Cidade conectada, movimentos controlados: tecnologia, espaço e megaeventos
A securitização dos espaços nas cidades e a instalação de estruturas de controle das atividades no ambiente urbano fazem parte de um pacote de modificações impulsionadas pela organização de megaeventos, que se convencionou chamar de legados. No artigo “Cidade conectada, movimentos controlados”, Rodrigo Firmino discute a interconexão entre tecnologia, megaeventos e o controle dos espaços da cidade, e explica que no contexto do Brasil, governo e iniciativa privada se unem com o propósito de implementar estratégias de segurança, além da possibilidade de acesso a banco de dados com informações sobre milhões de indivíduos e grupos.
O artigo “Cidade conectada, movimentos controlados: tecnologia, espaço e megaeventos” foi publicado na seção Tendências, da Revista Ciência e Cultura, da SBPC. O autor Rodrigo Firmino é vinculado ao Programa de Pós-graduação em Gestão Urbana (PUC-PR) e integra o núcleo Curitiba do INCT Observatório das Metrópoles. Ele é membro-fundador da Rede Latino-Americana de Estudos Sobre Vigilância e Visibilidade.
Leia a seguir o artigo completo.
Cidade conectada, movimentos controlados: tecnologia, espaço e megaeventos
Rodrigo Firmino
Em texto recente de seu blog, Carnet de Notes, o pesquisador André Lemos tratou sobre os mecanismos de controle e gestão da cidade contemporânea, a qual chamou de “cidade da internet das coisas”, suportados por tecnologias autônomas, capazes de se comunicar entre si sem a mediação de ações humanas. A “internet das coisas”, como é conhecida a forma de comunicação em rede entre objetos, pode proporcionar no futuro, um desenvolvimento autônomo em cascata de sistemas tecnológicos para controle e gestão de estruturas urbanas e ações humanas na cidade. Objetos trocam informações entre si, alimentam bancos de dados interconectados e sistemas capazes de tomar decisões operacionais e gerenciais.
É incontestável o fato que a humanidade atingiu um nível de dependência de sistemas tecnológicos inescapável e imprescindível para a manutenção dos padrões atuais de conforto e transações locais e globais de todos os tipos. Basta um breve colapso dos sistemas de abastecimento de energia elétrica para percebermos o tamanho dessa dependência.
Não se trata de uma relação recente. Na verdade, essa interdependência se desenvolve lentamente ao longo da história da humanidade, a partir do momento em que começamos a compreender o mundo a nossa volta; a perceber que coisas podem ser convertidas em objetos; que existem técnicas (saber fazer) para operar um objeto, transformando-o em ferramenta; que a técnica pode ser incorporada ao objeto, transformando-o em tecnologia; e que, finalmente, tudo pode ser codificado em uma linguagem simples, e que tudo é passível de intercomunicação.
Assim, tanto a internet das coisas como a intricada relação de interdependência entre homem e tecnologia, são capazes de criar situações interessantes do ponto de vista da emancipação da criação coletiva, do compartilhamento de dados, objetos, trabalhos e conteúdos, da eficiência de certos sistemas tecnológicos para controle de estruturas urbanas como abastecimento de água, energia etc (principalmente no que diz respeito à gestão de falhas e ao alcance dos serviços atendidos por essas estruturas). Por outro lado, há também a possibilidade de desenvolvimento de mecanismos de controle e vigilância sofisticados, da transformação de indivíduos e individualidades em códigos de bancos de dados, da manipulação direta e indireta de informações pessoais e coletivas, de fraudes, e todo tipo de invasão e interferência, com influência direta nos atuais padrões de privacidade e liberdades individuais, o que implicaria em última instância, num modelo de sociedade controlada não muito diferente daquela retratada em obras de ficção científica do cinema, como Minority Report, do diretor Steven Spielberg. Sociedades altamente amedrontadas e securitizadas para a prevenção de ameaças domésticas e externas resultariam em espaços e cidades onde qualquer movimento torna-se suspeito e, portanto, deve ser controlado. Nesses casos, a interconexão entre objetos, bancos de dados, instituições e pessoas, produz uma vigilância distribuída, com controle disperso das atividades e acontecimentos da cidade.
Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com os grandes eventos esportivos, a serem realizados no Brasil em 2014 (Copa do Mundo da Fifa) e 2016 (Jogos Olímpicos)? Os eventos em si, não têm relação direta com o cenário comentado acima. Tampouco são estes os responsáveis exclusivos pela propagação de estruturas de controle na cidade contemporânea. Entretanto, todo o ambiente que se estabelece para a realização de megaeventos – não somente os esportivos, como se vê na recente mobilização, no Rio de Janeiro, para a conferência das Nações Unidas Rio+20 – antecipa e cria uma pressão enorme por uma rápida aceitação de mecanismos de controle e segurança na cidade. As negociações políticas entre governos e entidades supranacionais, estabelecem um ambiente pró-segurança que depende da instalação de tecnologias e operações de gestão ligadas a um maior controle das atividades e ações presentes na cidade, clamam por rapidez nas decisões locais e nacionais para que as adequações se realizem, e mascaram as implicações e debates relacionados à transformação da cidade contemporânea em uma “cidade da internet das coisas”.
A securitização dos espaços nas cidades, bem como a instalação de estruturas de controle das atividades no ambiente urbano fazem parte de um pacote de modificações impulsionadas pela organização de megaeventos, que se convencionou chamar de “legados”. Melhorias no transporte, infraestrutura urbana e segurança são os itens mais comuns da lista de legados de megaeventos, em especial os esportivos.
Por governos, os eventos têm sido vistos como uma oportunidade única (em um contexto de crise econômico-financeira global) de canalizar investimentos para uma “esperada” reforma urbana, o que pode ser utilizado, em muitos casos, como moeda eleitoral. Governos também estão interessados nas possibilidades de implementação de estratégias de controle para todo e qualquer movimento nas cidades, sempre com a justificativa de aumentar a segurança (urbana no caso dos países pobres ou em desenvolvimento, e nacional no caso dos países alvos de “ameaças externas”). Para as empresas, trata-se de uma oportunidade de grandes investimentos em obras públicas sem muitos questionamentos, e de formação de um cenário de testes para tecnologias em desenvolvimento; além da possibilidade “obscura” de controle de complexos e interconectados bancos de dados com informações sobre milhões de indivíduos e grupos (consumidores em potencial). Como explicam Fussey e Galdon Clavell (Revista Brasileira de Gestão Urbana, v.3, n.2, 2011).
“Em particular, e desde 1956 com a primeira menção sobre ‘legado’ olímpico em Melbourne, tem havido uma conexão explícita entre megaeventos e a reconfiguração do meio urbano. Em anos mais recentes, megaeventos tornaram-se vinculados a uma série de políticas urbanas de longo prazo que transcendem o efêmero ‘palco’ do evento real e ressoam ao longo do tempo e do lugar. Tais políticas incluem geralmente aspirações para a ‘regeneração’ e uma melhor ‘sustentabilidade’ de uma determinada área, a securitização generalizada de geografias e toda uma reorganização da governança urbana.”
Um dos problemas da relação entre a realização dos megaeventos e a instalação de novas políticas e estruturas tecnológicas como condição e legado, é a rapidez e, em geral, a forma velada com que as negociações para sua aceitação e instalação são realizadas. O conjunto de políticas e estruturas de segurança capazes de criar um ambiente de resistência e recuperação de espaços e atividades urbanas em situações de emergência (desastres naturais, crime, violência, levantes, protestos, ataques terroristas etc), é conhecido como resiliência urbana.
Segundo Coaffee e Fussey (Revista Brasileira de Gestão Urbana, v.3, n.2, 2011), as evidências desse tipo de transformação urbana para cidades securitizadas e cidades da internet das coisas – que começam a ganhar visibilidade em cidades como o Rio de Janeiro – dividem-se em quatro principais tipos de intervenções: o aumento no uso de vigilância eletrônica automatizada em espaços públicos e semi-públicos; popularidade crescente do uso de barreiras físicas; o aumento na sofisticação e custos de planos de segurança e contingência; e a maneira como estratégias de securitização têm sido mescladas com elementos construtivos e de desenho urbano, incorporando os princípios de resiliência. Em países com tradição na luta pela defesa de direitos civis e liberdades individuais, as negociações acima, ou mesmo as ameaças à privacidade, encontram mais barreiras antes de se estabelecerem amplamente. No Brasil, onde o debate e a legislação de proteção à privacidade são frágeis ou inexistentes, as estratégias de planejamento, desenho e gestão urbana definidas por princípios de resiliência, tendem a se instalar com pouca resistência. Este cenário é inevitável e realidade cada vez mais presente em várias cidades médias e metrópoles do mundo todo. Cabe a nós, enquanto sociedade, debatermos e negociarmos os níveis de controle, segurança e privacidade a que queremos ser submetidos.
Rodrigo José Firmino é professor adjunto do programa de pós-graduação em gestão urbana e do curso de arquitetura e urbanismo da PUC do Paraná. Ele é membro-fundador da Rede Latino-Americana de Estudos Sobre Vigilância e Visibilidade.
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