foi o estado agindo com a face do agressor, um estado militarizado, um estado de guerra que tratou aquela população como inimiga de guerra.
A violência que caracterizou esse episódio torna, infelizmente, Pinheirinho emblemático e mostra que o estado que deveria defender os direitos humanos, a Constituição Federal etc, não cumpre seu papel. Pinheirinho desmascara a face de um estado agressor, um estado de exceção que defende os interesses econômicos acima dos interesses sociais, que coloca a propriedade acima da sua função social. Enfim, um estado violador da Constituição Federal. O episódio mostra o poder público indo contra a sua função central que é de defender os direitos humanos essenciais. Por isso fizemos a denúncia.
Leia: Direito à Moradia – Relatoria Dhesca denuncia violação dos direitos humanos em Pinheirinho
– A Relatoria fez várias denúncias de violações do direito à cidade e de violações dos direitos humanos? Na tua opinião, o que tem marcado esse período no Brasil no tocante aos direitos?
Orlando Júnior: O que tem marcado o País em relação aos direitos humanos, nesse período, é um processo de contradições. De um lado, vemos avanços, como o Estatuto das Cidades, decretos e leis aprovadas que expressam o respeito aos direitos humanos, a lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. No caso da moradia, a lei do Saneamento e a lei da Mobilidade, o Conselho das Cidades. Quer dizer, existem avanços. No entanto, esse processo também é marcado, de um lado, uma nova rodada de mercantilização das cidades. O Brasil interessa, nesse contexto, os investidores internacionais, pelo fortalecimento da economia etc; as cidades brasileiras têm sido palco de muitos investimentos (…) o próprio Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, tem como palco as grandes cidades brasileiras. Esses processos são claramente negadores dos direitos, do que tem sido feito no legislativo por exemplo. Dessa forma, eu vejo o país marcado por avanços de um lado, e retrocessos de outro. Retrocessos, sob o ponto de vista das cidades brasileiras, que negam esses avanços ou anulam mesmo o que tem sido conquistado. Ou seja, não é um contexto que permite muito otimismo, já que o poder econômico tem intervido com muita força no Brasil, mostrando a capacidade de subordinar o estado aos seus interesses. E, dessa forma, mostra a capacidade de subordinar e violar os direitos que estão garantidos na Constituição.
É preciso enfrentar esse projeto da “cidade mercado” que tem sido imposto pelos interesses econômicos. O projeto da “cidade mercado” é o da desregulamentação, das parcerias público-privadas, projeto neoliberal de cidade. Do outro lado, temos o projeto da “cidade de direito”, uma cidade que seja de todos e de todas, de todos viverem dignamente. Quer dizer, um projeto que não subordina a cidade aos interesses econômicos; mas o contrário, que subordina os interesses econômicos aos interesses e direitos sociais, à justiça social. Acho que essa disputa atravessa os conflitos urbanos contemporâneos. Os grandes empreendimentos e os grandes eventos expressam a oportunidade de fortalecimento do projeto da “cidade negócio”, esse é o risco no contexto atual. É fundamental contrapor a esse projeto a “cidade de direito”.
– Qual deveria ser o papel do poder público nessa questão? Mas o que tem sido verificado na prática?
Orlando Júnior:O papel do poder público, a meu ver, seria abrir espaço, democratizar radicalmente a cidade. O Direito à Cidade significa o direito de todos e todas dizerem em que cidade querem viver, e participar das decisões relativas ao estado. O poder público deveria abrir espaços de participação, consolidá-los. Vemos que esse é um papel e ainda um desafio a ser cumprido pelo estado.
Outra função do poder público é garantir condições dignas de reprodução social para todos e todas que vivem na cidade. Eu diria que o estado tem um duplo papel: garantir os direitos de reprodução de todos que vivem na cidade – habitação, saneamento, mobilidade, educação, saúde, equipamentos e serviços urbanos, os quais são fundamentais para a reprodução social. E, também, garantir espaços de participação democrática para toda a sociedade.
– E quais foram os principais avanços na luta pela reforma urbana no período? Pode destacar alguma vitória de comunidade e/ou movimento social em relação ao direito à cidade?
Orlando Júnior: Há vários casos de pequenas vitórias. No Piauí, por exemplo, participamos da negociação com o governo do estado para a solução de conflitos fundiários, os quais implicavam na remoção das famílias. Conseguimos reverter essa situação. Já o caso do Maranhão foi um dos mais bonitos. A Comunidade Terra Sol estava enfrentando um processo de remoção. A Relatoria do Direito à Cidade mediou como o proprietário do terreno e o poder público, conseguindo a autorização para a permanência das famílias. Também teve a comunidade de Campinho, no Rio de Janeiro, que embora tenha sido removida, recebeu o apoio da Relatoria para compra assistida.
Essas são conquistas pontuais. Acho que a maior vitória, além dos casos concretos, é realmente a difusão da cultura de direitos, o fortalecimento dos movimentos sociais na luta pelo direito à moradia. Eu diria que essa é a maior conquista.
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