Por Frederico de Holanda*
Era quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025, estávamos eu e minha esposa Rosa em meio a uma temporada na casa de uns queridos amigos na ilha de Itaparica, Bahia. Tiramos o dia para curtir Salvador e suas belezas. A igreja de São Francisco estava naturalmente na pauta. A seguir, aproximadamente a sequência de eventos que daí decorreram.
Partimos de Itaparica em lancha, e cruzamos a baía de Todos os Santos às 10h. Cerca das 11h estávamos em visita a uma prima em Salvador, com problemas de saúde.
Na sequência, dirigimo-nos ao Pelô e almoçamos no delicioso Restaurante-Escola do SESC-SENAC. Daí, subimos a pé pela rua Alfredo de Brito na direção do Terreiro de Jesus, depois para o Largo do Cruzeiro e a igreja. A minutagem a seguir está registrada nas fotos e vídeos tomados, e, depois, nos trajetos por aplicativo.
Adentramos o claustro da Igreja e Convento de São Francisco às 13:54h (Figura 1). Seguimos para o interior da nave principal; sua primeira tomada foi feita às 13:59h (Figura 2). A tomada do teto da nave foi às 14:05h (Figura 3). Fiz ainda outras fotos e vídeos – o último foi às 14:10h (Figura 4) e ainda perambulamos uns minutos pelo maravilhoso espaço. Cerca de 14:20h deixamos a igreja e fizemos uma parada na sorveteria La Glacier, no Largo do Cruzeiro, na esquina defronte da igreja, a nos deleitarmos por mais uns momentos com a beleza de sua imponente fachada.
- Figura 1. Claustro da Igreja e Convento de São Francisco, Salvador, BA. (Fonte: autor.)
- Figura 2. Nave principal da Igreja de São Francisco, Salvador, BA. (Fonte: autor.)
- Figura 3. Teto da nave principal da Igreja de São Francisco, Salvador, BA. (Fonte: autor.)
- Figura 4. Capela-mór da Igreja de São Francisco, Salvador, BA. (Fonte: autor.)
Às 14:30h estávamos de volta ao Terreiro de Jesus, a 85 m da porta de São Francisco, à espera do motorista de aplicativo solicitado, ignorantes da tragédia que estava a ocorrer no interior da igreja naquele preciso momento: a quase totalidade do forro da nave, que minutos antes nos havia encantado, veio abaixo, matando uma turista de 23 anos natural de São Paulo – Giulia Panchoni Righetto – e ferindo outras cinco pessoas. Escapamos por não mais de 10 minutos. O ruído não nos alcançou, possivelmente dado o som ao redor. Às 14:35h tomamos o veículo em direção ao Museu de Arte da Bahia – não chegamos a perceber a movimentação junto à igreja que se seguiu ao desastre.
Só depois, de volta a Itaparica, soubemos da tragédia. Que calafrio, que tristeza imensa pela perda de um preciosíssimo patrimônio mundial, pela vida que se foi e pelos ferimentos nas outras cinco pessoas, e que sensação de alívio por não estarmos “no lugar errado na hora errada” (como estavam elas), tudo junto e misturado.
Assim que soube, enviei a Andrey (Schlee), diretor de Patrimônio Material do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, a notícia e uma das tomadas que fiz do interior da nave. Imediatamente depois ele me enviou imagens do teto desabado, que as mirei com um nó na garganta, fôlego curto, olhos marejados (Figura 5, Figura 6). A sensação de alívio se foi, somente quedou-se uma imensa tristeza que atravessou minha noite insone.
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Figura 5. A parte do forro da nave principal da Igreja de São Francisco, Salvador, BA, que desabou. (Fonte: Andrey Schlee.)
Na vigília, vezes sem conta vinham-me à mente as estórias do escritor norte-americano Philip Roth (1933-2018), nas quais o acaso pesa forte no curso de vida dos personagens. Quanto a nós, por acaso não repetimos a sobremesa no almoço; por acaso não nos detivemos mais nas lojinhas da rua Alfredo de Brito; por acaso não demos uma volta completa nas galerias do claustro antes de adentrar a igreja (como gosto de fazê-lo); por acaso não subimos ao coro, para olhar a nave de cima… Um ou mais desses fatores poderiam ter consumido os preciosos 10 minutos entre nossa saída e a tragédia. Ou por acaso o forro poderia ter desabado antes. Mas por acaso sobrevivemos para compor este relato, até aqui referido à mescla de sentimentos que nos afetou. Mas que tal um distanciamento crítico ante o desastre, que tal orientar o foco para o “factualmente” sucedido? Vamos a esse foco.
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Figura 6. Vista da nave principal da Igreja de São Francisco, Salvador, BA, pouco depois que o forro desabou. (Fonte: Andrey Schlee.)
Naturalmente, seguiu-se uma guerra de “narrativas”, para usar a expressão (já gasta) da moda. Claro, o IPHAN é a Geni da vez: jogam bosta no IPHAN, jogam pedras no IPHAN, como se ele pudesse fazer mais do que (muito!) já faz, nas condições de penúria de pessoal e de recursos que enfrenta. Não, vão um pouco mais fundo por favor: critiquem os parcos recursos do Governo Federal alocados para o órgão e para a Cultura em geral. Os colegas muitíssimo preparados do IPHAN fazem o impossível, mas milagre demora um pouquinho mais. Como observa Nivaldo Andrade: “na Bahia, por exemplo, o IPHAN tem apenas 10 profissionais de arquitetura e engenharia (altamente qualificados, mas mal remunerados) para dar conta de milhares de imóveis tombados espalhados por um território do tamanho da França. Só no Centro Histórico de Salvador, são cerca de 4 mil imóveis! E tem bens tombados espalhados por Porto Seguro, Monte Santo, Mucugê, Lençóis, Igatu, Rio de Contas, Cachoeira… É absolutamente impossível dar conta disso com esse efetivo!” (postagem do dia 7 de fevereiro de 2025 numa rede social).
Convenientemente, esquece-se que o orçamento previsto do IPHAN em 2025, para tudo que faz Brasil afora, é de míseros R$ 254.000.000,00 (m-i-mi de milhões). Não se assustem com esses zeros, mas com esses outros: comparem o valor com os R$ 55.000.000.000,00 (b-i-bi de bilhões) acrescidos à dívida pública a cada elevação de um ponto percentual na taxa básica de juros, recém definida, e com igual recorrência contratada para brevemente. Os números ilustram a enorme disparidade entre o Capital Político da Cultura e o Capital Político das Finanças.
Acresce (no mínimo) a leniência da Igreja Católica e de seus funcionários no cuidado com o patrimônio de que é proprietária. Em 5 de setembro de 2002, ligações elétricas clandestinas e instalações de água e esgoto não autorizadas podem ter se relacionado com o incêndio da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário de Pirenópolis, deixando em pé somente seu esqueleto (por incrível ironia do acaso o templo havia sido recente e primorosamente restaurado); no caso presente, os dirigentes da Ordem Franciscana notaram que o forro estava a perigo dois dias antes do desabamento e trataram burocraticamente a questão (mediante ofício escrito!), não alertando imediatamente o IPHAN de viva voz, tampouco notificando a Defesa Civil para que interditasse a igreja. Carece frisar que, por ser a proprietária do bem, a Ordem é a responsável legal por sua conservação, não o IPHAN. Quanto a edifícios seculares, lembramos com pesar o incêndio que destruiu o Museu Nacional em 2 de setembro de 2018, depois de anos de sucessivos cortes orçamentários (federais) para sua manutenção. Ao fim e ao cabo, o mesmo desprezo que atinge a Cultura no país. (Resguardadas nossas peculiaridades, tal leniência não é prerrogativa brasileira, haja vista o incêndio que devorou, por causas similares, parte da catedral de Notre Dame, Paris, em 15 de abril de 2019.)
“Ao vencedor, as batatas”: aqui e agora, quem as leva são os que podem reduzir tudo à condição de bens rentáveis – mercadorias – tendo na Comissão de Frente o Capital (parasita) Rentista; quanto aos perdedores – os amantes da Cultura – que se entregue o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional às traças (e cupins), ou aos fogos do Inferno.
Canaan, 15/02/2025.
*Professor Emérito e Pesquisador Colaborador Sênior da Universidade de Brasília.