Fernanda Amim S. Machado¹
Após dois anos de espera por conta de uma pandemia que parecia não acabar, o carnaval de 2023 chegou e, junto com ele, chegaram as disputas e os embates que há anos rondam a maior manifestação cultural do Brasil. Em meio às discussões sobre fornecimento de banheiros, fechamento de ruas, organização do trânsito e monopólio de venda de bebidas, nenhuma delas é mais central do que a disputa sobre o sentido do carnaval de rua, ou seja, como ele deve ser tratado: apenas como um evento com apelo turístico ou como uma manifestação cultural com múltiplas dimensões, sendo a econômica apenas uma delas?
Apesar de esquecida, ocultada e secundarizada, essa questão é fundamental, já que a forma como o poder público enxerga a festa irá orientar a política pública a ser implementada em torno da mesma. Enquanto a percepção do “carnaval cultura” tem como centro a compreensão de que a festa popular é uma manifestação da cultura de um povo, e que precisa ser protegida e fomentada, a compreensão do “carnaval evento” parte da concepção de um produto turístico, abrindo espaço para a apropriação da festa por segmentos do mercado ligados à indústria do entretenimento e ao setor de bebidas.
A cada ano, a concepção do carnaval enquanto produto da indústria do turismo vem dominando a mente e o coração dos gestores municipais. Preocupados em atrair o maior número de turistas, de forma a aumentar exponencialmente o consumo no meio urbano e, consequentemente, a arrecadação de impostos, esses gestores vêm impondo de forma verticalizada uma “forma privada” de se planejar o carnaval que, aos poucos, tem gerado impactos significativos na forma de se brincar carnaval, com consequências drásticas para a formação da memória cultural desses lugares.
Com certa naturalidade, a grande mídia anuncia a despedida e o encerramento das atividades e apresentações de blocos tradicionais. Os grupos, que criam cultura e ocupam os espaços da cidade desde a época da redemocratização, vêm sendo obrigados a disputar atenção e – literalmente – espaço com os chamados “megablocos”, que geralmente não apresentam ligações com o território e com as diferentes expressões culturais que caracterizam e constroem a identidade do carnaval de rua da cidade do Rio de Janeiro. Esses megablocos têm contado, em anos recentes, com a enorme simpatia do governo municipal, o mesmo que durante muito tempo foi omisso em relação às manifestações que nunca deixaram de existir na cidade. Mais que isso, em diversas ocasiões a ação da Prefeitura criou dificuldade para que alguns blocos fossem às ruas, principalmente aqueles que não fazem parte da lógica e do circuito comercial.
Para melhor ilustrar a questão, podemos trazer como exemplo o caso do Cordão do Boitatá, tradicional bloco do carnaval de rua do Rio de Janeiro que há 27 anos realiza seu cortejo no centro da cidade e, há 17 anos, o Baile Multicultural da Praça XV de Novembro. Organizado por músicos, o grupo possui um vasto repertório abrangendo a diversidade de gêneros da música brasileira. São arranjos originais de Moacir Santos, Villa Lobos e Pixinguinha que ecoam pelas ruas da cidade, alegrando milhares de foliões no domingo anterior à folia e do carnaval.
O cortejo do bloco é realizado de forma acústica, por uma orquestra de rua composta por 100 integrantes. Já o festival multicultural conta com 15 músicos de referência do cenário carioca, que garantem um show totalmente gratuito para cerca de 80 mil pessoas, por mais de sete horas na Praça XV. Reconhecido como um “epicentro musical no centro do Rio”, mais de 100 artistas nacionais e internacionais, como Martinho da Vila, Marisa Monte, Teresa Cristina, João Donato, Yamandu Costa e Keziah Jones, já participaram do festival.
Cabe destacar que o grupo que participou do processo de revitalização da Lapa no final dos anos 90 e da Praça XV nos anos 2000, também promove nos dias atuais, o encontro de adolescentes do grupo “Mulecada que Agita” (do Morro da Serrinha e do Morro dos Macacos) com músicos amadores e profissionais que atuam, inclusive, em orquestras sinfônicas, bandas, blocos, universidades e escolas de samba.
Em 2022, o Boitatá recebeu da Câmara Municipal do Rio de Janeiro a medalha Pedro Ernesto, o Mérito Cultural da Secretaria Municipal de Cultura, e foi declarado Patrimônio Imaterial do Estado do Rio de Janeiro pela Assembleia Legislativa. Apesar de tudo isso, o grupo enfrentou por mais um ano problemas para a realização do bloco.
Embora tenha construído 27 anos de história e de luta pela preservação da cultura do Rio de Janeiro, reconhecidas pelas instâncias oficiais, até o meio de janeiro o Cordão do Boitatá estava proibido de acontecer por falta de espaço pois, supostamente, outros eventos estariam ocorrendo no mesmo dia e horário no centro da cidade. Após longas negociações, o bloco teve seu trajeto autorizado, apesar de ter sido encurtado e impactado por um megabloco marcado no mesmo horário a poucos metros de distância.
Este é um exemplo que reforça a hipótese de que o poder público se limita a entender o carnaval como uma atividade meramente turística. No fundo, o governo municipal mantém sua ausência enquanto condutor principal das políticas públicas culturais, focando suas ações em questões de logística e meramente operacionais.
O Estado precisa apresentar urgentemente uma política pública consistente que compreenda a complexidade do carnaval, mas tenha como norte aquilo que é a essência da festa, e que a diferencia dos demais eventos: a sua dimensão cultural. Não se trata aqui de opor cultura à economia, mas de reivindicar uma posição na qual as atividades econômicas decorrentes da festa carnavalesca não sejam o centro de atenção e motivação da política pública, e sim vistas pelo que são: desdobramentos de uma atividade que gera, dentre todas as riquezas possíveis, também a econômica.
¹ Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), mestra em Direito pelo PPGD/UFRJ, e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro.