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O Rio de Janeiro vive um momento de ilusão, do renascimento urbano por meio dos megaeventos esportivos. Essa ilusão a que se refere Fernanda Sánches fundamenta a análise de Daphne Costa Besen sobre o projeto do prefeito Eduardo Paes de transformar a capital fluminense em uma “global city”, cidade-mercado destinada a uma elite de compradores potenciais: o capital internacional, visitantes e turistas. Na contramão desse projeto está o Direito à Cidade e a proteção dos direitos humanos. O resultado é um Rio de Janeiro mais global, e também mais segregado, com processos de gentrificação, privatizações, remoções e desrespeito à sua população.

A monografia “A cidade global do Rio de Janeiro: modelo em conflito” foi defendida pela pesquisadora Daphne Costa Besen no âmbito do Instituto de Relações Internacionais da PUC Rio, sob a orientação da professora Maria Helena Rodrigues. O trabalho é mais uma contribuição à Rede Nacional INCT Observatório das Metrópoles, em especial ao projeto “Metropolização e Megaeventos” cujo objetivo é investigar e monitorar os impactos dos megaeventos esportivos – Copa do Mundo e Olimpíadas – no Brasil e nas cidades brasileiras.

Daphne Costa Besen é bolsista do projeto “Metropolização e Megaeventos” e colabora como tradutora para a Rede Observatório das Metrópoles – especialmente para o boletim semanal e Revista eletrônica e-metropolis. O trabalho “A cidade global do Rio de Janeiro: modelo em conflito” contribui ao levar para o debate na área das Relações Internacionais o papel da cidade e dos seus direitos. O Rio de Janeiro aparece nesse sentido como o território onde atores e projetos entram em confronto: de um lado o projeto de “global city” do prefeito Eduardo Paes; de outro o Direito à Cidade e os direitos de cidadãos que têm sido cotidianamente violados. Ao fim a pergunta: qual legado Copa do Mundo e Olimpíadas deixarão para a população carioca?

 

Introdução

Por Daphne Besen

As cidades adquirem cada dia mais, um forte protagonismo tanto na vida política quanto na vida econômica, social, cultural e nos meios de comunicação. Podemos falar das cidades hoje em dia como atores sociais complexos e de múltiplas dimensões (Castells & Borja, 1996, p.152). Essa cidade, centro de conexões, fluxos, relações e problemáticas é a personagem principal deste trabalho e aparece ao longo dos capítulos dotada de diversas características que têm as representado atualmente.

Precisamos pensar e repensar a metrópole a partir do mundo como ele é, como ele pode ser, como ele poderá ser e como ele será. No escopo do Rio de Janeiro, o nosso foco, precisamos refletir sobre o que está acontecendo e sobre as influências que têm impactado a cidade e sua construção. Para isso, devemos ter em mente a seguinte pergunta: qual o modelo de cidade está sendo construído?

A ambição anunciada é de transformar a cidade do Rio de Janeiro em uma cidade global, transformando o status da cidade para tal. De acordo com o atual prefeito Eduardo Paes, a cidade deve se tornar um centro de tomada de decisão. E para isso, a cidade deve então melhorar sua rede de comunicação e de transporte, e se tornar um centro de difusão de conhecimento no Brasil e na América do Sul (Borius, 2010, p.2). A cidade global é um cenário no qual múltiplos processos globalizadores adotam formas concretas e locais, em que as formas locais são, em boa parte, a essência da globalização. Recuperar o espaço físico significa recuperar uma multiplicidade de presenças nessa paisagem. As grandes cidades de hoje em dia têm se convertido em uma localização estratégica para toda uma nova classe de operações políticas, econômicas, culturais e subjetivas (Sassen, 2009, p.60), realidade a qual estamos nos deparando hoje, no Rio de Janeiro.

A globalização está produzindo novas geografias de governamentabilidade, e uma das expressões dessas geografias pode ser vista no relacionamento entre as cidades e seus cidadãos. As cidades globais operam como cidades-estado em uma economia global conectada, gradativamente mais independente da mediação nacional e regional e onde as populações não têm tido tanto espaço (Appadurai, 2001, p.25).

Existem diversas lentes pelas quais podemos enxergar essa globalização nos dias de hoje: a globalização como fábula, a globalização como perversidade e uma outra globalização (Santos, 2008, p.18). A globalização como fábula, um mundo que nos fazem acreditar, é sustentada pela ideia de que o mundo está ao alcance da mão; de que o mercado global pode homogeneizar o planeta e de que o Estado está prestes a morrer. A globalização como perversidade, o mundo como ele realmente é, se depara com o desemprego crescente, o aumento da pobreza, a educação de qualidade cada vez mais inacessível, a corrupção e os egoísmos. Mas, podemos conquistar uma outra globalização, que se baseia na construção de um outro mundo com uma globalização mais humana, focada no acesso aos direitos e qualidade de vida (Santos, 2008, p.18-21).

É com base nessa outra globalização que se sustenta o acesso ao Direito à Cidade, ou seja, nas atuais circunstâncias da cidade do Rio de Janeiro, o Direito à Cidade tem sido negado a sua população diversas e repetidas vezes e, para que os cidadãos do Rio de Janeiro possam alcançá-lo, muita coisa tem que mudar. O Direito à Cidade é então muito mais do que um direito individual de acesso a recursos que a própria cidade dispõe: é um direito para nos mudar por meio da mudança da cidade. É um direito coletivo mais do que individual, uma vez que ao mudar a cidade, inevitavelmente dependemos do exercício de um poder coletivo sobre os processos de urbanização (Harvey, 2008, p.23).

As mudanças estimuladas pela globalização não se restringem ao mundo econômico e afetam a produção do espaço urbano, atingindo diretamente a formulação e legitimação de paradigmas nas políticas urbanas (Sánchez, 2001, p.31). Dessa forma, uma nova onda internacional de projetos urbanísticos se propaga e vem sendo apropriada pela aspiração mercantil em cidades globais. As reformas e revitalizações urbanas ganham contornos especiais em cidades portuárias, e assim, um novo ciclo se repete no Rio de Janeiro onde já em outras décadas, como durante a reforma de Pereira Passos, a população de baixa renda se viu expulsa da região central da cidade, para dar lugar a novos edifícios, recolhendo-se forçosamente às periferias, longe das vistas de uma classe média e uma elite apta ao consumo estimulado pelos empreendimentos (Cilente & Tarin, s.d.).

As políticas urbanas vêm sendo formuladas no âmbito de uma economia simbólica que afirma visões de mundo, imagens e noções, as quais acompanham as ações de reestruturação urbana. Frente às realidades da fragmentação, essas operações urbanas buscam integrar simbolicamente a cidade a envolvendo em uma política-espetáculo (Sánchez, 2010). Como todas as cidades têm seguido a mesma fórmula, todas acabam sendo vendidas da mesma maneira: como o local ideal para promover grandes eventos internacionais, com centros de exposição e áreas portuárias revitalizadas. A imagem original de uma cidade, a que ela expressa por meio da sua cultura e das suas inovações, é substituída por uma imagem pasteurizada de um receituário importado. A justificativa é a de se diferenciar competitivamente no mercado mundial, paradoxal, não (Cosentino, 2011)?

Governos estadual e municipal têm acenado com um projeto urbano elitista tanto a nível estético como em relação às prioridades. Cabe, então, perguntar quem irá colher os frutos dessa maravilha, já que esse não é um processo de reurbanização preocupado com aqueles que ali vivem, mas sim empenhado em criar boas oportunidades imobiliárias. E assim, milhares de famílias são removidas para dar espaço ao projeto de reurbanização e revitalização da capital sendo reassentadas para locais distantes dos que ocupavam (Cilente & Tarin, s.d.).

No caso do Rio de Janeiro, a cidade chega ao seu ponto mais alto no tocante ao projeto de cidade global quando é eleita para ser sede dos megaeventos esportivos Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016. Esses megaeventos são de grande importância para o projeto da cidade global devido à ampla coalizão de atores e pelo volume de recursos. A partir de então o consenso vem sendo administrado mediante a venda de uma mercadoria difusa, mas, poderosa: a ilusão do renascimento urbano por meio dos megaeventos esportivos (Sánchez, 2010).

No entanto, as cidades que se inscrevem nesses megaeventos seguem uma planificação que as consideram como uma empresa em competição, uma vez que esses eventos têm como um de seus objetivos vender a cidade, atrair investimentos e capital. A cidade se torna então uma marca, está à venda, e se transforma em cidade-mercadoria, mercadoria de luxo, destinada a uma elite de compradores potenciais: o capital internacional, visitantes e turistas. Acontece que essa visão de cidade ameaça o conceito de cidadania, ou seja, o cidadão passa a ser considerado antes de tudo, como um consumidor (Borius, 2010, p.6). Além disso, ao estimular a reinvenção da cidade e sua nova inscrição mundial pela via dos megaeventos e dos grandes projetos urbanos, este modelo de cidade e seu urbanismo de resultados têm contribuído para potencializar a desigualdade. Ao mesmo tempo em que são renovados os espaços em ritmo intenso, as políticas sociais ficam comprometidas.

Em 1988, o Brasil adotou uma nova Constituição Federal que permitiu enormes progressos na temática urbana. No domínio mais específico do Direito à Cidade, uma parte especial foi dedicada à política urbana, que faz do Brasil o primeiro país do mundo a incluir o Direito à Cidade na sua Constituição (Borius, 2010, p.6). Mas, infelizmente, o fato de termos uma legislação que defenda o Direito à Cidade não significa que isso seja experimentado na prática, como é o caso do Rio de Janeiro atualmente, que vamos analisar no presente trabalho. Para isso, nos perguntamos: como se dá o acesso ao Direito à Cidade na esfera atual do Rio de Janeiro?

A contribuição da monografia consiste na elaboração de um debate teórico-analítico a respeito da proteção do Direito à Cidade no município do Rio de Janeiro a partir do momento em que o mesmo aspira se tornar uma cidade global. O trabalho objetiva ampliar o entendimento sobre a ideia de cidade global e as consequências que esse status traz para o município do Rio de Janeiro. Ao lidar com objetos mais comumente estudados no âmbito das Ciências Sociais, Urbanismo e Geografia, a monografia pretende analisar projetos, propostas, declarações, legislações, dados e fatos, incorporando ao instrumental analítico de estudo da política internacional reflexões elaboradas nas áreas mencionadas.

Após uma análise do Rio de Janeiro como uma cidade global e do planejamento urbano traçado para o município, a monografia pode enriquecer a capacidade explicativa das experiências que temos vivido hoje em dia na cidade. Temas como esse não são muito explorados nas Relações Internacionais, mas de certo, podem servir para o entendimento da projeção das cidades em um mundo usualmente entendido como formado por países. As cidades têm conquistado um papel muito importante no cenário atual, adquirindo mais autonomia frente ao governo federal e estadual, adquirindo uma grande importância em nível internacional. A monografia contribui de maneira prática, uma vez que pode ajudar no planejamento, implementação, gestão e avaliação de políticas e projetos urbanos que respeitem o Direito à Cidade.

Inicialmente, é necessário explorar os autores que trabalham com o conceito de Cidade Global e de mercantilização da cidade. A partir desse entendimento, analisamos o caso do município do Rio de Janeiro no contexto dos megaeventos, e as consequências que decorrem dessa junção de momentos pelos quais a cidade está passando. No presente trabalho, faço a opção pelo conceito de Cidade Global inaugurado pela autora Saskia Sassen (2009), para explicar muitas das decisões de governantes e também consequências dessas decisões para a realidade local. Tal conceito também é trabalhado por outros autores brasileiros como Fania Fridman & Eduardo Cezar Siqueira (2003), mostrando a perspectiva do Rio de Janeiro como cidade global. A mercantilização da cidade é explorada à luz de Carlos Vainer (2000) e Fernanda Sánchez (2001), que colaboram para o entendimento do modelo o qual está sendo adotado pelo Rio de Janeiro.

O objetivo geral deste trabalho é desenvolver um estudo acerca do Rio de Janeiro como cidade global e como a aquisição desse status, no caso do presente município, tem se comportado em relação ao Direito à Cidade. Os objetivos específicos são: trazer o conceito de Direito à Cidade inaugurado por Henri Lefebvre (1969) e mais tarde reintroduzido por David Harvey (2008) para a realidade da cidade do Rio de Janeiro; elucidar sobre a proteção dos direitos humanos nesse município no contexto dos megaeventos esportivos; analisar a transformação do Rio de Janeiro em uma cidade global, assim como a sua atuação como uma cidade de exceção em decorrência do que temos presenciado nos últimos anos no tocante a violações de direitos.

O Rio de Janeiro, a partir da década de 90 tem se esforçado gradativamente para se projetar na esfera internacional, competindo com outras cidades para se tornar uma cidade global. Dentro dessa perspectiva, analisamos esse caminho até os dias de hoje, quando o Rio de Janeiro vai ser palco dos dois maiores megaeventos esportivos do mundo – a Copa do Mundo e as Olimpíadas – e com isso, fazemos a seguinte pergunta: até que ponto as premissas do Direito à Cidade fazem parte do projeto do Rio de Janeiro como uma cidade global?

Argumentamos que o Rio de Janeiro, como uma nova cidade global, e a partir de um modelo que é seguido na política da cidade desde a década de 90, acaba por se tornar uma cidade-mercadoria, vivendo sob a exceção, negando o Direito à Cidade e cometendo violações de Direitos. Mas, até que ponto, essa negação do Direito à Cidade e a projeção de poder no nível internacional, beneficia sua população? Seriam essas mudanças pensadas para a esfera local?

Buscando atingir meus objetivos de pesquisa e analisar a mercantilização do Rio de Janeiro aliada ao projeto de cidade global e as consequentes violações de direitos que a cidade tem presenciado, o instrumental teórico a orientar o trabalho se encontra nas ideias desenvolvidas por David Harvey (2008) a respeito do Direito à Cidade. Harvey (2008) discorre que reivindicar o Direito à Cidade é demandar algum tipo de poder modelador sobre o processo de urbanização, sobre as maneiras as quais as nossas cidades são feitas e refeitas, buscando-se um ambiente decente para se viver.

O Direito à Cidade se afirma então como um apelo, como uma exigência (Lefebvre, 1969, p.108). A cidade ideal comportaria a obsolescência do espaço: transformação acelerada das moradias, dos locais, dos espaços preparados, seria a cidade efêmera, obra perpétua dos habitantes, eles mesmos móveis e mobilizados para e por essa obra (Lefebvre, 1969, p.123). E é a partir dessa perspectiva que vamos analisar o que estamos vivendo na cidade do Rio de Janeiro nos dias de hoje.

O método aplicado é o qualitativo e a pesquisa é explicativa, analisando-se material documental e bibliográfico. No primeiro, analisamos declarações, legislações e dossiês a respeito da mercantilização da cidade e das violações de direitos humanos. No segundo, além da literatura acerca do marco teórico, são analisados artigos que focam no Rio de Janeiro como uma cidade global, na mercantilização da cidade e na transformação da cidade em uma cidade de exceção.

Como recorte temporal e geográfico, a pesquisa analisa o planejamento urbano no município do Rio de Janeiro no período de 2009 até o ano de 2013. Tal recorte temporal foi escolhido porque marca um novo momento no Rio de Janeiro – em 2009 a cidade é escolhida como sede das Olimpíadas de 2016. Além do mais, nesse mesmo ano, Eduardo Paes passa a ser prefeito do Rio de Janeiro, trazendo algumas novas ideias para o planejamento urbano da cidade, já exploradas anteriormente pelos prefeitos Cesar Maia (1993-1996, 2001-2004 e 2005-2008) e Luiz Paulo Conde (1997-2000), mas, dessa vez, se estabelecendo com mais força.

Primeiramente vamos apresentar a concepção de Direito à Cidade, perspectiva teórica que irá nos acompanhar ao longo do presente trabalho. Em um segundo momento, é introduzido o debate sobre Cidade Global, em que são apresentados o conceito e a discussão que é feita a partir dessa noção dentro do escopo da globalização. Em seguida, são expostas as violações de direitos na cidade do Rio de Janeiro em decorrência dos megaeventos esportivos. E, finalmente, o Rio de Janeiro é analisado sob a ótica da cidade-mercadoria e da cidade de exceção.

Busca-se instaurar na cidade um modelo de urbanismo baseado em planejamentos realizados por outras cidades, mas que não condizem com a nossa realidade. O desenvolvimento econômico se torna o objetivo final, ferindo diversos direitos no caminho dessa trajetória. Que desenvolvimento é esse? É esse o modelo de cidade em que queremos viver? Com base em todas essas indagações e questionamentos, fatos, números, leis, decretos e propostas, este trabalho visa ampliar a discussão a respeito da inserção do município do Rio de Janeiro como uma cidade de nível global, levantando suas reais consequências, sob a ótica do Direito à Cidade.