por Pedro Bastos¹
“Todos queremos cidades com serviços eficientes e baratos que melhorem o transporte, a saúde, a moradia, a educação etc. Mas a grande questão é como evitar que nossas cidades não sejam máquinas de precarizar trabalhadores”[1]. Essa é a questão do livro A cidade inteligente: Tecnologias urbanas e democracia (do título original, Rethinking the Smart City – Democratizing Urban Technology)[2], que se debruça sobre dois objetivos: (1) elaborar uma contranarrativa a respeito do tão aclamado e atual modelo de produzir-cidades adjetivado pela “grife” de cidades inteligentes (ou, de smart cities); (2) apresentar intervenções alternativas à urbanização derivada do que os autores chamam de capitalismo digital predatório.
Lançado pela Ubu Editora em novembro de 2019 no Brasil, e com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, o livro tem autoria de Evgeny Morozov, economista bielorrusso autor de livros de referência para a reflexão sobre a internet e seus efeitos na sociedade contemporânea (a exemplo de Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política, lançado pela mesma editora em 2018), e Francesca Bria, tecnóloga da informação nascida na Itália e atual diretora de tecnologia e inovação digital da cidade de Barcelona. A partir de sua atuação profissional e de militância no tema, os autores elucidam a economia política que orquestra os discursos e práticas de smart cities para, então, discorrer sobre os caminhos possíveis de insurreição social contra elas.
Nessa obra, smart cities são consideradas todas as cidades que vêm apostando na legitimação de projetos que envolvam a contratação de soluções tecnológicas pelo poder público para remediar problemas e questões urbanos herdados do paradigma da metrópole industrial – insustentável, finita.
Graças à consultoria de gigantes como IBM, Google, Siemens, Philips, Cisco, Amazon, dentre outras, nesse contexto, os recursos das cidades podem ser otimizados com o uso de sensores, roteadores, sistemas algorítmicos e dispositivos responsivos desenvolvidos por essas empresas. Como resultado, esses artefatos contribuem para modular o comportamento e melhorar a experiência dos cidadãos em prol de uma cidade mais sustentável, participativa e flexível.
Em linhas gerais, os autores caracterizam a smart city como uma estratégia exitosa de win-win situation em que parcerias vistas como frutíferas entre o poder público e a iniciativa privada são formalizadas e pautadas por uma agenda neoliberal de urbanização. No entanto, com a ampliação de empresas Big Tech operando a gestão de infraestruturas urbanas (tidas como uma nova classe de ativos) e o relacionamento da Internet das Coisas com a vigilância massiva, o que se observa é a produção cada vez maior de cidades mais otimizadas e funcionais, embora paulatinamente controladas por um capitalismo digital predatório.
O capitalismo digital predatório, nos termos abordados pelos autores, consiste na produção de territórios complexos em que dados meus, seus, nossos, de quaisquer naturezas fluem livremente de forma intensiva e desregulamentada. São, portanto, dados passíveis de acesso, apropriação, venda (vide o mercado de dados sobre cidades), muitas das vezes, a partir da formalização dessas parcerias e cuja utilização ocorre sem o consentimento dos seus próprios donos. Logo, sob o pretexto do oferecimento de infraestruturas inteligentes que prometem melhorar a experiência da vivência urbana, o risco disto é da utilização desses dados para fins escusos, que ampliam desigualdades sociais já clássicas.
Ao se distanciar dos parâmetros de justiça social, o modelo mainstream de produção de smart cities criticado pelo livro dispensa a oportunidade de “fazer-diferente” em um contexto de revolução digital cuja pluralidade de possibilidades poderia (e deve) oferecer “mais” aos cidadãos.
Assim sendo, nessa conjuntura, com dados abertos fluindo livremente, de que maneira o coletivo pode se apropriar desses territórios e, por conseguinte, experimentar o direito à cidade… digital?
Morozov e Bria defendem que a pauta de smart cities deveria passar a fazer parte de uma agenda municipalista, em que sejam garantidas e propiciadas pelo poder público as condições para a constituição de cidades rebeldes com soberania tecnológica. Nesse contexto, cidades rebeldes seriam aquelas cujos cidadãos detêm a capacidade de ter voz e participação na operação e tomada de decisão sobre a destinação de infraestruturas tecnológicas. Soberania tecnológica, por sua vez, a dominância coletiva sobre a apropriação dos dados.
Para tal, expõem quatro intervenções pragmáticas que simbolizam alternativas de combate. A primeira delas consiste em que (1) as prefeituras garantam que os dados sejam preservados, auditados e aproveitados exclusivamente pela comunidade; a segunda de que os (2) processos escusos de captura de dados por agentes decisórios no nível executivo privado sejam capazes de detecção e bloqueio; a terceira, (3) a necessidade indispensável de que projetos e soluções urbanas inteligentes sejam realizados em escalas menores (a exemplo de programas-pilotos) antes de ampliados, de modo que as iniciativas que não gerem valor real aos cidadãos possam ser descartadas; por fim, (4) uma governança coletiva que sustente a conexão de pessoas, ambientes, objetos, transporte e sistemas de energia de forma mais centralizada.
Não obstante o caráter ensaístico das intervenções apresentadas, os autores oferecem uma série de exemplos e estudos de caso coletados no mundo todo sobre como experimentos “rebeldes” têm tomado forma e se desenvolvido.
O caso mais emblemático abordado no livro é o do Decode Project, iniciativa liderada pela própria autora Francesca Bria, e que prega o direito à posse de dados como bens comuns. Custeado pela União Europeia e baseado na tecnologia de blockchain, o Decode consiste numa plataforma de dados que promete devolver à população o poder decisório sobre o que e quais dados pessoais podem ser compartilhados e acessados por terceiros. Está sendo implementado em Barcelona e Amsterdã. Outras ações semelhantes, como a Datacités (em Paris), a Health Knowledge Commons e a MiData.Coop (no Reino Unido), entre outras plataformas de cooperação e compartilhamento de serviços baseadas numa tecnologia de transparência (e, mesmo casos familiares a nós brasileiros, como o orçamento participativo de Porto Alegre), também são apresentadas incipientemente pelos autores como possibilidades de insurgência.
Com 192 páginas, o livro A cidade inteligente: Tecnologias urbanas e democracia contribui ao apresentar um panorama instigante a todos os estudiosos do campo do Planejamento Urbano e Regional sobre os processos labirintados e disruptivos pelos quais vêm passando nossas condições urbanas e as reorientações intelectuais e culturais associadas a elas no contexto da revolução digital. Mais do que isso, o livro anima um campo de debates sobre como a concepção de “cidade inteligente” pode se valer de sua expertise para superar o regime de bem-estar social privatizado ao qual está sujeito a favor de uma cidade mais justa.
[1] Trecho da orelha do livro, autoria de Sergio Amadeu da Silveira.
[2] Referência bibliográfica: MOROZOV, E.; BRIA, F. A cidade inteligente – Tecnologias urbanas e democracia. Tradução de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu Editora, 2019, 192pp.
¹ Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisador do Observatório das Metrópoles e do Laboratório de Mobilidade Sustentável (PROURB/UFRJ).