Neste artigo Paula Hernandez Heredia busca mostrar a relação entre o atraso escolar, o abandono escolar e as carências habitacionais, vistas como consequência do fenômeno de segregação. O objetivo é fazer uma ligação teórica entre a família e a escolaridade do responsável, o domicílio e suas privações materiais, e a segregação socioterritorial da região metropolitana do Rio de Janeiro, bem como analisar as predisposições à aquisição do capital escolar medidas pelo atraso e abandono escolar.
O artigo “Carências habitacionais e rendimento escolar na região metropolitana do Rio de Janeiro”, de Paula Hernandez Heredia, é resultado da sua dissertação de mestrado desenvolvida dentro da linha de pesquisa do Observatório das Metrópoles, que deu origem ao Observatório Educação e Cidade, no âmbito do projeto Desigualdades de oportunidades e dimensões da alfabetização da educação básica no Estado do Rio de Janeiro (CAPES/INEP).
O projeto, orientado pelos professores Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Marianne Koslinski, traz como primeiro objetivo o mapeamento da geografia de oportunidades educacionais e a investigação do efeito vizinhança sobre o desempenho escolar na cidade e na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em sua origem, a principal questão da pesquisa era “avaliar como o contexto social da vida nas grandes cidades pode influenciar o desempenho do sistema escolar” (RIBEIRO; KOSLINSKI, 2009, p. 103). Nos estudos desenvolvidos no âmbito dessa pesquisa foram trabalhados os conceitos de efeito vizinhança, estratégias familiares de escolarização, segregação residencial, geografia de oportunidades, capital social, isolamento social, entre outros.
INTRODUÇÃO
Com base nas pesquisas Infancia en América Latina: privaciones habitacionales y desarrollo de capital humano (KAZTMAN, 2011) e Desigualdades de oportunidades e dimensões da alfabetização da educação básica no Estado do Rio de Janeiro (CAPES/INEP), realizada pelo Observatório Educação e Cidade, buscaremos entender e aprofundar certos aspectos da influência da cidade nas oportunidades educacionais de crianças e adolescentes. A ideia deste trabalho é entender o território não somente como recipiente de processos sociais mas também como esfera que produz efeitos nesses processos. O território é aqui entendido como espaço social, e as condições materiais de vida para a habitação são uma das possíveis formas de materialização desse conceito, uma vez que a criança é também socializada em um espaço que gera certas predisposições para a aquisição do capital escolar oferecido nas instituições de ensino.
A pesquisa Infancia en América Latina: privaciones habitacionales y desarrollo de capital humano (KAZTMAN, 2011) oferece os delineamentos metodológicos para a elaboração deste artigo. Na primeira parte do relatório é feita uma análise dos direitos das crianças presentes em diferentes convenções de organismos internacionais, e como esses direitos estão sendo postos em prática por meio de políticas públicas voltadas para a infância e habitação na região. A partir disso, o autor avalia indicadores em alguns países sobre saneamento, água, esgoto e o rendimento escolar, e faz um balanço sobre a situação de 17 países da América Latina.
Na última parte do relatório se apresenta uma parte fundamental para nosso trabalho, já que o autor estabelece uma relação direta entre carências habitacionais e educação. Além de apontar a importância do capital social e o valor da família, ele mostra como a qualidade da moradia se associa ao lugar onde está localizada a pobreza territorialmente, e como essa traz diferentes dificuldades para as crianças que habitam nesses lugares, como, por exemplo, problemas de saúde, de autoestima, entre outras questões que têm consequências sobre o rendimento escolar.
Desse modo, este artigo se desenvolve a partir de três dimensões de análise: a primeira é a família e sua relação com a escola; a segunda é o domicílio e suas condições materiais; e a última é o território como esfera que exerce impacto sobre a distribuição de oportunidades, em especial oportunidades educacionais. A segunda dimensão propõe uma visão diferenciada em relação aos estudos já desenvolvidos no Observatório Educação e Cidade, considerando a habitação como fator que também exerce influência sobre o desempenho escolar. A terceira dimensão, referente aos contextos sociais (socialização, característica dos indivíduos que vivem em certa vizinhança) ou oportunidades no território (distribuição de bens e serviços), será incluída em nossa análise, apesar de estar ausente no relatório elaborado por Kaztman (2011). Tal inclusão permitirá mapear a relação entre a segregação e condições de habitação, bem como a relação desses dois fatores com a distribuição de oportunidades educacionais na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Para tanto, o trabalho parte das seguintes questões: as privações habitacionais afetam as oportunidades educacionais, em especial o atraso escolar, mesmo controlando por origem socioeconômica, cultural e cor do aluno? Quais características relacionadas a privações habitacionais têm maior peso sobre a distribuição de oportunidades educacionais? Tais privações afetam alunos de maior e menor nível socioeconômico de forma igual ou tendem a impactar certos grupos mais que outros? A melhora dos indicadores educacionais poderia ser promovida por meio de políticas públicas habitacionais?
CARÊNCIAS HABITACIONAIS
Este trabalho relaciona a existência dessas carências com o rendimento escolar das crianças. O relatório base (KAZTMAN, 2011) usado para este estudo mostra que a qualidade da moradia está associada à pobreza urbana e que condições habitacionais alteram os resultados educacionais. Isso quer dizer que melhorar fatores como esgotamento sanitário, material de paredes e fontes de água, por exemplo, seria uma medida complementar que auxiliaria a tarefa da escola de ensinar. As oportunidades são limitadas pelo clima escolar do lar e pela pobreza, mas as condições de moradia também têm impacto sobre os indicadores de defasagem escolar e, consequentemente, sobre a apropriação de capital escolar.
Segundo Kaztman (2011), o lar representa um lugar de formação da identidade das crianças, é um espaço de proteção das inclemências climáticas e do ambiente, um espaço de intimidade. Quando não existem essas condições, as consequências são problemas de saúde nas crianças, causados por insalubridade, e até psicológicos, no que diz respeito a sentimentos de insegurança e rejeição ao lugar de moradia. Assim, os efeitos das privações habitacionais sobre as chances de aquisição do capital escolar não ocorrem apenas na dimensão material, mas também moral.
Além de enxergar as consequências das carências habitacionais na saúde e no rendimento escolar das crianças, este trabalho entende que essas carências também afetam as estratégias educacionais por parte das famílias. Segundo Kaztman (2011), essas variáveis relacionadas à habitação são importantes para a saúde das crianças, pois determinam maior ou menor possibilidade de adquirir doenças. Além disso, também são importantes em termos de construção da personalidade, já que as crianças precisam de um lar que ofereça zonas de intimidade, de diversão e de realização de tarefas. Perante a inexistência de espaços separados e salubres, é possível que a convivência familiar e o rendimento escolar sejam afetados.
Assim, a existência de carências habitacionais, que se manifestam pela precariedade de infraestrutura de esgotamento sanitário, de abastecimento de água e pela pouca delimitação de espaços para os moradores (adensamento), tem consequências sobre o desenvolvimento da criança, que fica vulnerável a catástrofes relacionadas ao clima e a problemas de saúde causados por contaminação ou falta de salubridade. Além de afetar fisicamente a criança, a falta de infraestrutura afeta psicologicamente a construção de sua personalidade. Tudo isso desemboca em problemas de desempenho, com a impossibilidade de obter certas conquistas educativas e de construir capital social.
O espaço é um reflexo das relações sociais, e essa fragilização da família se materializa na existência de carências, no mesmo sentido de que essa existência de carência gera impossibilidade para uma criança de ter espaços de lazer, de estudo e de intimidade. No que diz respeito ao papel da família,
[…] o enfraquecimento estrutural das instituições primordiais se intensificou com o surgimento de um novo padrão familiar, que se caracteriza por sua baixa qualidade para cumprir as funções tradicionais de socialização e integração social. […] tanto a família quanto as redes de parentesco ofereceram tradicionalmente a seus membros e à comunidade o núcleo básico em que fundavam as formas de proteção e segurança diante do risco. Igualmente importante foi a função da família, orientada à obtenção de ativos que logo seriam mobilizados (KAZTMAN, 1999, p. 11, tradução nossa).
Acesse no link a seguir o artigo completo “Carências habitacionais e rendimento escolar na região metropolitana do Rio de Janeiro”, destaque da Revista eletrônica e-metropolis nº 16.