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Um projeto transformador para as cidades será construído a partir das periferias e com as periferias.

Via BrCidades

As eleições de 2018 têm importância fundamental para o país, nos próximos anos. Elas confirmarão ou não o rumo tomado após o golpe de 2016 que destituiu a presidenta Dilma, eleita constitucionalmente, e logrou a prisão do ex-presidente Lula. Ambos os episódios são contestados nacionalmente, por centenas de juristas, e internacionalmente, por inúmeras entidades, inclusive pela ONU. O período eleitoral deve ser o momento de discutir visões de país, fazer diagnósticos e proposições. Mas não é o que tem acontecido. As disputas, históricas, presentes na sociedade brasileira e a crise do capitalismo global nos remeteram a uma polarização inescapável. Os debates estão cerceados com a maior parte da mídia e do judiciário tomando partido político claramente.

Apesar da conjuntura adversa insistimos na necessidade de discutir os problemas vividos pelo povo brasileiro e entendemos que apenas com seu protagonismo, afirmando a democracia, podemos resolvê-los. É por isso que entidades e personalidades acadêmicas, profissionais e lideranças sociais, reunidas em torno do BrCidades – por um projeto para as cidades do Brasil, da Frente Brasil Popular, chama atenção para a ausência dos temas relativos às cidades, onde vive 84% da população brasileira nos debates e também em muitas das propostas de governo. De acordo com o último Censo do IBGE, 84% da população brasileira vive em cidades. A redemocratização do país bem como a construção de um novo ciclo de desenvolvimento econômico, social e ambiental passa necessariamente pelos conflitos urbanos. Apesar do ciclo democrático distributivo, nossas cidades vivem uma segregação brutal marcada por profunda desigualdade econômica, social, mas essencialmente urbana. A distribuição de renda é importante para a melhoria das condições de vida, mas não diminui, necessariamente, a desigualdade urbanística. Não garante o direito à cidade. Estamos no campo da política urbana: os problemas vêm da captura das terras bem localizadas e servidas de infraestrutura, pelo mercado imobiliário (que frequentemente define finalidade e localização dos investimentos públicos) e as soluções dependem de uma construção federativa complexa na qual o município tem a competência sobre o uso da terra e dos imóveis. O domínio dos interesses imobiliários na produção da cidade é quase absoluto.

As áreas de moradia dos excluídos da cidade se assemelham a uma senzala urbana. Lá a maioria da população é negra, de baixa renda, baixa escolaridade, baixa expectativa de vida (em São Paulo 30 anos de vida separam o morador de Itaquera do morador do Jardim Paulista), péssimas condições de saneamento. Lá a violência é epidêmica e a morte de jovens, especialmente negros chega a impactar a expectativa de vida masculina no país. A ausência do Estado é preenchida por uma polícia que mata (e morre), por uma milícia que achaca e pelo crime organizado que assegura paz quando não há disputa de quadrilhas pela área. Mas talvez a pior condição esteja na falta de mobilidade. O preço proibitivo do transporte e a sua ausência especialmente nos fins de semana impõem o “exílio na periferia”. Uma cidade invisível, ignorada, mas que evidencia a potencialidade para escrever uma nova história, sua própria história. Não por acaso esses compõem as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas: a luta por mobilidade urbana – enquanto liberdade de circular e ter acesso às redes de bens e conhecimentos coletivos –, as lutas do movimento negro, os feminismos, o movimento LGBTQI+, os coletivos artísticos, a cultura emergente de reapropriação dos espaços públicos e também dos estudantes secundaristas, cuja disposição e irreverência surpreendeu a todos. Ainda que enfrentem adversidades específicas, esses atores coletivos tem pontos em comum: são comunidades políticas que clamam pela efetivação de direitos, por formas inclusivas de sociabilidade e modos mais horizontais de decisão, pela cidade como arena de participação de todas e todos, como lugar do uso e do encontro. Cabe a nós compreender como se dá nas cidades a interseccionalidade entre desigualdades de classe, raça e gênero. Em nosso país, capitalismo, herança escravocrata e patriarcal caminham pari passu; o genocídio de nossos jovens negros é inaceitável.

A PERIFERIA NO CENTRO DA POLÍTICA URBANA: UMA REPARAÇÃO HISTÓRICA.

Um projeto coletivo para as cidades do Brasil que pretenda ter um caráter transformador, precisa ser construído a partir de e com as periferias, esses espaços populares. A questão não é apenas geográfica: espaços segregados de moradia popular incluem também muitos centros históricos abandonados pelos investimentos públicos e privados e que congregam comunidades solidárias nos edifícios antes ociosos, agora ocupados. É da desigualdade que estamos falando. Precisamos reaver a dívida secular com a urbanização das autoconstruções ilegais, das favelas, dos cortiços e dos grandes conjuntos/depósito de gente.

É inadiável promover o SANEAMENTO AMBIENTAL garantindo a universalidade de bens básicos à vida digna, saudável e segura como o acesso à água potável, esgoto, drenagem e coleta de resíduos, o que exige um combate à privatização das companhias de saneamento. Reverter esse quadro exige a abordagem de práticas ambientalmente responsáveis de captação, distribuição, uso e reuso da água, além de descarte do esgoto. O mesmo deve ser feito com os resíduos sólidos, fonte de emprego e riqueza, que devem obedecer aos ciclos da redução do consumo, reuso e reciclagem. Esses são temas conhecidos cuja defesa vai exigir ânimos renovados nesse ciclo que se abre. Assim como a proteção efetiva das reservas hídricas, das Áreas de Preservação Permanente, das Áreas de Proteção de Mananciais, dos mangues e dunas; a proteção efetiva e despoluição de cursos de água; a ampliação das áreas verdes e a arborização dos espaços de uso coletivo.

Atualmente os habitantes dos grandes centros perdem parte da vida na precária MOBILIDADE e, obviamente, quem mais sofre são os sujeitos periféricos. Ainda na chave da reparação histórica, é preciso defender de uma vez por todas as soluções técnicas e políticas que dão prioridade ao transporte coletivo de massa, eficiente e integrado, além do fomento aos meios de transporte não-motorizadose à mobilidade ativa. Definitivamente o automóvel deve ser banido do lugar central da matriz da mobilidade urbana (como manda a lei Federal da Mobilidade Urbana) e ser banido também do lugar central dos investimentos públicos orientados para sua circulação. E os últimos anos tem nos mostrado que a mobilidade urbana – enquanto possibilidade de acesso ao trabalho, aos círculos de interação social e, ainda, aos centros de decisão – é uma prioridade para grande parte de uma geração jovem e precisa ser um eixo estruturante da agenda urbana.

Devemos pensar uma POLÍTICA URBANA PARA A INFÂNCIA E JUVENTUDE, que combine atividades de educação, cultura, esportes, artes e alimentação diária com equipamentos de boa qualidade arquitetônica nas periferias metropolitanas. Os exemplos dos CIEPs no Rio de Janeiro, dos CEUs em São Paulo, dos CUCAs em Fortaleza, do Centro Comunitário de Mãe Luiza em Natal, entre outros, são por demais eloquentes para recomendar essa centralidade do equipamento. Além de permitir o desenvolvimento de potencialidades das/os jovens em situação de vulnerabilidade, essa proposta deve se integrar a um programa de segurança capaz de por fim ao genocídio da juventude negra, da violência institucional e do poder do crime organizado, garantindo um futuro melhor para os bairros e cidades.

A partir de um olhar periférico, fica claro em que medida a prioridade dada aos negócios com o SOLO URBANO tem nos levado a uma modernização regressiva de aspectos múltiplos. Ao contrário do que se pode pensar, não faltam planos, não faltam leis e não faltam exemplos de soluções técnicas para fazer avançar o Direito à Cidade em direção às periferias. Todo município brasileiro com mais de 20.000 habitantes tem Plano Diretor, instrumento básico para garantir a função social da propriedade urbana de acordo com a Constituição Federal e com o Estatuto da Cidade. No entanto, plenos de boas intenções, os Planos Diretores têm implementação discriminatória: aquilo que contraria os interesses dominantes, em especial relacionados ao rentismo fundiário e ao mercado imobiliário, não é implementado. E o que é pior, o discurso do planejamento urbano e da legislação urbanística detalhada tem jogado uma cortina de fumaça que encobre os reais interesses dos que lucram com a cidade e com a consequente exclusão social.

Uma POLÍTICA HABITACIONAL à altura das necessidades brasileiras precisa de investimentos maciços que não serão feitos pela iniciativa do mercado, nem isoladamente, nem por meio da falácia das parcerias público – privadas. A política federal deve estar atenta à diversidade das necessidades habitacionais e aos diferentes portes e características geográficas e ambientais de cada cidade, superando o pensamento único fixado nos grandes conjuntos habitacionais localizados distantes do tecido urbano – como ainda ocorrera muitas vezes com o Programa MCMV. A política de habitação não pode ser pensada e implementada apartada da política urbana. Esse erro é recorrente na história das cidades brasileiras. E sem aplicar as leis – Constituição federal de 1988, art. 182 e 183 (função social da propriedade e da cidade), Estatuto da Cidade e Planos Diretores Municipais – não há solução para os problemas de moradia, portanto é urgente não protelar ainda mais a aplicação da legislação urbanística relativa ao controle da especulação imobiliária.

O que falta é garantir efetivamente que as necessidades da população estejam consideradas nas políticas de desenvolvimento urbano, resgatando inclusive nossa experiência de um passado recente em que programas relacionados ao orçamento participativo, habitação, mobilidade, saneamento, saúde, educação, cultura, democracia racial e democracia de gênero fizeram parte de uma política urbana marcada pela democracia direta. Além de recuperar experiências bem sucedidas é necessário construir uma nova agenda as cidades do Brasil. Em nossa difícil conjuntura, a construção social dessa agenda não pode deixar de prever a convergência dos movimentos sociais com o conhecimento teórico-crítico e os saberes técnico-profissionais. E evidentemente a força social necessária à implementação desse projeto vem do protagonismo dos movimentos sociais, sindicatos, centros acadêmicos, coletivos diversos, em especial daqueles participantes da democracia direta.

Já está claro que, para realizarmos essas latências, será necessário assumirmos um projeto coletivo e pactuado, com capilarização, presença na opinião pública e base social, estruturado nessa confluência generosa, envolvendo sujeitos dispares, mas ligadas/os pelo desejo coletivo de cidades menos desiguais, inclusivas, com economia dinâmica e de abundância coletiva, sustentáveis em termos ambientais, culturalmente inclusivas e efervescentes. Radicalmente democráticas.

O BrCidades é uma rede da qual participam militantes de esquerda que apoiam diferentes candidatos às eleições de 2018 compromissados com a construção democrática das cidades. Entendemos a importância das majoritárias, mas destacamos também que, para mudarmos a correlação de forças desfavorável, é urgente disputar o Congresso Legislativo com uma unidade no campo da esquerda. É preciso identificar o que nos une sem perdermos a diversidade.

No BrCidades, todas e todos confluem nesse intuito de conformar um projeto coletivo com presença na opinião pública e enraizamento nos territórios populares, junto das periferias ativas, sem as quais não podemos chamar nossas cidades de democráticas. Ainda há muito por fazer e muita gente para entrar nesse “nós”, mas a disposição e a aposta na possibilidade de vê-lo concreto também é grande!