“A Copa é do Mundo? Não! Os problemas são”
Por Márcio Antônio de Sousa Moraes Júnior
Desde 30 de outubro de 2007, o Brasil vive a euforia de ser o país anfitrião, pela segunda vez, do Mundial de Futebol, organizado pela Federação Internacional de Futebol – FIFA, e que será realizado entre 12 de junho a 13 de julho de 2014 em 12 cidades-sedes.
A Copa do Mundo traz consigo, paralelamente ao espetáculo, várias consequências – positivas e negativas – que fogem ao contexto dos jogos. De fato, inúmeras são as preocupações que envolvem (e antecedem) o início do torneio, tais como modificações na infraestrutura viária e aeroportuária, modernização de estádios, melhoramento na rede hoteleira e alimentícia, dentre outros. Inquestionável que um campeonato desta magnitude proporcione um elevado e constante fluxo de investimentos, aumentando significativamente o número de turistas, empregos diretos e indiretos, maior integração entre as regiões do país, além da possibilidade de criação de novos vetores de desenvolvimento.
O Ministério do Esporte, inclusive, divulgou em março de 2010 uma estimativa dos impactos econômicos que serão gerados pela Copa do Mundo, com os seguintes caracteres:
– Investimento em infraestrutura: R$ 33 bilhões
– Turismo incremental: R$ 9,4 bilhões
– Geração de empregos: 330 mil permanentes e 380 mil temporários
– Aumento no consumo das famílias: R$ 5 bilhões
– Arrecadação de tributos: R$ 16, 8 bilhões
Inobstante ser o maior valor, apenas aproximadamente um terço do investimento em infraestrutura será destinado à mobilidade urbana, com grande enfoque na construção/ampliação de monotrilhos e BRT’s (Bus Rapid Transit), assim dividido por cada cidade-sede:
A questão sobre as intervenções viárias que serão realizadas em razão deste megaevento, aliás, é um dos pontos cruciais do Caderno de Encargos entregue pela FIFA ao país anfitrião, que deverá cumpri-lo à risca para poder receber o Mundial.
Com efeito, dentre as modificações estruturais previstas se encontram a construção e/ou ampliação de: BRT’s, monotrilhos, eixos e corredores expressos e vias de integração, monitoramento e requalificação de vias, VLT’s, entre outras, de acordo com a necessidade de cada município.
Certo é que, do ponto de vista meramente político, estas atuações representam melhorias para a cidade, vez que possibilitarão a instalação ou melhoramento de instrumentos necessários para a mobilidade urbana. Porém, não se pode olvidar os impactos de natureza social, ambiental, urbanística e jurídica de sua execução.
Focando o aspecto social, dentre outros complicadores, verifica-se que para a consecução destas obras de infraestrutura será necessário que se proceda com um grande número de desapropriações cujos valores devem ultrapassar a cifra de R$ 1,4 bilhão, conforme o seguinte prospecto:
No caso de Porto Alegre, por exemplo, para a duplicação da Avenida do Tronco e prolongamento da Avenida Severo Dullius, será necessário o realojamento de mais de 6 mil famílias que, segundo o Secretário de Gestão e Acompanhamento Estratégico, Urbano Schmitt, “serão reassentadas em um raio de até 2 km dos atuais domicílios, garantida a manutenção dos veículos (escola, emprego, lazer, vizinhança, etc), para evitar a criação de guetos” .
Sobre estas expropriações, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou relatório criticando a forma com a qual elas tem sido realizadas, considerando-as “desesperadoras” e violadoras de direito fundamental da moradia adequada pela falta de transparência em seus procedimentos, devendo ser interrompidas:
“Com a atual falta de diálogo, negociação e participação genuína no desenvolvimento e implantação de projetos da Copa do Mundo e das Olimpíadas, as autoridades de todos os níveis devem interromper todas as desapropriações planejadas até que se possa garantir diálogo e negociações” .
Condena ainda o baixo valor das indenizações oferecidas pelo Poder Público que poderá promover a informalidade nas instalações de novas moradias:
“Também estou preocupada com as indenizações muito limitadas que são oferecidas às comunidades afetadas, o que é ainda mais grave devido aos valores elevados dos imóveis nas localidades onde as obras estão acontecendo para esses eventos (…). Indenizações insuficientes podem resultar em pessoas desabrigadas e na formação de novas moradias informais” .
Paralelamente ao deslocamento forçado, que traz revolta na população afetada – que culminou, inclusive, com manifestação no Ministério dos Esportes -, constata-se ainda a rejeição por parte da população receptora dos expropriados, causando, muitas vezes, grande choque cultural, temor de insegurança e até a desvalorização imobiliária, violando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da garantia à moradia digna.
No tocante aos impactos ambientais, tem-se um aumento sensível na geração de resíduos (seja por obras, seja por lixo); incremento no consumo de energia e água; ocupação e urbanização de áreas verdes e crescimento nos índices de poluição de solo, mar e ar. Segundo estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com a Ernst & Young, é estimado que a Copa do Mundo de 2014 tenha valores assemelhados aos do percebido no evento anterior (Copa do Mundo da África/2010), cujo lançamento de dióxido de carbono na atmosfera (“pegada de carbono”) representou 2,75 milhões de toneladas de CO2, sendo 67,4% devido ao transporte aéreo internacional.
Quanto à análise dos efeitos urbanísticos, é possível apontar novas situações negativas ocasionadas pelas exigências do megaevento. Isto porque é provocado relevante aumento de pólos geradores de tráfego, tanto com as obras de infraestrutura, quanto a expansão da malha hoteleira e de equipamentos necessários. Ademais, deve ser aumentada a capacidade dos aeroportos e metrôs, além de adaptações para a acessibilidade universal que não devem observância às Normas Técnicas nacionais.
Este incremento de capacidade nos aeroportos tem o condão, inclusive, de fazer alterar parâmetros urbanísticos, tal como os gabaritos de construção, e com isso confrontar até convenções internacionais. É, novamente, o caso de Porto Alegre.
Tem-se, naquela urbe, divergência entre o Plano Diretor e o Plano Específico de Proteção ao Aeródromo quanto à altura permitida para construção de prédios em determinada área nobre municipal, sendo necessário para fins de recebimento de aviões de maiores portes, o rebaixamento do gabarito dos prédios. Contudo, esta alteração encontra óbice em normas internacionais de aviação, conflitando a Municipalidade com a Aeronáutica, que reivindica competência para restringir uso da propriedade nas áreas do entorno do aeroporto.
No campo dos impactos jurídicos anunciam-se diversas afrontas às leis tidas por garantias como, por exemplo, a alteração no Estatuto do Torcedor (ao permitir a venda de bebidas alcoólicas durante os jogos e ao impedir a meia-entrada para os estudantes), a Lei 8.666/93 (criando um regime diferenciado e simplificado de contratações) e o Código de Defesa do Consumidor (permissão para FIFA estabelecer preços e condições de cancelamento, devolução e reembolso de ingressos, podendo ainda remarcar e cancelar escolhas de assentos, além de alterar data e horário de jogos sem prévia notificação aos torcedores). Ainda no âmbito consumerista, a entidade ainda poderá realizar “venda casada” (determinando a compra avulsa ou conjunta de ingressos com pacotes turísticos) e cobrar multa nos casos de desistência ou cancelamento da compra dos ingressos.
No campo processual, o projeto da Lei Geral da Copa permite que a Advocacia Geral da União (AGU), órgão de representação da União conforme art. 131 da Constituição da República, atue em defesa da FIFA em juízo, isentando ainda a entidade de quaisquer adiantamento de taxas e emolumentos ou condenações em custas ou despesas processuais, conferindo, desta forma, o mesmo tratamento de órgãos estatais à entidade.
Essas submissões à vontade da FIFA vem trazendo o desconforto à população direta ou indiretamente afetada, havendo movimentação, inclusive em âmbito da Câmara dos Deputados Federais, em tentar reprimir as exigências que vão de encontro às leis nacionais .
Percebe-se, assim, uma forte movimentação pública, nos três níveis governamentais, na busca de recursos, financiamentos públicos e investimentos para recepcionar o megaevento, sem se preocupar, prima facie, com a recuperação da mais-valia aplicada.
De fato, é inegável que o regime urbanístico da cidade e, consequentemente, dos imóveis se traduz em valor econômico, havendo relação direta entre o potencial construtivo daquele bem e o seu valor de mercado. O planejamento urbano, no momento de sua realização, leva em consideração as particularidades da cidade, tratando cada pedaço do tecido urbano segundo suas próprias características e de modo diferenciado, de modo que, em sendo alterado esta estrutura de forma açodada acarreta em um supervalorização de determinadas áreas em benefício de alguns proprietários às custas de uma atuação de outrem, no caso, o Poder Público (mais-valia). No sentido de ser necessária a recuperação da mais-valia, Andrea Vizzotto aponta que:
“Essas considerações se relacionam diretamente com o momento prévio à realização dos eventos desportivos, à medida que, no afã de viabilização de empreendimentos privados, pode-se configurar a adoção de medidas excepcionais com a quebra do padrão de regime urbanístico da região cidade. Em ocorrendo tal hipótese, com a excepcionalidade de regime urbanístico de determinado imóvel, descaracterizando o regime urbanístico da área que foi fixado por meio de critérios técnicos e com a participação da sociedade, configurar-se-ia um benefício individual, com lucro extraordinário não gerado pelo proprietário. Por meio de ações administrativas, legislativas ou de infraestrutura dessa natureza há uma quebra de paradigma daquele planejamento que foi desejado pela comunidade, ao aprovar os planos diretores”
Independentemente da atuação do Poder Público, seja genérica ou específica, sendo ela geradora de lucro para o particular, esta mais-valia deve ser resgatada através das ferramentas urbanísticas postas a disposição da Administração, como a contribuição de melhoria ou a outorga onerosa do direito de construir, fazendo respeitar, deste modo, as diretrizes dispostas no art. 2º, IX a XI, do Estatuto da Cidade.
Referências
BRASIL. Ministério do Esporte. Impactos econômicos da realização da Copa 2014 no Brasil, in http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/publicas/sobre-a-copa/biblioteca/impacto_economico_2014.pdf Acessado em 30 set 2011.
BRASIL. Ministério do Esporte. Lei Geral da Copa. Disponível em http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/publicas/sobre-a-copa/biblioteca/pl_lei-geral-da-copa.pdf Acesso em 06 out 2011
ERNST & YOUNG. “Brasil sustentável: Impactos Socioeconômicos da Copa do Mundo 2014”. FGV.São Paulo. Disponível em http://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/922.pdf. Acesso em 06 out 2011
FIFA. Caderno de Encargos e Recomendações, disponível em: http://www.fifa.com/mm/document/tournament/competition/football_stadiums_technical_recommendations_and_requirements_en_8211.pdf Acesso em 05 out 2011.
GRUPO de sem-teto invade Ministério do Esporte contra desapropriações. Globo. disponível em http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2011/08/trabalhadores-sem-teto-invadem-ministerio-do-esporte-por-desapropriacoes-para-copa.html. Acesso em 06 out 2011.
ONU critica Brasil por desapropriações para Copa e Olimpíadas. O Globo. disponível em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/04/26/onu-critica-brasil-por-desapropriacoes-para-copa-olimpiada-924321676.asp Acesso em 11 out 2011
ROMÁRIO exige que FIFA respeite legislação brasileira na Copa de 2014. Terra. disponível em http://esportes.terra.com.br/futebol/brasil2014/noticias/0,,OI5404460-EI10545,00-Romario+exige+que+Fifa+respeite+legislacao+brasileira+na+Copa+de.html Acesso em 11 out 2011
SCHMITT, Urbano. A Ordem Jurídico-Urbanística e os Megaeventos Esportivos. in II Congresso de Direito Urbano-Ambiental. Porto Alegre, 2011.
VIZZOTTO, Andrea. II Congresso de Direito Urbano-Ambiental. Anais, vol. I, p. 104/105
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Advogado, especialista em Direito Público. Mestrando em Planejamento e Desenvolvimento Territorial – PUC/GO, sob a orientação do Prof. Dr. Aristides Moysés.
Impactos econômicos da realização da Copa 2014 no Brasil, in http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/publicas/sobre-a-copa/biblioteca/impacto_economico_2014.pdf Acessado em 30 set 2011.
Disponível em: http://www.fifa.com/mm/document/tournament/competition/football_stadiums_technical_recommendations_and_requirements_en_8211.pdf Acesso em 05 out 2011.
Exposição no II Congresso de Direito Urbano-Ambiental, realizado em Porto Alegre, em 06 out 2011.
Reportagem “ONU critica Brasil por desapropriações para Copa e Olimpíadas” disponível em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/04/26/onu-critica-brasil-por-desapropriacoes-para-copa-olimpiada-924321676.asp Acesso em 11 out 2011
Idem
Reportagem “Grupo de sem-teto invade Ministério do Esporte contra desapropriações” disponível no site http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2011/08/trabalhadores-sem-teto-invadem-ministerio-do-esporte-por-desapropriacoes-para-copa.html. Acesso em 06 out 2011.
“Brasil sustentável: Impactos Socioeconômicos da Copa do Mundo 2014”. Disponível em http://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/922.pdf. Acesso em 06 out 2011
Disponível em http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/publicas/sobre-a-copa/biblioteca/pl_lei-geral-da-copa.pdf Acesso em 06 out 2011
Reportagem “Romário exige que FIFA respeite legislação brasileira na Copa de 2014” disponível em http://esportes.terra.com.br/futebol/brasil2014/noticias/0,,OI5404460-EI10545,00-Romario+exige+que+Fifa+respeite+legislacao+brasileira+na+Copa+de.html Acesso em 11 out 2011
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental. Anais, vol. I, p. 104/105