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Direito ao espaço cotidiano na metrópole

By 06/12/2012janeiro 18th, 2018Artigos Científicos, Revistas Científicas

Direito ao espaço cotidiano: moradia e autonomia na metrópole

Como disse Henri Lefebvre: “o direito à cidade é o direito de imaginar e realizar a cidade, contínua e concomitantemente”. Neste artigo, Silke Kapp retoma o conceito do pensador francês para discutir sua relação com a ordem jurídico-urbanística inaugurada pelo Estatuto da Cidade, particularmente no que diz respeito aos princípios de participação e autonomia. Já a segunda parte do trabalho explora uma possibilidade de ampliação concreta da autonomia coletiva na escala microlocal, partindo dos estudos da temática habitacional elaborados para o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-RMBH).

O artigo “Direito ao espaço cotidiano: moradia e autonomia no plano de uma metrópole”, de Silke Kapp, é um dos destaques do Dossiê: “Direito à Cidade na Metrópole”, da Revista Cadernos Metrópole nº 28.

Abstract

Lefebvre’s proposition of a right to the city has been widely used in academic and extra-academic circles, with a tendency to oversimplification. This paper resumes some aspects of this proposition that we consider fundamental, and then discusses their relationship to the legal order inaugurated by the City Statute, particularly with regard to the principles of participation and autonomy. The third part explores a possibility of concrete amplification of collective autonomy at the microlocal scale, drawing from studies developed for the Master Plan for the Integrated Development of the Metropolitan Region of Belo Horizonte (Brazil). Also based on these studies, the fourth part summarizes the barriers to autonomy in the existing institutions, and the last part outlines the proposal for a typology of everyday spaces to structure articulations that could favor it.

A seguir a Introdução do trabalho de Silke Kapp que aborda o conceito do “direito à cidade” de Lefebvre.

Imaginar a cidade

Há uma entrevista do psicólogo social Erich Fromm à rede de televisão norte-americana ABC no ano de 1958 em que, a certa altura, ele se diz a favor do socialismo desde que o termo não fosse identificado com o regime então em vigor na União Soviética, mas com “uma sociedade na qual o objetivo da produção não é o lucro, mas o uso, na qual o cidadão individual participa de modo responsável no seu trabalho e em toda a organização social, e na qual ele não é um meio empregado pelo capital” (Fromm, 1958).

O jornalista Mike Wallace, reproduzindo o discurso típico da grande mídia ocidental, retruca que o trabalhador que não fosse empregado do capital se tornaria empregado do Estado e estaria numa situação ainda pior. E Fromm, como que solicitando ao interlocutor e ao público a ultrapassagem do raciocínio polarizado entre uma ou outra forma de dominação social, responde: “Temos sido incrivelmente imaginativos em tudo o que diz respeito à técnica e à ciência. Mas quando se trata de mudanças nos arranjos sociais, tem nos faltado totalmente a imaginação” (Fromm, 1958).

Uma tal imaginação para mudanças nos arranjos sociais também me parece imprescindível à concepção de direito à cidade formulada por Henri Lefebvre. Como sugere Harvey (2012, p. xiii), a gênese dessa concepção pouco antes dos eventos de maio de 1968 provavelmente deva mais ao ativismo nas ruas e vizinhanças de Paris do que à tradição intelectual em que ela (também) se apóia. O pleito de Lefebvre não é simplesmente um pleito pela satisfação de necessidades definidas ou induzidas na cidade e na sociedade, tais como são.

Pelo contrário, trata-se de “prospectar as novas necessidades, sabendo que tais necessidades são descobertas no decorrer de sua emergência e que elas se revelam no decorrer da prospecção” (Lefebvre, 2001 [1968], p. 125). O direito à cidade é o direito de imaginar e realizar a cidade, contínua e concomitantemente. Lefebvre associa esse processo aos procedimentos artísticos e propõe “pôr a arte ao serviço do urbano” para abrir uma “práxis e poiesis em escala social” (Lefebvre,2001 [1968], pp. 134-135).

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade. (Lefebvre, 2001 [1968], p. 135; grifos do autor)

A expressão lefebvriana tem estado na pauta das discussões nacionais e internacionais, acadêmicas e extra-acadêmicas, especialmente entre grupos que intencionam uma ou outra forma de resistências à globalização de modelo neoliberal e à governança corporativa das cidades que ela tende a promover. Além de inúmeras publicações e da Carta Mundial pelo Direito à Cidade, são exemplos nesse sentido conferências como Rights to the City: Citizenship, Democracy and Cities in a Global Age (Toronto, 1998) e Rights to the City (Roma, 2002), diversos eventos no Fórum Social Mundial, movimentos como o Right to the City Alliance (EUA) e o Recht auf Stadt-Netzwerk (Alemanha), e legislações como a Lei de Desenvolvimento Territorial na Colômbia e o Estatuto da Cidade no Brasil.

Nesse contexto de difusão relativamente ampla, o significado da expressão “direito à cidade” se tornou objeto de disputa. Diversos autores têm protestado contra sua banalização como simples análogo ou somatório do acesso ampliado a serviços e equipamentos de habitação, saúde, educação, transporte e lazer. Mitchell (2003) discutiu em profundidade o que significaria habitação e apropriação da cidade no sentido lefebvriano, muito além da acomodação de cada família numa unidade habitacional de determinado padrão. Harvey (2008) vem tentando resgatar o caráter emancipatório do direito à cidade, enfatizando que se trata “do exercício de um poder coletivo de dar uma nova forma ao processo de urbanização”. Souza (2010, p. 319) argumenta que sua “trivialização e corrupção” tende a tornar essa expressão inútil para quaisquer propósitos críticos. Merrifield (2011) retoma as possibilidades de transformação criativa hoje, explorando um artigo tardio em que o próprio Lefebvre abandona a ideia do direito à cidade (“entrega-a ao inimigo”) por considerá-la ultrapassada “quando a cidade se perde numa metamorfose planetária” (Lefebvre, 1989). E principalmente Purcell (2002) se opôs, já há alguns anos, a leituras superficiais, “escavando” as proposições de Lefebvre até as últimas consequências:

[…] o direito à cidade de Lefebvre é um argumento para mudar profundamente tanto as relações sociais do capitalismo quanto as estruturas vigentes de cidadania democrático-liberal. Seu direito à cidade não é uma sugestão de reforma, nem visa a uma resistência fragmentada, tática, passo-a-passo. Sua ideia é em vez disso uma convocação para uma re¬estruturação radical de relações sociais, políticas e econômicas na cidade e para além dela. (Purcell, 2002, p. 101)

Segundo Purcell, a diferença entre o direito à cidade intencionado por Lefebvre e as ideias que têm sido veiculadas em seu nome equivale à diferença entre uma democratização parcial das decisões hoje tomadas na esfera do Estado e uma democratização radical de todas as decisões que afetam a produção do espaço urbano, isto é, também daquelas hoje tomadas na esfera do capital. Isso significaria nada menos do que uma rearticulação mundial de escalas de governança, com a substituição da atual hegemonia do Estado-nação por uma hegemonia das cidades governadas diretamente por seus habitantes.

Os resultados disso são inteiramente abertos, imprevisíveis, porque não se limitariam à redistribuição socialmente mais justa das possibilidades disponíveis, nem estacionariam diante dos entraves operacionais determinados pelas instituições existentes. Elas mobilizariam aquele tipo de imaginação solicitado por Erich Fromm, mas nada garante que levariam a um estado de coisas que, nas perspectivas que a cidade e a sociedade atual oferecem, fosse considerado ideal.

 

Para ler o artigo completo “Direito ao espaço cotidiano: moradia e autonomia no plano de uma metrópole”, de Silke Kapp, acesse a Revista Cadernos Metrópole nº 28.

 

Leia também:

Revista Cadernos Metrópole nº 27 – As Metrópoles na Representação Política

Última modificação em 06-12-2012 14:58:24