A Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) realizou, no mês de março, em Santiago do Chile, o Seminário Internacional “Desarrollo, urbanización y áreas metropolitanas en la República de Corea y América Latina” com o objetivo de debater as experiências de planejamento de grandes metrópoles, como o Plano Básico Urbano da Área Metropolitana de Seul 2030, e os planos de longo prazo das latino-americanas Bogotá, Buenos Aires, Santiago e São Paulo — e mais os desafios para implementação das recomendações das duas agendas internacionais: a Nova Agenda Urbana da Habitat III; e a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. A professora Rosa Moura, integrante do Observatório das Metrópoles, participou do evento e apresenta um relato sobre o debate internacional relacionado à governança das grandes áreas metropolitanas.
Rosa Moura é geógrafa formada pela USP; doutora em Geografia pela UFPR. Bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Subprograma de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD). Pesquisadora do Observatório das Metrópoles, projeto Território, coesão social e governança democrática, INCT-CNPq. Coordenadora temática da Red Iberoamericana de Investigadores sobre Globalización y Territorio (RII). Atuou como pesquisadora do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES) entre 1991 e 2013.
Como governar e administrar grandes áreas metropolitanas na direção do desenvolvimento sustentável?
Por Rosa Moura
Essa indagação norteou as atividades do “Seminario Internacional Desarrollo, urbanización y áreas metropolitanas en la República de Corea y América Latina”, organizado pelo Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planejamento Econômico e Social (ILPES), da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) realizado em Santiago, Chile, no último mês de março . O evento fez parte do acordo de cooperação Cepal-República da Coreia, no âmbito de iniciativas multilaterais e regionais para o desenvolvimento sustentável, que mantém um intercâmbio de mais de 4 anos. As atividades dividiram-se em apresentações e debate de experiências de planejamento de grandes metrópoles, como o Plano Básico Urbano da Área Metropolitana de Seul 2030, que adquiriu relativa centralidade, e os planos de longo prazo das latino-americanas Bogotá, Buenos Aires, Santiago e São Paulo. Complementarmente, discutiu-se a mesma indagação sob a perspectiva acadêmica.
O tema é desafio de duas agendas internacionais: a Nova Agenda Urbana da Habitat III; e a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, que estabelece em seu objetivo 11 que as cidades e os assentamentos humanos sejam inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. A Cepal conjuntamente com a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) estão responsáveis pela capacitação dos países para a implementação dessas agendas. Mas, até então de que maneira planos de longo prazo para grandes metrópoles demonstraram ter incorporado esse conteúdo dessas agendas?
No caso de Seul, representantes do Seoul Institute, Inhee Kim, Joonho Ko e Jae-Seob Yang abordaram, respectivamente, o Plano Seul 2030 e seus novos desafios, o sistema de transporte urbano e o sistema de monitoramento. O link com as agendas está explícito no desafio do desenvolvimento sustentável para uma cidade inclusiva. Seul passou entre os anos 1960 e 1980 por um processo de rápida urbanização e expansão da mancha de ocupação, com crescimento em pouco mais de quatro vezes da população, da renda e da oferta de moradia, além do aumento exorbitante do número de automóveis (27,5 vezes no período).
Entre 1980 e 2000, esse processo sofreu uma inflexão, mas foi particularmente na primeira década deste novo século, tendo como fio condutor do planejamento o desenvolvimento sustentável da cidade, que a população começou a decrescer, enquanto a renda e a oferta de moradia cresceram aproximadamente duas vezes e o número de veículos apenas 1,1 vez, sinalizando ganhos em relação à sustentabilidade.
Desde então, os desafios da cidade se voltaram ao aumento da emigração, envelhecimento da população, queda de fertilidade, polarização social, e à verticalização em super arranha-céus; após 2010, passaram a enfrentar também o baixo índice de crescimento econômico e a tendência decrescente do PIB. Dois aspectos mereceram destaque: as mudanças nas políticas públicas para o rápido crescimento e a participação direta da população no planejamento contínuo, garantidos pela a democratização do país em 1987.
Além desses, os efeitos transformadores associados aos Jogos Olímpicos (1988) e à Copa do Mundo (2002), incluindo grandes projetos de redesenvolvimento. O Plano Seul 2030 foi elaborado com participação direta pela cooperação entre diversas partes interessadas, centrado em questões-chave diretamente voltadas ao sustento dos cidadãos, e tem como ideia chave que “a atenção do cidadão é pré-requisito a um plano melhor.” Como plano estratégico, adquiriu status posicionando-se no nível mais alto da estrutura administrativa, o que possibilitou maior articulação entre departamentos.
Está orientado em cinco objetivos: a cidade para as pessoas, sem discriminação; a valorização da história, cultura e lazer; a moradia estável e fácil mobilidade para a população; o emprego abundante (inserção global); e a segurança. Desdobra-se em planos regionalizados, estabelece eixos de interface entre centralidades e o mútuo desenvolvimento com cidades vizinhas. Especificamente no caso do sistema de transporte, a política atual reverte a anterior – orientada ao transporte individual em carros –, pois adota medidas voltadas à redução do tráfego, como elevação de preços para estacionamento, táxis executivos, um dia da semana sem circulação de carros, além de mudanças no sistema de ônibus, modais de menor consumo de energia, expansão da rede de transporte sobre trilhos, ruas para pedestres nos finais de semana, entre outras.
A visão atual da administração do sistema é voltar-se prioritariamente às pessoas (pedestres e ciclistas), otimizar o uso do compartilhamento e a sustentabilidade, além da retirada de viadutos e passarelas elevadas para garantir “um cenário urbano mais humano” (e a elevação do valor do solo urbano). O monitoramento do Plano Seul 2030 pressupõe a análise contínua das mudanças urbanas e a aferição pormenorizada do desempenho de sua implementação.
PLANO DIRETOR MUNICIPAL DE SÃO PAULO
Fernando de Mello Franco, ex-Secretário de Desenvolvimento Urbano do Município e membro do Comitê Executivo do PDUI, apresentou uma visão sintética do Plano Diretor Municipal de São Paulo e da contribuição que a Prefeitura Municipal de São Paulo, juntamente com o Consórcio Intermunicipal Grande ABC e a Prefeitura Municipal de Guarulhos elaboraram com vistas ao projeto de lei que instituirá o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana de São Paulo (PDUI).
Sublinhou que o PDUI prevê instaurar um sistema de governança interfederativa para a formulação e implementação das funções públicas de interesse comum, em atenção ao Estatuto da Metrópole. Ilustrou a importância da região metropolitana de São Paulo com informações sobre seu peso populacional e econômico no país, e a posição estratégica do município polo não só em relação à RM e à macrometrópole, mas a todo o território nacional.
Contextualizou também a rápida evolução da mancha de ocupação a taxas de crescimento ainda elevadas nos municípios periféricos ao polo, porém com tendência de redução até o universo de 2030; destacou o grau de concentração da oportunidade de trabalho no município polo, em oposição às áreas vulneráveis localizadas nas periferias, e a dinâmica de expansão urbana, que abraça áreas ambientalmente vulneráveis, inclusive mananciais de abastecimento hídrico.
Embora tenha detalhado um relevante conjunto de instrumentos e mecanismos de regulação urbana, financiamento, projetos e ferramentas de intervenção proporcionados pelo Plano Diretor, deixou clara a insuficiência do plano municipal em um espaço no qual os problemas são (macro) metropolitanos. Em relação às agendas, apontou instrumentos presentes em algumas ações previstas no PDUI que conferem a possibilidade de diálogo: socializar os ganhos de produção da cidade, com mecanismos de captação da valorização imobiliária e constituição de fundo de desenvolvimento urbano; garantir a moradia adequada para todos, por meio de zonas especiais de interesse social, regularização fundiária, parcelamento, uso e edificação compulsórios, quotas solidárias de grandes empresas, entre outros mecanismos redistributivos; e fortalecer a cadeia de produção agrícola familiar nas bordas da cidade.
REGIÃO METROPOLITANA DE BUENOS AIRES
Com a afirmação “El Área Metropolitana de Buenos Aires: un modelo por armar”, Eduardo Reese, do Instituto do Conurbano, Universidade Nacional de General Sarmiento, e do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), caracterizou e analisou as dinâmicas recentes de urbanização, principais problemas e desafios da região metropolitana de Buenos Aires. Tomou por base dois recortes territoriais de análise, a área metropolitana de Buenos Aires, com a cidade polo e mais 24 municípios (12,8 milhões de habitantes), em uma configuração semicircular com raio de 30 a 35 km do centro; e a região metropolitana de Buenos Aires, com esta e mais 43 municípios (15,1 milhões de habitantes), estendendo o raio a 75 e 85 km do centro.
Conjugam uma cidade metropolitana que cresce superpondo dois processos distintos e concomitantes: um modelo compacto, caracterizado na ocupação altamente densa do ponto focal; e um modelo difuso/disperso, garantido por um sistema radial de circulação. Salientou que há pobres e ricos distribuídos nessas duas formas de expansão urbana.
Os principais problemas desses modos de expansão se associam à sustentabilidade, habitabilidade e ao planejamento da região: o elevado crescimento urbano e os tipos de ocupação do solo; o acesso a um hábitat digno; a gestão do sistema metropolitano de mobilidade; a gestão integral de bacias hídricas e a proteção dos grandes espaços abertos (atentou que uma parte importante do delta do Paraná foi declarada Reserva da Biosfera pela UNESCO); a provisão de serviços de infraestrutura e equipamento social básico; o controle e gestão de resíduos e da poluição; e a conformação de um sistema eficiente de infraestrutura para o desenvolvimento econômico.
Quanto às políticas e estratégias para essa configuração, apontou mudanças na gestão dos governos locais, com ascensão de novas responsabilidades e funções, a transição de um estado burocrático a um estado gestor, e a municipalização das responsabilidades versus descentralização, e optou por manter como indagação uma “crise do modelo de gestão/financiamento municipal”. Ponderou que falta institucionalização do fenômeno metropolitano como âmbito de gestão; gestão cuja especificidade é a multijurisdicionalidade e interjurisdicionalidade, posto que determinados processos gerados no aglomerado metropolitano são tratados segmentadamente, desde o nível local, ou centralizadamente, desde o nível provincial/estadual ou nacional.
Como opções de “governo” metropolitano, apontou o modelo centralizado, a governança metropolitana associativa/acordos específicos para cada tema prioritário, e a governança metropolitana associativa/pacto político de estratégias dirigida por uma agência metropolitana. Concluiu com um exemplo da pressão imposta pela racionalidade jurídica sobre o desenvolvimento territorial, que desencadeou um plano e a constituição da Autoridad de Cuenca Matanza Riachuelo (ACUMAR), para a gestão do saneamento desses cursos d’água em uma bacia que abrange 13 jurisdições.
Gerardo Ardila, do Centro de Estudios Sociales (CES), Universidad Nacional de Colombia, abordou o ordenamento territorial da “Bogotá Humana” – orientada por um plano de desenvolvimento cujo eixo principal é construir uma cidade que supera a segregação e a discriminação, tendo o ser humano no centro das preocupações do desenvolvimento. Iniciou pontuando o quanto a situação geográfica da cidade impõe cuidados rigorosos ao modelo de gestão: a vulnerabilidade da altitude, contexto climático, captação de recursos hídricos, estrutura ecológica principal.
Sobre esse ambiente vulnerável, nos últimos 50 anos a ocupação do solo urbano expandiu 30 vezes e a população cresceu 22 vezes, atingindo em 2010 os 7,3 milhões de habitantes. Desde 2004 a cidade vem sendo governada por representantes de partidos da esquerda colombiana, mas sob relativa descontinuidade das ações. No governo atual, a premissa “Bogotá Humana” se pauta em três eixos: superar a segregação socioespacial, ordenar em função da água, enfrentar os impactos das mudanças climáticas, e reforçar o “público”, na luta contra a corrupção, controle dos serviços públicos, e governo de proximidade. Descreveu a trajetória do planejamento da cidade: o Plano de Ordenamento Territorial de Bogotá, formulado no ano 2000, teve como estratégia a indução a uma cidade compacta e integrada ao nível regional; em sua revisão, em 2003, voltou-se à inserção de Bogotá à rede mundial de cidades e ao avanço em direção a tornar-se mais competitiva; em 2013, nova modificação traz mecanismos e instrumentos para a adaptação da cidade às mudanças climáticas, ao alcance do objetivo de tornar-se uma cidade compacta; e avanços na direção de se constituir em uma cidade mais inclusiva e integrada, alterando o padrão de assentamento firmado na segregação, ocupação em zonas de risco e ineficiência urbana.
Destacou desse plano de ordenamento alguns pontos positivos, como densidades mais altas permitidas no “centro ampliado”, mescla de usos, balanço urbanístico, controle da expansão urbana, e alguns programas sociais relevantes, como a oferta de equipamentos de atenção à população vulnerável (casa igualdade, centros dignificar, casa amar-crescer-adulto idoso), oferta de jardins infantis noturnos, abrigos de passagem para moradores de rua, atenção ao usuário de drogas (basuco), ações culturais (orquestra filarmônica, cinemateca, teatros), criação da Secretaria da Mulher, equilíbrio de tarifas de transporte, e a concepção da água como direito, com organizações vinculadas a processos comunitários de governança da água.
Expôs a necessidade e as dificuldades da instituição de uma área metropolitana (Bogotá/Soacha, Chía, Cota, Funza, Madrid), mesmo com a nítida interação funcional vivida pelos municípios mais próximos à capital, e os ganhos previstos com a constituição de uma nova estratégia de desenvolvimento territorial, a “RAPE – Região Central”, ou Região Administrativa de Planejamento Especial da Colômbia, conformada por Bogotá, Cundinamarca, Boyacá, Meta y Tolima. A Rape se volta ao planejamento estratégico do território, à estruturação e execução de projetos conjuntos e a melhorar a capacidade de negociação de seus associados na concertação nacional; entre seus benefícios está a sustentabilidade ecossistêmica e o manejo de riscos.
POLÍTICA HABITACIONAL DO CHILE
O caso apresentado por Pablo Contrucci, Chefe da Divisão de Desenvolvimento Urbano da Cepal, referiu-se à política habitacional do Chile, com uma crítica saliente: de modo geral, os erros da política habitacional da ditadura seguiram os mesmos. Contextualizou que o país passou por uma redução do déficit absoluto da moradia no início da década de 2000, com particular aumento da oferta de moradia social (subsidiada) em 2009, mas que manteve níveis superiores aos do final do século passado até 2015. Destacou a expulsão das moradias sociais para as periferias, nos idos de 1970 e 1980, e nessa expansão a não inclusão de investimentos em infraestrutura e equipamentos para as novas zonas residenciais, tampouco sua integração socioespacial, resultando em cidades segregadas e desiguais.
As políticas atuais colocam ênfase no planejamento (lei de aportes, de copropriedade e planos habitacionais) e na regeneração urbana (recuperação e desenvolvimento de novos bairros com qualidade, melhoria em conjuntos habitacionais e oferta de infraestrutura para integração). São exemplos algumas medidas presidenciais, como o programa de recuperação de bairros, o plano Chile para áreas verdes, que por meio de parques amplia o acesso a áreas públicas a todos os cidadãos, o plano de ciclovias, além de políticas como o programa de regeneração de condomínios sociais (em três regiões do país), os subsídios à integração de famílias vulneráveis em conjuntos habitacionais, a proposta do decreto de moradias integradas, projetos urbanos integrados sob um plano diretor, e lei de aportes ao espaço público, prevendo que projetos que geram o crescimento da cidade (extensão ou densificação) se encarreguem de seus impactos.
De modo geral, o que se observou nos planos e ações apresentadas é que de alguma forma em seus objetivos e no conteúdo de alguns programas vinculados apareceram noções atinentes ao desenvolvimento sustentável e à inclusão social. Porém, exceto as ações explícitas medidas e afirmadas nos resultados do planejamento de Seul, nas demais metrópoles realizar as intenções ainda está por vir, o que sugere que muito há para ser feito entre a formulação das agendas internacionais e sua implementação.
PLANO DE AÇÃO REGIONAL (PAR)
Como forma de orientar a elaboração das agendas nacionais e sua consequente implementação nos países da região, a Cepal formulou e colocou em debate o Marco e Plano de Ação Regional (PAR) para a implementação da Nova Agenda Urbana Hábitat III na América Latina e Caribe. Esse trabalho, apresentado por Ricardo Jordán, da Divisão de Desenvolvimento Sustentável da Instituição, teve como base um conjunto de publicações e informes regionais da Cepal voltados a Habitat III e sua Nova Agenda Urbana, e mais particularmente à Agenda 2030 e aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), e culmina em uma visão de conjunto que abre a possibilidade de se evitar um destino incerto ao acordo de Quito, caso não se construa um exercício de conhecimento e acompanhamento da evolução das medidas e ações dos países da região.
O PAR extrai da Nova Agenda Urbana e interpreta para a América Latina e Caribe: (i) os princípios regentes de erradicar para todas as pessoas e em todo o mundo a pobreza em todas as suas formas, incluindo a pobreza extrema; de consolidar economias urbanas sustentáveis e inclusivas; e de conquistar a sustentabilidade ambiental; (ii) a visão de futuro concebida para as cidades e assentamentos humanos, de que cumpram suas funções social, cívica, econômica, territorial e ambiental, que conquistem a igualdade de gênero e empoderem todas as mulheres e meninas, que promovam a mobilidade urbana sustentável, segura e acessível a todas as pessoas, que sejam resilientes e integrem o risco associado à variabilidade do clima e mudança climática; e (iii) os resultados estratégicos de longo prazo que expressam esta visão de futuro. Tais resultados foram pormenorizados para cada princípio regente e para cada visão de futuro, no âmbito global e específico para América Latina e Caribe.
A proposta inicial PAR pode ser considerada a expressão regional da Nova Agenda, pois se volta a promover e conquistar desenvolvimento urbano sustentável até 2030, aproveitando o papel central das cidades e assentamentos humanos como motores do desenvolvimento sustentável. Constitui-se em um plano para os governos da região, construído conjuntamente por membros da sociedade civil, setores privados e governos em todos os níveis, que articula as prioridades políticas e as ações que serão adotadas na implementação regional dos compromissos internacionais expressos na Nova Agenda Urbana e no apoio ao desenvolvimento de marcos e planos nacionais de ação.
O PAR servirá de plataforma, para futuras políticas urbanas e ações concretas, construída por meio do intercâmbio de conhecimento, experiências, boas práticas e aprendizado na colaboração entre um amplo universo de interlocutores regionais, nacionais e locais, podendo ser usada como a base principal para a comunicação e coordenação dos pactos regionais. Servirá para identificar e abordar os principais temas, desafios e capacidades regionais, baseando-se nos marcos de ação existentes, como as políticas urbanas nacionais, marcos legais, planejamento urbano e territorial, projetos, metodologias e ferramentas, financiamento multiescalar, estruturas de governança, assim como os desafios nacionais e subnacionais de implementação institucional. Em nível nacional, apoiará o desenvolvimento de marcos e planos de ação nacionais, como ferramentas para a implementação dos compromissos dos países, reconhecendo as prioridades, capacidades e desafios nacionais.
Qual a visão de acadêmicos sobre possibilidades transformadoras das agendas internacionais, da efetividade de sua inserção no planejamento e gestão das grandes metrópoles e na disposição dos governos em assumirem medidas que efetivamente levem ao alcance de cidades e assentamentos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis? Essa reflexão se deu no painel final e nos debates subsequentes.
Luis Riffo, do Grupo de Investigação sobre Cidades, da Cepal-ILPES, partiu da hipótese de que os sistemas urbanos e as dinâmicas socioeconômicas e ambientais das cidades latino-americanas e caribenhas são, em grande parte, uma expressão das estruturas de produção, distribuição e consumo, e de estruturas sociopolíticas, específicas do estilo de desenvolvimento periférico. Esse se caracteriza em essência por uma dinâmica insuficiente que produz e reproduz desigualdades em diferentes dimensões, com impactos negativos nas possibilidades de um desenvolvimento urbano inclusivo e sustentável. Riffo analisou América Latina e Caribe, tendo o marco conceitual sob uma perspectiva estruturalista de desenvolvimento.
A partir de informações econômicas e sociais, buscou mostrar os resultados dessa insuficiência na dimensão urbana em relação a quatro modelos/processos: (i) as dinâmicas demográficas e migratórias, que se constituíram em processo indutor da migração rural-urbana, seguida da migração cidade-cidade, ambas a pressionar a capacidade de absorção da força de trabalho nos estratos modernos da atividade urbana, acentuando a desigualdade e a exclusão; (ii) o mecanismo de difusão assimétrica do progresso técnico, que gerou na dimensão urbana a heterogeneidade estrutural, a informalidade e a desigualdade, confirmadas na elevada concentração do PIB em estratos altos e do emprego em estratos baixos, a ocupação de grande parte da população urbana em setores de baixa produtividade do trabalho, a queda continuada do Gini urbano desde a virada do século, entre outras informações; (iii) o processo de concentração da riqueza e consumo imitativo, que resultaram na sub-inversão de capitais, reduzindo na dimensão urbana a intensidade de acumulação requerida para absorver a força de trabalho em estratos modernos, como confirmam análises comparativas a outros países de informações sobre a participação da renda do segmento maia rico sobre o total da renda do país, investimentos privados, rendas, gastos e balanços dos governos locais como porcentagem do PIB, entre outras; (iv) a modalidade de inserção externa, que tem resultado na transferência geográfica de excedentes a cidades e em processos de financeirização, confirmados em indicadores de urbanização e estilo de desenvolvimento, do peso relativo do emprego e do PIB em transporte e comunicações, serviços financeiros, imobiliários e empresariais, coeficiente de Gini por segmentos industriais e de serviços, além de outros. Em síntese, o atual modelo de acumulação não permite que se vislumbrem perspectivas de mudança quanto às condições estruturais da heterogeneidade na região. Mereceu destaque o comparativo entre Ásia, América Latina e índices médios globais quanto aos resultados de pesquisa a bancos privados e assessores de riqueza (Estudo Knight Frank. The Wealth Report 2017), sobre os fatores mais importantes para os clientes na gestão de sua riqueza e decisões de investimento, e sobre os setores de maior interesse para investimento. No caso, a preservação da riqueza foi o fator mais importante apontado na Ásia e o menos importante na América Latina e na média geral; porém os três segmentos concordaram que o setor mais propício a investimentos é o residencial, seguido dos escritórios.
Mantendo a centralidade em torno dos últimos processos analisados, Carlos de Mattos, do Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales, Pontificia Universidad Católica de Chile, trouxe reflexões sobre financeirização, crise mundial e mercantilização do desenvolvimento urbano. Partiu da questão “como estão se transformando os principais espaços urbanos do mundo ao se aprofundar a crise capitalista?”, para analisar o contexto de forte e contínua queda da rentabilidade e da taxa de investimentos na indústria, que derivou em uma progressiva sobre-acumulação de capital, impondo uma busca de saída da crise mediante reformas e políticas neoliberais. Essas não mitigaram a sobre-acumulação estrutural que, ao contrário, adquiriu maiores proporções, voltando-se a um destino alternativo para valorização, com a formação de um ”segundo circuito de acumulação” (regido pela lógica financeira), como previsto por Lefebvre décadas atrás: “‘el inmobiliario’ y la construcción dejan de ser circuitos secundarios y ramas anexas al capitalismo industrial y financiero, para pasar al primer plano” (Lefebvre, H. Espace et politique. Le droit a la ville II. Paris, Éditions Anthropos, 1972, p.120). Consolidaram-se a urbanização do excedente, a globalização dos negócios imobiliários e a mercantilização do espaço urbano, suportados pela financeirização, para a qual se estabeleceram diversas instituições e instrumentos que permitiram transformar ativos reais e imóveis em ativos negociáveis nos mercados financeiros. Desencadeou-se uma dinâmica em que parte dos capitais fluíram em inversões e negócios imobiliários demandados efetivamente pela população, e parte destinou-se ao financiamento de obras com finalidade especulativa, a exemplo dos “useless skyscrapers”, pelo mundo, ou das “ghost cities” na China. A “cidade”, ou mais precisamente, o urbano, passou a cumprir uma função chave no processo de mercantilização do desenvolvimento urbano, tornando-se instrumento útil para a formação da mais valia. Produziu-se um forte aumento dos fluxos de capital em escala global, privilegiando lugares que ofereciam melhores condições para sua valorização, incluindo América Latina, cujos fundos de investimentos estrangeiros passaram a revolucionar os mercados imobiliários locais.
Esse processo modificou substantivamente a organização, o funcionamento, a morfologia e a aparência do espaço urbano. Conclusivamente, mostrou que a financeirização impulsionou a escala planetária de uma organização produtiva reticular e multiescalar, apoiada em uma rede urbana global, na qual se articulam os principais espaços urbanos do mundo, que se conforma na plataforma operacional básica da dinâmica capitalista financeirizada. Retomando Lefebvre, apontou que o aumento do impacto do imobiliário nas transformações inter e intra urbanas, sob a lógica financeira, provocaram uma metamorfose urbana: (i) uma nova geografia da urbanização, na qual o capital flui aos espaços urbanos mais competitivos, fortalecendo os nós globais do sistema financeiro internacional e retroalimentando as desigualdades interurbanas herdadas da fase anterior; (ii) a implosão-explosão das cidades por meio de uma “destruição criativa” nas áreas com maior demanda efetiva para redensificação e verticalização, ao mesmo tempo que aumenta a produção de espaço urbano adicional em torno à cidade original, dinamizando um urbano difuso e ilimitado; (iii) a desigualdade urbana, com maior acumulação de bens raízes de alto padrão em áreas mais globalizadas e/ou de residência de setores com acesso ao crédito, o que incide no aumento das desigualdades e da polarização social, na fragmentação e perda de coesão social urbana, e generaliza o urbanismo do medo. Ao finalizar, alerta que inclusive para o caso das experiências consideradas como paradigmáticas da nova gestão urbana se pode comprovar que em última instância as mesmas evoluem a serviço do capital financeiro. “Quien ansía ocupar Barcelona y avasallarla es, hoy, un capitalismo financiero internacional que ha descubierto en el territorio una fuente de enriquecimiento y que aspira a convertir la capital catalana en un artículo de consumo con una sociedad humana dentro” (Manuel Delgado, La ciudad mentirosa, fraude y miseria del modelo Barcelona, 2ª Ed., Catarata, 2007, p.11).
Rosa Moura, bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pesquisadora Observatório das Metrópoles, prosseguiu na análise das novas geografias da urbanização, postulando que para compreender a metamorfose metropolitana há que se vislumbrar para além das metrópoles. Fez lembrar que a metropolização é uma etapa avançada da urbanização no atual modelo de acumulação, e que a condição metropolitana supera formas espaciais, pois se embrenha nas relações sociais, políticas, culturais e econômicas, penetrando no funcionamento cotidiano das cidades.
Com resultados de tipologia sobre as escalas da urbanização no Brasil, mostrou que os municípios classificados na categoria superior, em metropolização, conformam manchas contínuas nas regiões mais ativas do território ao mesmo tempo em que se “respingam” em pontos pelas demais regiões, alcançando as fronteiras nacionais. Da mesma forma, com dados das Nações Unidas para a América do Sul apontou que o número de grandes aglomerações urbanas (com mais de 300 mil habitantes) vem e seguirá crescendo até 2030, como crescerá também a participação da população desses aglomerados, assim como das unidades com mais de dez milhões de habitantes, que então se tornarão cinco (São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Bogotá e Lima). Resultante desse processo, apontou a emergência de distintas configurações espaciais, sejam em morfologias complexas, que transcendem os limites entre urbano e rural, entre municípios e estados, e por vezes entre países, com a aglutinação de aglomerados e centros em arranjos espaciais ao longo de eixos viários, sejam em grandes aglomerações com municípios funcionalmente integrados em torno de um único centro, sejam ainda articulações de cidades em rede ou aglomerações transfronteiriças, todas sustentadas por intensa comutação diária. Tais morfologias tornam a categoria “cidade” insuficiente nas análises urbanas, conforme Brenner, como também a categoria “município” na definição de políticas públicas e na gestão das aglomerações. Nelas persistem movimentos de periferização, exclusão residencial, conflitos fundiários urbanos, a presença de “sem tetos”, moradores de rua; como também a precariedade no trabalho, no acesso aos serviços e aos direitos sociais, no exercício da cidadania.
Reiterou a dinâmica de expansão que desencadeia a implosão-explosão da cidade, em processos de densificação e dispersão urbana, apoiada em densas redes de relações com outras escalas, alcançando, conforme Lefebvre, uma urbanização planetária. As lógicas que movem essa dinâmica, vinculadas à financeirização e mercantilização do espaço urbano, apontam para um novo ciclo, no qual a forma que a metrópole assume, em descontinuidade, maior escala territorial e limites dinâmicos e difusos, é estratégica para a acumulação do capital. Sugeriu que a metrópole deve ser analisada em sua inserção em uma totalidade movida por condições e ritmos desiguais, considerando as diferentes escalas, distintas configurações e diversas geografias. E ir além das dinâmicas intrametropolitanas: analisar suas relações, articulações, conexões, redes de centros e aglomerações interconectadas; desvendar as cidades que as conectam com os demais países, alcançar as fronteiras, transpassá-las. O mesmo cabe à gestão/governança metropolitana, que exige a visão do todo, em processos interfederativos que assimilem fronteiras (municipais, estaduais, nacionais), e a concepção de uma nova cidadania, desvinculada de unidades municipais/nacionais, que inclua o morador em trânsito, o morador de lugar nenhum, o morador transfronteiriço. Sobre as agendas, admitiu que tratar as áreas metropolitanas sem suas articulações e conexões nas redes de cidades não levará a eliminar a desigualdade interurbana, o que torna pouco provável que se logrem cidades sustentáveis ou o desenvolvimento urbano sustentável; tampouco serão superadas as iniquidades interiores, e se permanecerá distante de que as cidades, suas comunidades, as moradias, os assentamentos humanos sejam inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
Michael Cohen, da New School of Social Research, como palestrante derradeiro, fez uma avaliação geral dos trabalhos, chamando a atenção quanto ao conteúdo diferenciado dos dois conjuntos de apresentações, os estudos de casos, voltados a análises de desempenho das aglomerações e a como compreender e implementar as agendas, e as abordagens acadêmicas, buscando dissecar lógicas e processos. Salientou a necessidade de maior conversação entre essas partes. Sobre as agendas, questionou o porquê de, passadas décadas entre as conferências sobre assentamentos humanos desde Vancouver a Quito, os países terem usado muito pouco seus recursos para cumprirem os acordos firmados. Isso ficou evidente particularmente quando se analisou o desempenho dos países no momento de preparação para a Habitat III, em relação ao preconizado pela Agenda Habitat II. Fez referência à composição do Habitat Commitment Index (The Habitat Commitment Project. Assessing the past for a better urban future. The New School Global Urban Futures), que serviu para avaliar o progresso dos países no cumprimento das metas da Declaração de Istambul e levou a encontrar resultados desapontadores. Sublinhou que a Nova Agenda Urbana também menciona inúmeros acordos a serem cumpridos, mas não define objetivos específicos, prioridades, mecanismos de monitoramento e responsabilidades. Recomendou que se pense mais em torno do que é o interesse público no presente, como controlar o setor privado, o mercado, e salientou que essas questões relevantes estão fora da Nova Agenda Urbana e também do Objetivo 11 dos ODS. Ressaltou a preocupante falta de compromisso por parte dos países para atingir as metas e os objetivos enunciados, por mais que sejam abrangentes, o que leva a pressupor que muitos esforços ainda deverão ser postos em prática para que os acordos sejam cumpridos.
Os debates finais confirmaram a necessidade de um maior diálogo entra as análises localizadas, apresentadas nos estudos de caso dos painéis, e as análises estruturais e mais abrangentes que vêm sendo desenvolvidas em institutos de pesquisa e na academia. Esse distanciamento negligenciado, em ocasiões de aproximação e debates entre as partes, chega a provocar um efeito paralisante naqueles que estão envolvidos com as práticas do planejamento e da gestão metropolitana, tal o peso das lógicas e dinâmicas, como as postas pela financeirização e mercantilização urbana, que desencadeiam nos movimentos de ocupação e usos da cidade, na sua metamorfose, como lamentou Gerardo Ardila. Agregou ainda os retrocessos postos pela descontinuidade de políticas sociais que apresentam efeitos altamente positivos, como as creches noturnas em Bogotá, suspensas na virada do governo. “É preciso uma grande dose de esperança e confiança”, concluiu.
Os debates em torno Marco e Plano de Ação Regional (PAR) para a implementação da Nova Agenda Urbana Hábitat III na América Latina e Caribe foram muito favoráveis à iniciativa cepalina, porém apontaram lacunas das próprias agendas internacionais, sejam relativas à irrelevância do Objetivo 11 dos ODS, por não fazer menção ao mercado, sejam pelo fato da agenda Habitat III não mostrar preocupação com o controle do setor privado, como reforçou Michael Cohen. Da mesma forma ignoram questões de gênero, como apontado por participantes presentes, entre outras ausências. Foi assinalado que essas agendas desconsideram conflitos que são cotidianos na produção do espaço urbano, e deixam de incorporar processos e relações causais inerentes ao espaço urbano; ademais, no caso da Nova Agenda Urbana, sequer é citado o Consenso de Montevidéu sobre População e Desenvolvimento (firmado em 2013), composto pelos mais importantes temas sobre direitos humanos, como lamentou Eduardo Reese. Lembrou ainda que de modo geral, um dos problemas da América Latina, mais que a falta, é a prática das políticas públicas, pois não se voltam exatamente para os segmentos vulneráveis, que deveriam ser priorizados. Outra lacuna deixada pela agenda da Habitat III está em não ter incorporado os resultados do debate alternativo ocorrido em paralelo à conferência da ONU, o que torna seus resultados “uma fantasia muito longe do mundo real. É sonhar, sem considerar as dinâmicas que estão por trás da realidade, é ignorar as necessidades da sociedade que temos”, lastimou Carlos de Mattos.
Entre as recomendações, há que se iluminar mais os aspectos sobre os quais se deve atuar, mudar critérios e procedimentos, iniciou Luis Riffo. É muito estimulado o intercâmbio de “boas práticas”, mas há inúmeras “práticas negativas” que devem ser debatidas, sugeriu Michael Cohen, “e mais que tudo, incrementar a participação, aprofundar a democracia e incorporar a tecnicidade”. Nesse aspecto os representantes da equipe de coreanos presentes lembraram a importância de reforçar a atenção para a necessidade fundamental da gestão de riscos, e ressaltaram a importância em se minimizar as diferenças entre a visão do especialista e dos demais cidadãos, pois de fato, “são esses que conhecem o espaço e suas dinâmicas, e sabem o que deve ser feito”, finalizou Inhee Kim.
Anotações de Rosa Moura
Observatório das Metrópoles – Núcleo RM Curitiba
Bolsista IPEA-PNPD
Última modificação em 04-05-2017 11:09:11