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Em artigo para o Brasil de Fato CE, a pesquisadora e professora Denise Elias (Núcleo Fortaleza) explica porque é preciso impedir a pulverização áerea de agrotóxicos no Ceará, considerando os três projetos de lei que tramitam na Assembleia Legislativa do estado. As propostas visam permitir o uso de drones para a pulverização aérea no Ceará, o que representaria um imenso retrocesso.

Foto: Standret/Freepik.

Confira:

Excelentíssimos senhores deputados estaduais do Ceará.

Entendo que, em alguns aspectos, viver é uma das ações mais dialéticas do mundo, pois ao mesmo tempo que é maravilhosamente inigualável, é também muito difícil, o que demanda recorrer a várias estratégias para todos os dias acordar, levantar da cama e seguir em frente acreditando que faz sentido. Para mim hoje faz sentido se eu manifestar minha opinião contrária ao uso de drones para pulverização de agrotóxicos no Ceará. É com tal objetivo que escrevo essa carta aberta.

O tema nos remete a pensar sobre o agronegócio e requer ser pensado de forma abrangente, abarcando seus aspectos econômicos, políticos, sociais e territoriais, lembrando que o método científico permite, a partir da análise de uma totalidade, realizar esforços de síntese e pensar em proposições para transformação.

A formação do agronegócio

Para entender a defesa do uso de drones para pulverização de agrotóxicos por segmentos da sociedade é importante entender como se desenvolveu o tipo de atividade agropecuária que se convencionou chamar de agronegócio. Para tanto, é necessário nos remetermos aos anos 1960, quando o Brasil passou a viver metamorfoses radicais de sua atividade agropecuária.

Naturalmente, não é possível aqui esmiuçar todos os agentes e processos envolvidos desde então, mas, em síntese podemos dizer que, nesse ínterim, a agropecuária brasileira passou por uma muito forte reestruturação produtiva, por transformações neoliberais e pelo avanço do capital financeiro no setor. Como resultado tivemos significativas mudanças das forças produtivas na agropecuária e das relações sociais de produção, da mesma forma que das formas de uso e ocupação do espaço agrário.

O Brasil hoje ocupa uma parte muito grande de seus milhões de terras agricultáveis para produzir algumas poucas culturas, especialmente commodities agrícolas (soja, milho, algodão, café, carnes processadas, frutas, entre outras), voltadas não para alimentar sua população, mas para a exportação.

Para comportar as taxas de crescimento de produção, de produtividade e de volume de exportações que o agronegócio ostenta repetidamente, batendo recordes atrás de recordes, faz-se necessário a utilização de pacotes tecnológicos, compostos, entre outros, por portentosas máquinas agrícolas, sementes transgênicas, serviços ultramodernos e, naturalmente, muitos agrotóxicos. Só assim é possível a difusão de um padrão estandardizado de produção, regulado pelas relações de produção e consumo globalizados.

A frente de tais produções intensivas estão grandes empresas e corporações transnacionais que comandam o agronegócio, sejam elas agrícolas, da indústria de alimentos ultraprocessados, fumageiras, de capital financeiro através de vários de seus instrumentos, incluindo os fundos de investimentos e, naturalmente, as corporações produtoras de agrotóxicos, entre outras.

A produção dos mitos do agronegócio

Sei que a conjuntura para enfrentar uma opinião contrária à pulverização aérea de agrotóxicos não é muito favorável, até mesmo porque há décadas os agentes hegemônicos do agronegócio trabalham com o objetivo de produzir um imaginário social totalmente favorável ao segmento, criando inúmeros mitos a ele associados (ELIAS, 2023)**.
Não nos esqueçamos que a alienação é um dos pilares do modo de produção dominante. Como nos ensinou a filósofa Marilena Chauí (1981)***, a ideologia é um mascaramento da realidade social que permite a legitimação da exploração e da dominação e, por intermédio dela, tomamos o falso pelo verdadeiro, o injusto pelo justo. Assim, para a expansão do agronegócio é imprescindível uma ideologia que o sustente e essa vem sendo construída há décadas.
Não são poucos os agentes da indústria cultural brasileira atuantes para tal objetivo. Mas, sem dúvida, poucos tiveram o alcance e atingiram tanto sucesso como a gigantesca operação publicitária veiculada pela Rede Globo de Televisão, principal canal aberto do Brasil. Intitulada o Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é tudo, a campanha foi lançada em meados de 2016 e está vigente até o momento. A oração que dá nome à mesma é repetida exaustivamente inúmeras vezes ao dia para milhões de brasileiros nos intervalos comerciais da emissora.

Desde então, a sociedade do espetáculo (DEBORD, 2003)**** e a criação de mitos associados ao agronegócio fazem parte de nossas vidas e nossos corações, criando o agronegócio como um “produto” que vem sendo consumido por grande parte da população brasileira. Poderíamos mesmo dizer, adaptando noção do geógrafo Milton Santos (2007)***** para outros temas, que foi produzido um consumidor mais-que-perfeito para o agronegócio brasileiro.
Isso reforça a necessidade de discutir o que inferimos como alguns dos principais mitos nos quais se escora o agronegócio, visando possibilitar uma visão crítica sobre o mesmo, única forma de promover transformações, ou seja, ações contra hegemônicas para reconstruir e transformar os processos hoje dominantes associados ao agronegócio. Só assim será possível trilhar os caminhos para uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.

Entre os muitos mitos criados e difundidos inerentes ao agronegócio, abarcaremos aqui um deles, qual seja, o mito de que os agrotóxicos não fazem mal à saúde do homem e do meio ambiente. A magnitude dos impactos negativos dos agrotóxicos é incomensurável. Dessa forma, faz-se necessário que tal mito seja desconstruído.

O mito de que os agrotóxicos não fazem mal

O Brasil é um dos países no mundo que mais consome agrotóxicos em sua agropecuária e isso está em grande parte associado à produção do agronegócio. Isso vem representando um verdadeiro desastre para a saúde de todos os brasileiros, da mesma forma que para a saúde do meio ambiente, com a contaminação do solo, do ar, das águas e dos alimentos.

Essa realidade foi ainda mais agravada no governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), dado o número de novas liberações de agrotóxicos para uso em lavouras, que alcançou uma soma nunca antes conhecida para um mesmo intervalo de tempo. Como exemplo, em 2020, 1/3 dos agrotóxicos comercializados no Brasil tinha recebido registro durante os dois primeiros anos de governo Bolsonaro. Nesse período, foi autorizado o uso de um conjunto de produtos já proibidos em outros países, por representar sérios riscos à saúde da população e ao meio ambiente.

Da mesma forma, houve a tramitação do projeto de lei conhecido como “PL do Veneno”, que flexibiliza as regras de utilização de agrotóxicos. Além da regulamentação para o uso de novos venenos, está prevista até mesmo a mudança do termo agrotóxico, presente na legislação desde 1989, para defensivos fitossanitários ou pesticidas, representando um grande retrocesso.

Várias instituições já se manifestaram contrárias às mudanças, devido os já comprovados e devastadores danos à saúde. Podemos aqui citar alguns deles, tais como as intoxicações agudas e as intoxicações crônicas. As primeiras afetam principalmente os trabalhadores agrícolas e comunidades próximas as áreas de produção, expostos diretamente em seus locais de trabalho e moradia. Podem se manifestar como irritação da pele e dos olhos, vômitos, diarreias, dificuldades respiratórias, convulsões e, em última instância até em morte.

Já as intoxicações crônicas são de mais difícil detecção, até porque, por vezes, aparecem muito tempo após o período de exposição ao veneno. De maneira geral, afetam um número bem maior de pessoas, já que são decorrentes da presença de resíduos de agrotóxicos em alimentos e no ambiente, mesmo que em doses baixas.
Os efeitos associados à exposição crônica incluem, por exemplo, infertilidade, impotência, abortos, malformações fetais, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e alguns tipos de câncer. Pesquisas realizadas em lavouras do estado de Mato Grosso, entre os maiores consumidores de agrotóxicos no país, detectaram a presença de agrotóxicos até mesmo no leite materno de mães em fase de amamentação.

Mas não é preciso ir longe para detectar contaminações pelo uso de agrotóxicos. Como em qualquer área do país que passa por processo de difusão do agronegócio, seja ele qual for (soja, frutas, milho, algodão, cana etc.), vem enfrentando esse problema do aumento do uso de agrotóxicos e não é diferente no estado do Ceará. Vários estudos já demonstraram, por exemplo, inúmeros casos e diversas formas de contaminação por agrotóxicos na região do Baixo Jaguaribe.

Mas o Ceará tem uma grande diferença em relação ao restante do país, teve aprovada a Lei Estadual n.16.820/2019, de autoria do deputado Renato Roseno, que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos em todo o território estadual e, assim, vem evitando que os cearenses sejam contaminados por ‘chuvas de veneno’.

A lei aprovada pela Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), em 2019, e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2023, foi denominada de Lei Zé Maria do Tomé, em homenagem ao agricultor, líder comunitário e ambientalista da região do Baixo Jaguaribe, assassinado em abril de 2010 com 25 tiros. Ele lutava por uma agricultura sem o uso de agrotóxicos, sem concentração fundiária e produtora de comida de verdade.

Mas agora um Projeto de Lei (PL 555/2023) apresentado à Alece propõe autorizar a pulverização aérea de agrotóxicos com o uso de drones, o que representaria um imenso retrocesso.

Enfim senhores deputados, é necessário enfrentar esse mito de que não é possível a agricultura se realizar sem agrotóxicos, assim como o de que eles não fazem mal a saúde dos homens e mulheres, assim como da natureza. Chuva de veneno nunca mais!


**ELIAS, Denise. Formas-conteúdo e nós do agronegócio no Brasil: reflexões para debate. Geo UERJ, (43). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/geouerj/article/view/79073

***CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

****DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 2003. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf. 

***** SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.

******ELIAS, Denise. Globalização e Agricultura. São Paulo: EDUSP, 2018 (reimpressão). 

******Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato CE, em 11 de dezembro de 2024.