Diante de um contexto de crise da democracia representativa, o populismo e a demagogia têm encontrado terreno fértil para progredir na atualidade, em simultâneo com a polarização do espaço político e o reforço dos extremismos. Uma saída possível para esse quadro é atuar e pensar fora dos parâmetros tradicionais, buscando soluções para restaurar os preceitos democráticos. É com esse objetivo que Observatório Internacional de Democracia Participativa (OIDP) e o ObservaPOA promovem o livro “Democracia participativa na América Latina: casos e contribuições para o debate”. A coletânea de artigos apresenta diferentes iniciativas e políticas de inovação democrática e participação cidadã, analisando os seus contextos de emergência e disseminação, os modelos adotados e resultados alcançados, e os desafios a enfrentar.
O livro “Democracia participativa na América Latina: casos e contribuições para o debate” é uma iniciativa do Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP), por meio do seu Escritório Regional para a América Latina, e representa uma primeira iniciativa da rede latino-americana de dar publicidade a estudos e investigações realizadas sobre o tema da participação cidadã.
Organizada por Luciano Fedozzi, Rodrigo de Souza Corradi e Rodrigo Rangel, a coletânea é composta por oito textos expressivos de realidades variadas e de conteúdo reflexivo sobre as experiências da democracia participativa. Os textos são os seguintes: 1) Confluências perversa, deslocamentos de sentido, crise discursiva (Evelina Dagnino); 2) Democracia participativa y sostenibilidad ambiental: revistando lecciones de América Latina” (Benjamim Goldfrank); 3) Presupuesto participativo con planificacional participativa (PP&PP): ensambles e imbricaciones” (Héctor A. Poggiese); 5) Os Orçamentos Participativos no Brasil (Luciano Fedozzi); 6) Dez anos de Governança Solidária Local em Porto Alegre (Cesar Busatto); 7) Democracia y presupuesto Participativo en América Latina. La Mutación del Presupuesto Participativo fuera de Brasil” (Egon Montecinos); 8) Metodologias Participativas para Gestar Democracia. Potencialidades del Programa de Planeación Local y Presupuesto Participativo en Medellín” (Alberto L. Gutiérrez e Liliana M. Sánchez M.).
O professor Luciano Fedozzi (UFRGS) é integrante da Rede INCT Observatório das Metrópoles.
A seguir a Apresentação da coletânea, assinada por Nelson Dias, presidente da Direção da Associação In Loco/Portugal.
APRESENTAÇÃO — DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA AMÉRICA LATINA
O ano de 2016 ficará marcad na história das democracias modernas por acontecimentos bastante relevantes. No Reino Unido, um referendo popular ditou a saída do país da União Europeia, mais conhecida como Brexit, e a consequente demissão do Primeiro-Ministro; no Brasil, o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, visto por muitos coo uma “manobra política” travestida de fundamentos legais, ditou a entrada em funções de um governo ensombrado por fortes suspeitas de corrupção; na Colômbia, um plebiscito determinou a refeição do acordo de paz entre o Governo e as FARC, que colocaria fim a mais de 50 anos de guerrilha no país; nos Estados Unidos da América, a eleição de Donald Trump como Presidente gerou uma onda de perplexidade e preocupação que extravasou fronteiras.
As consequências destes acontecimentos são ainda difíceis de prever em toda a sua amplitude, mas as causas são bem conhecidas. Os regimes democráticos têm-se vindo a confrontar com uma acentuada e generalizada erosão da confiança nas instituições, no seu funcionamento, na capacidade de cuidarem do bem comum e responderem às necessidades e expectativas das populações.
As situações expostas resultam das escolhas dos cidadãos e da atuação das instituições, pelo que se pode afirmar que a “democracia está a funcionar”. Isto não chega, no entanto, para disfarçar o enorme desconforto da classe política e da sociedade com as situações verificadas. Essas são o reflexo mais imediato do processo de desgaste dos regimes democráticos, causado por múltiplos fatores.
Num contexto de crise da democracia representativa, o populismo e a demagogia encontram terreno fértil para progredir, em simultâneo com a polarização do espaço político e o reforço dos extremismos.
O voto, criado para democratizar a realização de escolhas conscientes sobre o futuro de uma sociedade, parece hoje ser usado como uma manifestação de desagrado e de retaliação perante a classe política mais convencional. Se a isto adicionarmos as elevadas taxas de abstenção eleitoral verificadas em muitas democracias, somos obrigados a concluir que a essência deste tipo de regime foi duramente afetada. Para ultrapassar este contexto é necessário trabalhar nas suas insuficiências e fraturas; é urgente pensar e atuar fora dos parâmetros mais tradicionais. Restaurar a confiança é o principal desafio do futuro das democracias.
Instigados por este contexto e pelo repto referido, muitos têm sido os protagonistas, por esse mundo afora, apostados em contrariar as tendências em curso e criar dinâmicas e mecanismos de participação dos cidadãos, como caminho essencial para qualificar os regimes democráticos.
O presente livro convoca-nos precisamente para um debate sobre estas matérias e em particular para os processos de democracia participativa na América Latina. Ao longo das próximas páginas, os leitores poderão visitar diferentes iniciativas e políticas de inovação democrática e participação cidadã, compreender os seus contextos de emergência e disseminação, conhecer os modelos adotados, os resultados alcançados e os desafios a enfrentar. O que os autores nos propõem é um debate aberto sobre as dinâmicas participativas no continente, sem conclusões fechadas ou absolutas, mas antes caminhos de pesquisa em construção. Não poderia ser de outra forma, na medida em que o objeto em análise — a democracia participativa — é um “organismo vivo”, em permanente evolução, com avanços e recuos, e fortemente suscetível a influências de âmbito político, cultural e social, entre outras.
Entre as práticas mais destacadas no livro e no continente emergem os Orçamentos Participativos. Estes constituem, sem sombra de dúvida, o principal fenômeno de inovação democrática à escala global. O processo de disseminação destas práticas pelo mundo e algo sem precedentes. Nunca é demais relembrar que se trata de uma iniciativa de âmbito local, iniciada no final da década de oitenta, do século passado, no Brasil, e que ganhou significativa projeção, ao ponto de influenciar na atualidade mais de três mil governos municipais em todos os continentes, assim como organismos internacionais, agências de cooperação, universidades, organizações da sociedade civil, entre muitos outros agentes. A edição deste livro é disso uma evidência.
Nesta viagem pelo mundo, os Orçamentos Participativos passaram por transformações por vezes significativas ao nível metodológico, processual e normativo. De práticas experimentais e localizadas, à sua institucionalização enquanto política pública em países como o Peru e a República Dominicana, à criação de redes nacionais e internacionais, estas iniciativas inserem-se num quadro mais vasto que tende a constituir-se como um movimento social e político de defesa da democracia participativa, não como uma alternativa, mas antes como caminho essencial para a qualificação dos regimes democráticos representativos.
As inovações verificadas na América Latina têm inspirado outros, entre os quais eu próprio, a agir e a procurar construir outras formas e modelos mais intensos e ativos de viver a democracia. Foi aqui que nasceu uma nova “esperança democrática”, que tem contagiado inúmeros atores empenhados em promover mudanças no exercício do poder, em transformar as administrações públicas, em construir sociedades civis mais fortes e organizadas, em combate as assimetrias sociais e territoriais.
Para terminar permitam-me referir aquele que considero ser um dos próximos desafios dos Orçamentos Participativos: o seu “salto de escala” para níveis territoriais e institucionais mais amplos e complexos. No meu país, Portugal, será criado, em 2017, o primeiro Orçamento Participativo de âmbito nacional. Uma parte do Orçamento do Estado será, assim, decidida pelos cidadãos, no quadro de uma metodologia de caráter experimental. Em simultâneo, o Ministério da Educação de Portugal lançará, igualmente no próximo ano, uma política de Orçamento Participativo Escolar. São cerca de seiscentos os estabelecimentos de ensino abrangidos em todo o país. Cada um receberá uma transferência adicional do Orçamento do Estado para que sejam os alunos, entre o 9º e o 12º ano de escolaridade, a decidir como gastar esse dinheiro.
Desejo que estas duas experiências possam servir de inspiração para outras iniciativas do gênero e constituam um pretexto para reforçarmos as relações de cooperação entre a Europa e a América Latina no domínio da democracia participativa.
Estamos todos a explorar novos limiares para o exercício da participação e para a democratização dos Estados e das sociedades. Juntos necessitaremos de mais tempo para cruzar aprendizagens e consolidar conhecimentos, mais estou seguro que é a única forma de chegarmos mais longe nesse caminho.
Nelson Dias — Associação In Loco Portugal.
Para mais informações sobre o livro “Democracia Participativa na América Latina”, acesse o site do Observatório POA.
Última modificação em 03-05-2017 19:10:20