Luiz Belmiro¹
Curitiba é conhecida nacional e internacionalmente como “cidade modelo”, desde o início da década de 1970 tem sido apresentada como “vitrine urbana do Brasil” por uma estratégia discursiva definida como city marketing, que a colocou no “mercado de cidades”, regido por critérios de competitividade e de sustentabilidade difundidos e aceitos internacionalmente (DINIZ FILHO e VICENTINI, 2004). O grupo político do ex-prefeito Jaime Lerner (1971-75, 1979-84 e 1989-93) foi o responsável pela criação e difusão desta imagem, sendo bem-sucedido eleitoralmente com sucessivas administrações municipais que culminaram em dois mandatos como Governador do Paraná do próprio Lerner (1995-1999 e 1999-2003). Bega (2011) aponta que a eficácia deste projeto de poder se deve ao fato de ter partido de valores culturais fortemente associados ao modo de viver das camadas médias, conseguindo captar e reproduzir seus anseios. A cidade como mercadoria foi assim vendida para quem podia consumir e propagandear a imagem de modernidade e eficiência, um oásis em meio ao caos urbano brasileiro.
Mas a desigualdade social é outra marca forte da metrópole, e uma parcela significativa de seus habitantes não tem condições de consumir. Em 2019, o Grupo de Pesquisa em Sociologia e Políticas Sociais (GPSPS) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) iniciou um trabalho de análise dos indicadores sociais dos setores censitários de Curitiba, procurando identificar como a desigualdade se expressa territorialmente, no acesso a serviços públicos e direitos básicos. Nosso primeiro esforço foi empreendido com a participação no “Seminário Políticas Públicas e Desenvolvimento Urbano em Curitiba: Desafios para os Planos Setoriais na Próxima Década”, organizado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), realizado em 04 de outubro de 2019. Nesta oportunidade, o GPSPS analisou os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano para Curitiba e constatou uma divisão territorial entre ricos e pobres, com a concentração dos últimos na região sul, e que as áreas de ocupação mesmo após a regularização não conseguiram superar a vulnerabilidade em que se encontravam originalmente.
Vários estudos discutem o papel do planejamento urbano na produção e perpetuação da desigualdade na capital paranaense. Segundo Moura (2001) sua urbanização foi conduzida num sentido bem específico, o planejamento recortou a cidade, valorizando e desvalorizando determinadas regiões conforme os interesses do momento. Por meio de uma legislação rígida, fruto do regime militar, e com o mercado imobiliário a seu favor, controlou o crescimento populacional e o uso do solo, o que possibilitou induzir o crescimento da ocupação para áreas periféricas internas, principalmente para os municípios da Região Metropolitana. Os espaços urbanos foram hierarquizados, consolidando uma forma de ocupação definida pela autora como “seletiva” e “segregadora”. Como apontam outros autores (OLIVEIRA, 2000; PEREIRA, 2002), as políticas urbanas tiveram papel central, sobretudo no processo de segregação espacial da população pobre, que foi colocada para “fora” da cidade.
O resultado foi que a expansão urbana nas últimas quatro décadas se deu a partir de um movimento de “periferização” (SILVA, 2012), que não se ateve aos limites territoriais da capital, alcançando os principais municípios da sua região metropolitana. Movimento que seguiu uma tendência verificada nas grandes metrópoles do país, com os pobres indo morar nas periferias sem a estrutura urbana adequada, inclusive no que diz respeito ao atendimento da saúde pública. A elevação do padrão habitacional aprofundou a segregação social, com os bairros mais distantes se firmando como os principais responsáveis pela expansão da mancha urbana, pois mantiveram ritmo intenso de ampliação.
As últimas décadas foram marcadas pela explosão de assentamentos irregulares na periferia curitibana como realidade da população mais pobre – segundo os dados mais recentes do IPPUC, em 2016 existiam 417 áreas irregulares na cidade. Quanto aos dados sobre a população, o levantamento mais recente que encontramos é de 2013, contabilizando 248.750 moradores, o que representava 13,45% de um total de 1.848.946 habitantes (estimativa da época). Ao sobrepormos a localização das ocupações irregulares à mancha urbana da década em que elas ocorreram, verificamos que elas a expandem ou consolidam, se incorporando à cidade, isto fica bem visível na série de mapas que trazemos aqui mostrando a evolução da mancha urbana de Curitiba de 1995 e 2004.
Qualificando a vulnerabilidade destes espaços, Silva (2012) demonstra que aproximadamente 35% destes estão em áreas sujeitas a inundações e 15% se localizam sobre faixas de domínio de rodovias, ferrovias e linhas de alta tensão. Quanto ao déficit habitacional, no último levantamento que cobriu toda a RMC (Fundação João Pinheiro, 2018), verificou-se que em 2015 havia um déficit de 79.949 unidades equivalendo a 6,5% de todo o aglomerado. Enquanto isso, a COHAB-CT tem cadastradas 46.064 famílias esperando para serem atendidas.
Para além da falta de moradia, a desigualdade e a vulnerabilidade se expressam em uma série de indicadores, que servem de base para o Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios (IDHM), através do qual é mensurada a qualidade de vida dos municípios do país, e que foi a fonte dos dados analisados em nosso trabalho citado anteriormente. Embora o IDHM de Curitiba seja considerado alto, de 0,820 em 2010, identificamos um verdadeiro abismo entre os bairros mais ricos e os mais pobres: o bairro Água Verde, na região central, quando tomado isoladamente possui um IDHM altíssimo de 0,956, enquanto numa das primeiras áreas de ocupação irregular da cidade, a já regularizada “Vila Torres”, também na região central, esse índice é de 0,623.
Outras áreas em processo de regularizadas ou ainda irregulares repetem o padrão, alcançando os mesmos 0,623, como o Parque Náutico e o Ganchinho na região sul. Falando em indicadores mais específicos, a esperança de vida ao nascer no bairro Água Verde é de 81,41 anos, ao passo que nas ocupações citadas é de 69,47, uma diferença de mais de dez anos de vida. Do ponto de vista econômico, a renda per capita no bairro Água Verde alcança R$ 4645,60, e apenas R$ 439,73 nas ocupações. Quanto aos indicadores da saúde, eles serão apresentados e analisados nos textos seguintes. É a partir deste quadro que olhamos para o início da pandemia de coronavírus em Curitiba, cabe a nós, cientistas sociais, identificar as relações entre desigualdade social e a disseminação do vírus, procurar antever os futuros impactos, e definir quais políticas públicas devem ser implementadas para intervir neste contexto de crise sanitária.
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¹ Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), membro do Grupo de Pesquisa em Sociologia e Políticas Sociais do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba.
REFERÊNCIAS
BEGA, Maria Tarcisa Silva. Planejamento-espetáculo e a construção do cidadão-consumidor. as imagens de Curitiba. In: ROSA, Maria Arlete; SANTOS NEVES, Lafaiete (Org.). CURITIBA educação, movimentos sociais e sustentabilidade. Curitiba-PR: CRV, 2011, v. 1, p. 41-70.
DINIZ FILHO, Luiz Lopes; VICENTINI, Yara. Teorias espaciais contemporâneas e conceito de competitividade sistêmica e o paradigma da sustentabilidade ambiental. In: MENDONÇA, Francisco. Impactos socioambientais urbanos. Curitiba: Ed. UFPR, 2004.
MOURA, Rosa. Os riscos da cidade modelo. In: ACSELRAD, Henri (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e riscos nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
OLIVEIRA, Denninson. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: UFPR, 2000.
PEREIRA, Gislene. Produção da cidade e degradação do ambiente: a realidade da urbanização desigual. Curitiba. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade Federal do Paraná, 2002.
SILVA, Madianita Nunes da. A dinâmica de produção dos espaços informais de moradia e o processo de metropolização em Curitiba. 2013. 260 p. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de Pós Graduação em Geografia, da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012.