Em artigo para o Brasil de Fato Pernambuco, a arquiteta e urbanista Yara Baiardi, pesquisadora do Núcleo Recife do INCT Observatório das Metrópoles, questiona o pouco incentivo para o uso de bicicletas como meio de deslocamento na cidade. O texto chama a atenção para as recentes mortes de ciclistas nas ruas do Recife, onde quatro pessoas perderam suas vidas em menos de um mês.
Dentro do cenário insano que ilustra uma triste realidade das nossas ruas, pergunto: onde “encaixar” os ciclistas? Se, no geral, somos todos um bando de “Patetas no Trânsito”, o que fazer para reduzir as mortes de pessoas que pedalam e atrair novos usuários?
A seguir, confira o texto:
Como inserir ciclovias no meio de tantos Patetas?
A coluna deste mês, tristemente, é motivada pelas recentes mortes de ciclistas nas ruas do Recife. Quatro pessoas perderam suas vidas num intervalo inferior a um mês.
A bicicleta é um sistema “barato” para se deslocar pela cidade. É “verde”, pois não emite gases de efeito estufa (GEE) e é excelente para a saúde como prática de atividade física. É eficiente, pois alcança tranquilamente distâncias de 10km em poucos minutos, quando em terrenos planos. Se a bicicleta é, acima de tudo, democrática, por que ela é tão menosprezada nas nossas ruas?
Você já assistiu ao episódio de animação da Disney, com 6 minutos de duração, chamado “Pateta no Trânsito”? Lançado (pasmem!) em 1950, é para crianças e adultos e está disponível gratuitamente na plataforma Youtube. Garanto que não vai se arrepender.
Atenção: vem spoiler! Só não leia ou assista ao vídeo enquanto dirige, combinado?
Ele começa com um homem-pateta feliz, sorridente, saindo de sua casa e caminhando tranquilamente até seu carro próprio. É o Sr. Walker (“Sr. Pedestre”, em tradução literal), que jamais faria um mal qualquer até mesmo para uma formiga.
Todavia, ao ligar o carro, uma “mágica” acontece: Sr. Walker se transforma num ser superpotente, agressivo, diabólico, cheio de poder. Quase um mutante! É um Pateta no trânsito transfigurado em uma nova personalidade – o Sr. Motorista! Ele sai da garagem e quase atropela um pedestre, xinga diversos motoristas minutos após estar no tapete do asfalto de seu lindo percurso. Ele se acha o dono da rua.
Até chegar no seu destino, o trajeto é também estressante para o Sr. Motorista, já que há tantos outros “donos” da rua em alta velocidade disputando uma corrida imaginária contra tudo e todos. Por isso, Sr. Motorista se fecha em seu mundo e ouve a música que o grande ser viril deseja para relaxar naquele caos urbano. Se desconecta do que há ao seu redor. Mas quando um sinal fecha, o Sr. Motorista acha um absurdo perder 30 segundos da sua vida, ainda que dentro do conforto do seu carro. Fica com muita raiva dentro de sua ilustre armadura – ops, veículo.
Dentro do cenário insano que ilustra uma triste realidade das nossas ruas, pergunto: onde “encaixar” os ciclistas? Se, no geral, somos todos um bando de “Patetas no Trânsito”, o que fazer para reduzir as mortes de pessoas que pedalam e atrair novos usuários?
Em primeiro lugar, é preciso compreender que, na mobilidade urbana, representamos diversos papeis. Eduardo Vasconcelos, um dos mais renomados especialistas brasileiros no tema, publicou diversos trabalhos que discorrem exatamente sobre isso. Se sou motorista, quero inúmeras “faixas de rolamento” para mim em detrimento do transporte coletivo.
Se estou no transporte público, quero corredores exclusivos em “detrimento” do transporte individual. E assim segue o conflito sociopolítico do espaço público, que varia de acordo com o papel em que você se encontra. Uma coisa é indiscutível: todos somos pedestres em algum momento. Não se esqueça disso. Seja qual for sua renda, classe social, idade ou gênero: você é sempre um pedestre!
É um grande exercício de cidadania compreender este complexo balé urbano e dar passagem ao outro, obedecer às regras, parar no sinal sem resmungar, “segurar” o Pateta dentro de si e, especialmente, proteger sempre o mais vulnerável – no caso, os pedestres e ciclistas.
Está lá, escrito com todas as letras, no artigo 29 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB): “§ 2º […], os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres”.
Segundo ponto, o mantra: redução de velocidades, associada com uma intensa fiscalização. A multa, em sua essência, é punitiva e educativa numa mesma medida. Do contrário, será mais uma “lei” não cumprida. E a redução de velocidades pode salvar muitas vidas.
Terceiro: uma intensa e constante política pública voltada para educação no trânsito. Precisamos lembrar do nosso papel no espaço público enquanto nos movemos, seja como pedestre ou motorista de qualquer tipo de veículo. Essa política pública pode ser muito bem veiculada (com o perdão da palavra) em redes sociais, na TV, em escolas, empresas, nas ruas, via CTTU… em todo lugar. Precisamos desconstruir muitos Patetas e isso não se faz do dia para noite.
E há recursos para isso, haja vista o artigo 320 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB): 5% do valor arrecadado em multas (lembra dela?) deve ser depositado mensalmente no Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (Funest). Resta aos municípios conhecerem esta fonte de recursos e trabalharem com seriedade para que o dinheiro seja revertido em políticas públicas efetivas e constantes no seu território.
Quarto: a construção de ciclovias de qualidade e em rede – e não ciclofaixas. Qual é a diferença entre elas? Ciclovia é um espaço destinado à circulação de ciclos separado do tráfego comum. Na ciclovia há uma pequena barreira, trazendo maior segurança aos ciclistas. Dependendo do contexto espacial, deve ser implantada ao lado de calçadas, de preferência em vias estruturantes e arteriais.
Já as ciclofaixas são parte da “pista de rolamento” existente, delimitada somente por sinalização horizontal. Deveriam estar em todas as “vias” coletoras da cidade, mesmo que isso signifique dar espaço a ela (retirando uma faixa do veículo particular do Pateta). Claro, todo este cenário num universo paralelo de baixas velocidades.
Quinto e último: o Governo de Pernambuco aprovou, desde 2014, o excelente Plano Diretor Cicloviário (PDC) da Região Metropolitana do Recife (RMR). Entretanto, já se passaram 10 anos do seu início e é necessário fazer o balanço do que funcionou ou não; do que foi implantado ou não. Sem compreender a realidade, não vamos avançar em direção a melhorias efetivas! O PDC precisa ser pautado e revisado urgentemente com a sociedade da RMR.
Num brevíssimo diagnóstico dos últimos anos sobre a cidade do Recife, percebe-se algum avanço na implantação de ciclofaixas, mas muitas delas são estreitas e não estão numa configuração de rede. São ciclofaixas fragmentadas. Infelizmente, este cenário não atraiu novos ciclistas ao sistema da ciclomobilidade.
As pessoas continuam com medo, já que as velocidades dos veículos motorizados não reduziram, as motos invadem o espaço que não é delas e as vias/faixas para circulação das bicicletas são insuficientes. É um conflito diário, constante. Uma guerra contra os Patetas do Trânsito.
Texto originalmente publicado no Brasil de Fato PE, no dia 21 de outubro de 2024. Edição de Vinícius Sobreira.