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Cooperativismo habitacional na América Latina

By 25/04/2013dezembro 11th, 2017Teses e Dissertações

Cooperativismo autogestionário na América Latina: cidades includentes e menos desiguais

Em que medida experiências de cooperativismo habitacional na América Latina avançaram na materialização de projetos efetivamente contra-hegemônicos de cidade e, mais especificamente, de moradia? Partindo dessa questão Joisa Maria Barroso Loureiro analisa, em sua tese de doutorado, o processo de formação do Conjunto Habitacional Paulo Freire e suas potencialidades enquanto materialização de uma utopia. Localizado em Cidade Tiradentes/SP, região que reúne uma das maiores concentrações  de conjuntos habitacionais da América Latina, o Paulo Freire representa um exemplo histórico de cooperativismo autogestionário, de resistência para a construção de cidades mais includentes e menos desiguais.

A tese “As comunidades fruto do cooperativismo habitacional: possibilidades do conjunto autogerido Paulo Freire como utopia temporal-espacial”, de Joísa Maria Barroso Loureiro, é mais um resultado da Rede de Pesquisa INCT Observatório das Metrópoles. Sob orientação da professora Luciana Corrêa do Lago, o trabalho foi defendido em fevereiro de 2013 no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), e contou na banca com os professores  Adauto Lúcio Cardodo (IPPUR/UFRJ), Orlando Alves dos Santos Júnior (IPPUR/UFRJ), Luís Renato Bezerra Pequeno (FAU/UFC), Luciana da Silva Andrade (PROURB/UFRJ) e Nabil Georges Bonduki (FAU/USP).

A pesquisa de Joísa Barroso parte do questionamento sobre as condições materiais, princípios e estratégias  necessários na América Latina para o surgimento e materialização de projetos efetivamente contra-hegemônicos de cidade e, mais especificamente, de moradia. Desse modo, analisou de que forma experiências de cooperativismo habitacional autogestionário avançaram no sentido de produzir uma moradia que garanta a dignidade e o bem-estar das pessoas, segundo padrões construídos coletivamente, e de contribuir na luta pela predominância do significado do ambiente construído, da cidade, como um conjunto de valores de uso.

Toda a proposta metodológica da tese tomou por base a análise das alternativas históricas que produziram e produzem o sistema social na cidade de São Paulo e de uma área específica, aberta à criatividade humana, o Conjunto Habitacional Paulo Freire (estudo de caso), seu processo de formação e as condições encontradas na sua localização (Cidade Tiradentes/SP), os agentes sociais promotores do projeto (movimento de moradia, associação, famílias e assistência técnica) e os meios utilizados (cooperativismo, autogestão e mutirão) na sua construção. Verificando para além de seus limites, suas potencialidades enquanto utopia temporal e espacial, enquanto espaço de esperança.

MOTIVAÇÃO PESSOAL

O sentido da solidariedade, da busca pelo bem comum, da justiça, da ética. Onde estão estes sentidos? Eles ainda existem? Foram vencidos pelo mundo da mercadoria? Pela técnica, pela tecnocracia? Estes sentidos ainda promovem pensamentos utópicos? Eles se materializam de alguma forma? Quando materializados se podem dizer espaços de esperança (Harvey, 2000)? Onde se espacializam as utopias? Essa materialização quando acontece se faz de forma consciente? Como os de dentro desses espaços se relacionam com os de fora? Então é isso? O espaço de esperança é o “local”, a “comunidade”, o fechado, o isolado? Acabaram-se os territórios de territorialidade genuína? O espaço do banal (das horizontalidades de Milton Santos)?

Joísa Barroso conta que o trabalho sobre cooperativismo habitacional é fruto da sua busca pessoal e profissional, enquanto cientista e militante, pela utopia e o “sentido real das coisas”. Vinculada ao Observatório das Metrópoles no período em que cursava o mestrado no IPPUR investigava a efetividade do Estatuto da Cidade, o qual representava um “projeto” de cidade pretensamente menos excludente e desigual. Porém, percebeu que, naquele ano de 2010, não havia suficiente material empírico (experiências concretas) que possibilitassemtransformar instrumentos do Estatuto em objeto de reflexão crítica. “O Observatório desenvolvia outras linhas de pesquisa, sendo que numa delas identifiquei os processos de produção de moradia popular mediante o cooperativismo autogestionário, como processos que possibilitariam obter algumas respostas sobre a espacialização das utopias, do bem comum e da ética. Isto porque a produção de moradia realizada por movimentos sociais em cidades latino-americanas, como São Paulo, Porto Alegre e Montevidéu se mostraram a princípio experiências exitosas (BARAVELLI, 2006; FRUET, 2004; GOBBI, 2005; MORAIS, 2004); e que me motivaram a buscar respostas e formular novos questionamentos”, explica e completa:

“Serão estes projetos reunidos que, de certa forma, materializarão a utopia de uma cidade mais includente e menos desigual? Promoverão algum tipo de emancipação do trabalhador e de superação da sua exploração pelo capital? Contribuirão para a dissolução da ideia da moradia e do trabalho como mercadorias ou fonte de mais valia?”.

A QUESTÃO

Toda a discussão sobre o cooperativismo habitacional partiu do questionamento sobre qual o tipo de as condições materiais, princípios e estratégias têm sido necessárias na América Latina para o surgimento e materialização de projetos efetivamente contra-hegemônicos de cidade e, mais especificamente, de moradia.

Hoje, o processo de elaboração de visões de futuro para as cidades latino-americanas como um processo reflexivo próprio e que culmine em projetos dessa natureza “esbarra” na racionalidade capitalista vigente, fortalecida pela globalização. “Uma racionalidade que é causa/consequência de uma sociedade em que a existência tem se limitado muitas vezes ao espaço da ‘rotina’ e da ‘violência’, numa realidade que não motiva o ‘pensamento’. Por vezes, compromete o movimento do pensamento, num imobilismo também ‘rotineiro e violento’. Um imobilismo que nos aprisiona ao imediato, ao imediato de um futuro ‘achatado’ pela unicidade característica da globalização. É o que Santos (2002) coloca como o fenômeno do presente ampliado, no qual o que era futuro se presentificou, levando ao alargamento e complexificação das arenas produtivas e dos universos relacionais”, argumenta Joísa.

Segundo a pesquisadora, esses pressupostos fizeram-na questionar o seu objeto: os projetos/processos de produção de habitação de interesse social por cooperativas autogestionárias. Qual o real alcance desses “projetos”? O que em seu conteúdo contribui para uma mudança de racionalidade? Para outro tipo de desenvolvimento, centrado no ser humano e não no dinheiro? Em resumo: de que forma experiências de cooperativismo habitacional na América Latina avançaram no sentido de produzir uma moradia que garanta a dignidade e o bem-estar das pessoas segundo padrões construídos coletivamente e de contribuir na luta pela predominância do significado do ambiente construído como um conjunto de valores de uso.

HIPÓTESES E SUBQUESTÕES

Como o cooperativismo na produção habitacional em cidades latino-americanas, como São aulo, incorporaram esse ideário e esses princípios?

As cooperativas habitacionais de ajuda mútua uruguaias promoveram experiências de autogestão tanto de processos produtivos como das moradias (da comunidade) frutos desse processo, isso através da manutenção da propriedade coletiva do espaço produzido, e assim tomaram uma dimensão política e socioeconômica importante na conformação do espaço urbano uruguaio. Os princípios destas experiências se transformaram em bandeiras de luta para segmentos importantes da sociedade civil do país.

No contexto brasileiro, quais as dimensões que as experiências de cooperativismo habitacional autogestionário assumiram e quais as tendências das práticas atuais?

O cooperativismo é uma doutrina que, fazendo uso das cooperativas, tem por objeto a correção do social pelo econômico. Nos dias atuais, praticamente todas as cooperativas, independentemente do porte alcançado, têm que lidar com a ambivalência de ser um empreendimento econômico e ter que, ao mesmo tempo, defender um discurso e uma ação política e moral de confrontação da lógica capitalista. De que forma as cooperativas habitacionais autogestionárias promovidas por movimentos sociais organizados superaram ou têm lidado com essa ambivalência?

PROPOSTA METODOLÓGICA

Segundo Joísa Barroso, a proposta na tese foi realizar um caminho similar de exposição e análise proposto por Wallerstein (2003), isto é, a “utopística”, como avaliação das alternativas históricas. “Investigar o potencial transformador de uma proposta como o mutirão autogerido envolve uma série de discussões, análises e, principalmente, um resgate histórico de diversas camadas de uma totalidade que é a luta por direitos. Nesse sentido, incorporamos aqui partes do instrumento metodológico proposto por Wallerstein: uma avaliação ‘sóbria, racional e realista dos sistemas sociais humanos’, suas condições de existência e as áreas, nesses contextos em que estão abertas à criatividade humana. Não esperando encontrar um ‘rosto de um futuro perfeito (e inevitável)’, mas um futuro cujos avanços sejam reais, um futuro ‘historicamente possível (embora longe de ser inevitável)’”.

Nesse sentido, é desenvolvida a análise de um sistema social, a cidade de São Paulo, sua urbanização em função das políticas habitacionais, e de uma área específica ali “aberta à criatividade humana”: o (mutirão autogerido) Conjunto Paulo Freire (nosso estudo de caso), seu processo de constituição e sua contribuição para a consolidação de um projeto alternativo de cidade.

O ESTUDO DE CASO

O estudo de caso foi escolhido após um período de pesquisa exploratória, no qual a pesquisadora visitou experiências de produção habitacional (cooperativadas e autogeridas) em São Paulo, Porto Alegre e Montevidéu (Uruguai), entrevistando os agentes promotores (representantes dos movimentos sociais, das famílias, das assessorias técnicas, das universidades etc.). Sendo que, entre tantas experiências visitadas, a escolha se deu principalmente:

(i) pela localização do conjunto, no Bairro Inácio Monteiro, distrito de Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, a maior concentração de conjuntos habitacionais da América Latina;

(ii) pela assessoria da Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Usina – CTHA), uma das primeiras no Brasil a se “especializar” na assessoria técnica (arquitetônica e social) a projetos dessa natureza e;

(iii) pelo caráter inovador do projeto arquitetônico, em estrutura metálica, que permitiu diversos avanços em termos de uma maior viabilização do trabalho das famílias no processo construtivo (mutirão), além de maior liberdade e qualidade na organização do espaço interno das unidades habitacionais construídas.

“Outra questão que merece destaque com relação ao porquê da escolha desse ‘projeto de moradia’, o Conjunto Paulo Freire, foi o tempo para sua conclusão. Foram aproximadamente dez anos (2000 – 2010), entre as primeiras articulações para a ocupação do terreno, inúmeras paralisações por atrasos no repasse de recursos, ocupação parcial das unidades e entrega do conjunto totalmente concluído. Pode-se dizer que o processo de implantação desse projeto é parte da história do bairro Inácio Monteiro, extremo leste de Cidade Tiradentes. Ou seja, um projeto de moradia sendo materializado em paralelo ao crescimento de um bairro, que, como se analisará ao longo de todo trabalho, não materializou, em sua totalidade, o projeto alternativo de cidade pleiteado pelo movimento de reforma urbana”.

ALGUNS RESULTADOS

“Analisar a história do conjunto habitacional Paulo Freire, nos faz concluir pela existência de um lugar onde decididamente um espaço de resistência ao “imobilismo” foi constituído. Um “espaço de esperança” talvez… Onde uma diversidade de agentes sociais tem percorrido um caminho de muitos anos para alcançar, através dessa resistência, a conquista mesmo que parcial de um direito fundamental, o direito à moradia digna, sendo que esse caminho não foi percorrido apenas com experiências como o Paulo Freire, de provisão habitacional. Foram muitas outras as estratégias de atuação, que juntas representam a tentativa da materialização de uma utopia, um projeto de cidade alternativo”, defende Joísa.

Segundo ela, a questão é que, apesar da intenção de serem transformadas em espaços homogêneos, as periferias de São Paulo, a exemplo de outros centros urbanos, não são iguais entre si e nem internamente iguais. Em Cidade Tiradentes é forte a presença do “mar” de conjuntos habitacionais, mas coube à sociedade civil reunida em experiências como a do Conjunto Paulo Freire ou outras formas de atuação coletiva, lutar junto às instâncias governamentais pela prerrogativa de se produzir algo contrário ao “homogêneo”: lugares animados, multifuncionais (passagem, comércio, lazer), com populações de origens diversas, espaços ambíguos, ativos, da aglomeração, da luta e do conflito. Também se formaram outras paisagens, outros usos foram dados ao solo, infraestruturas foram implantadas, áreas de comércio e serviço se desenvolveram. Até mesmo uma certa “centralidade” foi alcançada.

E todos que participaram destas conquistas sabem que é uma luta contínua e que questões fundamentais para a qualidade de vida da população local continuam sem uma perspectiva imediata de solução, principalmente no que tange ao lazer, à saúde e à geração de postos de trabalho. Isto porque em Cidades Tiradentes estão os menores números de postos de empregos formais; os quais continuam a prevalecer no chamado centro expandido – apontado como núcleo econômico da cidade. Essa questão, somada à precariedade do sistema de transporte público que atende a região, torna difícil a abolição da característica histórica da Cidade Tiradentes enquanto “cidade dormitório”; o “lugar” dos conjuntos habitacionais da cidade de São Paulo.

“Enfrentar essa complexidade para a materialização de uma utopia de cidade e seu projeto de moradia em uma localização como a periferia de um grande centro urbano pressupõe uma organização social também complexa e principalmente formada por lideranças efetivamente representativas das camadas populares. Assim o foi com os “agentes sociais promotores” da proposta do mutirão autogerido (ou produção habitacional cooperativada e autogerida) em São Paulo; uma sociedade civil (movimentos sociais, pastorais, professores e estudantes universitários, ONGs e políticos) reestruturada a partir da redemocratização do país, mas que herdou muito das experiências vividas, das identidades, dos valores e objetivos ulteriores”.

A pesquisadora defende ainda que o mutirão autogerido tem que persistir no aprimoramento dos procedimentos e estratégias das famílias, dos movimentos, e das assessorias em sua busca por um processo efetivamente autogestionário. Essa busca tem sido fundamental à luta contra o “imobilismo” dos agentes sociais, levando-os ao exercício da cidadania, a fazer novas reflexões e a consolidar uma pauta de reivindicações necessárias e influir no cenário da política urbana.

 

Última modificação em 25-04-2013