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O Observatório das Metrópoles promove o lançamento da edição nº 31 da Revista Cadernos Metrópole, que traz como destaque o dossiê “Teoria Urbana e Cidade Neoliberal na América Latina”. A publicação visa abrir espaço para os acadêmicos que em vários países da América Latina vêm retomando os esforços de reconstrução do pensamento latino-americano sobre a cidade, em diálogo crítico com uma teoria urbana globalizante.

Acesse a edição nº 31 da Revista Cadernos Metrópole.

 

APRESENTAÇÃO

Por Lucia Bógus e Luiz César de Q. Ribeiro, Editores Científicos

Sob o impacto da explosão do crescimento das grandes cidades, no período 1950/1970, surgiu na América Latina um pensamento urbano que buscava encontrar os marcos estruturais- históricos da nossa formação urbana. Marcado pelo debate entre as teorias da dependência, da modernização e do imperialismo e pelo reconhecimento da diversidade das cidades do continente, esse pensamento teve grande influência no debate internacional. Expressava uma atitude intelectual de estabelecer uma relação crítica com as próprias formulações críticas sobre o desenvolvimento capitalista – vale dizer, o marxismo – pela qual as categorias de pensamento necessitavam ser historicizadas diante da experiência histórica dos países latino-americanos, sem o que o pensamento se destituía de sua capacidade cognitiva.

Posteriormente, contudo, a partir da institucionalização das disciplinas das ciências sociais e suas especializações sobre os temas urbanos, o vigor intelectual desse debate foi obscurecido pelo poder “geo-cultural” das grandes universidades do mundo europeu e norte-americano e sua capacidade de hegemonizar o pensamento urbano na escala global. Uma verdadeira divisão mundial do trabalho se estabeleceu no campo acadêmico, pela qual às instituições e aos pesquisadores dos países do mundo euro-americano caberia a formulação de conceitos e teorias com pretensões de legitimidade universais, enquanto aos posicionados nas periferias e semiperiferias caberiam as tarefas de colocá-los à prova empírica.

O presente número da revista Cadernos Metrópole busca abrir espaço para os acadêmicos que em vários países latino-americanos – e em outros continentes – vêm retomando os esforços de reconstrução do pensamento latino-americano sobre a cidade, em diálogo crítico com uma teoria urbana globalizante, nos planos teórico, conceitual e empírico. Ele repercute a iniciativa de um grupo de pesquisadores do continente em criar um movimento intelectual-acadêmico que retome o projeto de pensar a especificidade dos processos de urbanização e de mudanças das grandes cidades latino-americanas.

Tal iniciativa está em sintonia com um movimento mais amplo que reúne acadêmicos, pesquisadores e intelectuais de vários países que vêm pensando e discutindo a necessidade de construir uma perspectiva crítica desde o “Sul” sobre a globalização cultural que impera nas ciências sociais em geral e nas disciplinas desse ramo de conhecimento que se dedica aos temas urbanos.

 

A ampla adesão de pesquisadores à proposta editorial dos Cadernos Metrópole evidencia que o tema atende à necessidade do mundo acadêmico latino-americano de encontrar formas ativas de resistência ao poder cultural que criou uma geo-epistemologia global, cujo centro são as grandes universidade do mundo euro-americano. Trata-se de uma batalha tanto mais importante na medida que o controle do conhecimento é hoje a fronteira de expansão capitalista, dada sua importância capital no desenvolvimento das Nações.

O continente latino-americano vive um momento especial, que impõe refletirmos sobre os paradigmas com os quais temos analisado as nossas particularidades como periferia da economia mundo capitalista e as nossas possibilidades históricas para encontrar caminhos alternativos na atual fase de crise da “virada neoliberal” iniciada nos anos 1970. Após a recessão dos anos 1980 e as políticas neoliberais dos anos 1990, observa-se em vários países crescimento econômico com diminuição das desigualdades de renda, embora de modo geral os coeficientes de Gini permaneçam muito mais elevados do que a média mundial. Trata-se da combinação de efeitos pró-ciclos do crescimento econômico impulsionado por dinâmica exportadora de commodities e pela expansão do mercado interno. Simultaneamente, surgiram em vários países políticas sociais de transferência de renda, ao mesmo tempo em que os Estados retomaram seus antigos compromissos com os direitos sociais, notadamente na educação e na saúde, o que se expressa no aumento dos gastos sociais. Também surgiram, em vários países da região, políticas de aumento real do salário mínimo e do PIB per capita.

Este conjunto de mudanças se associa à crise do projeto neoliberal nos países centrais e ao surgimento de governos que expressam novas correlações de forças, com a maior presença dos partidos e grupos populares. Para muitos analistas, o continente latino-americano ingressou desde os primeiros anos do século XXI em uma etapa de transição marcada por uma crise de hegemonia do modelo liberal3 de desenvolvimento que orientou as políticas econômicas nos anos 1990. Com efeito, a economia mundial atravessou desde 1994 um longo período de crescimento, apesar das frequentes crises, mas simultaneamente acontecem mudanças profundas na direção do enfraquecimento das condições econômicas, financeiras, políticas e ideológicas do projeto neoliberal em marcha desde a segunda metade dos anos 1970. Para vários analistas da cena política dos países latino-americanos, vêm surgindo no continente projetos de enfrentamento da política neoliberal.

O que vem acontecendo nas cidades da América Latina? Segundo o documento Estado das Cidades da América Latina e Caribe, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), a taxa de urbanização no Brasil e nos países do Cone Sul chegará a 90% até 2020, só superior às verificadas no norte da Europa (84,4%) e da América do Norte (82,1%). No México e nos países que formam a região andino-equatorial a urbanização chega a 85%. No Caribe e na América Central, as taxas de urbanização são mais baixas, mas em elevação constante, devendo chegar a 83% e 75% da população urbana em 2050, respectivamente. Mas as sociedades urbanas em emergência se expressam também pela enorme concentração da população em grandes cidades, embora em ritmo mais lento do que o verificado no passado. Segundo o mesmo estudo, hoje, 34 % da população da América Latina vive em cidades com mais de 1 milhão de habitantes e 20% em centros metropolitanos, concentrando mais de 5 milhões de pessoas.

Mas as cidades na América Latina conformam também o território de concentração dos ativos e dos passivos de seus países. Ainda segundo o documento da ONU/Habitat, cerca de 2/3 do PIB concentram-se nas regiões urbanas e, ao mesmo tempo, há extremados índices de carência, polarização e desigualdades sociais. Com efeito, 111 milhões de pessoas ainda moram em moradias consideradas subnormais em termos de padrões habitacionais, 74 milhões de pessoas (16%) em moradias sem saneamento adequado e menos de 20% do esgotamento da água usada e do resíduo sólido é tratado antes de ser despejado. A polarização e as desigualdades sociais em termos de renda vêm diminuindo nos últimos anos em alguns países – Panamá, México, El Salvador, Honduras, Brasil, Venezuela, Uruguai e Peru – mas mantêm-se em elevados patamares, o que faz das cidades da América Latina as que apresentam os maiores índices de inequidade do planeta. Tal desigualdade da estrutura social traduz-se na constituição de cidades duais, divididas e segregadas como marcas da organização do território urbano, com importantes impactos nos padrões de sociabilidade.

Tais números indicam que os países ingressaram em sociedades urbanas, mas com cidades ainda fortemente precárias e improvisadas para cumprir seu papel de espaços sociais fundamentais para a produção e a reprodução da vida. Por outro lado, o mesmo estudo da ONU/Habitat menciona a retomada em alguns países de políticas urbanas e habitacionais regulatórias e de promoção de bem-estar coletivo, praticamente abandonadas no período neoliberal dos anos 1990. Em vários deles surgiram, por exemplo, políticas de provisão de moradia fundadas no subsídio fornecido pelo orçamento público para aquelas famílias que sempre estiveram fora do mercado imobiliário. No Brasil, a constituição de 1988 e a lei federal conhecida como Estatuto das Cidades fixaram, como princípio da política e da gestão urbana, a função social da propriedade privada do solo urbano e da própria cidade.

Simultaneamente à retomada de políticas públicas de provisão de moradia de interesse social, observa-se nos países do continente a inexistência de ações públicas de regulação do mercado de terras e de ordenamento do uso e da ocupação do solo. Ao mesmo tempo, em várias cidades latino-americanas vem sendo adotado o modelo de política concebido sob a ótica da competitividade urbana, o que se expressa por projetos que visam ativar e promover reformas urbanas que liberem a cidade dos fatores institucionais, culturais, sociais e urbanísticos que bloqueiam o pleno funcionamento dos circuitos de acumulação urbana. São experimentos regulatórios liberais usando a formulação de Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore no, hoje, famoso artigo Depois da Neoliberalização? publicado nos Cadernos Metrópole, 2012, v. 14, n. 27 – entendidos como ações pontuais realizadas em vários âmbitos da ação do Estado e em suas múltiplas escalas com o poder de impor, intensificar e reproduzir modalidades de políticas e governança urbana focadas na mercantilização da cidade. No plano das cidades, assistimos, portanto, a uma disputa entre modelos de políticas neoliberais e reformistas.

Uma das preocupações que orientaram a organização deste número é a de que esta disputa de projeto de cidade e sua experimentação ganham centralidade no atual momento de confronto de projetos políticos nacionais liberais e reformistas, em vários países da América Latina. Disputa marcada, por um lado, pela crise de hegemonia do modelo liberal global, e, por outro, pelas dificuldades das esquerdas de construírem um projeto alternativo com a capacidade contra–hegemônica para conduzir a oportunidade de transição aberta para os países do continente.5 Como afirma Eder Sader (2007), a construção do projeto hegemônico pós-liberal depende do conhecimento das transformações ocorridas na América Latina, em especial da nova estrutura social de recomposição da força de trabalho ocorrida nos períodos liberal e pós-liberal e, ao mesmo tempo, do conhecimento dos elementos e mecanismos pelos quais a concepção liberal de mundo se afirma e se difunde nas sociedades do continente. Em outras palavras, trata-se de entender os mecanismos de construção e de legitimidade do projeto liberal.

Traçando um paralelo entre esse período recente com outro momento da história política da América Latina, nossa hipótese é que a crise urbana e suas representações nos campos político, acadêmico, jornalístico e na sociedade civil vêm realizando papel semelhante ao assumido pela crise dos serviços públicos nos anos 1980 e 1990: veículo e mecanismo de construção de consentimento de uma nova rodada de neoliberalização que participa ativamente da fragilização da hegemonia dos projetos antiliberais.

Conforma-se, assim, um paradoxo cuja compreensão é fundamental. Enquanto muitas políticas na escala federal parecem mover-se na direção antiliberal, mas em constante conflito com as políticas macroeconômicas ainda de orientação liberal por fundarem-se em seus princípios – metas de inflação, câmbio flutuante e superávit fiscal – experimentos regulatórios liberais na cidade vão afirmando seu contrário, muitas vezes através da associação entre políticas urbanas locais liberais com políticas nacionais com pretensões antiliberais. Ao mesmo tempo, experimentos de políticas urbanas locais claramente neoliberais são difundidos e adotados, ainda que parcialmente, por escalas supralocais em políticas que se pretendem regulatórias antiliberais.6 O exemplo é o novo modelo de relação entre o Estado e os interesses dos capitais representado pela Parceria Público-Privado.

A compreensão dos fundamentos desse paradoxo da cidade exige ir além dos fatos mais imediatos da presente conjuntura. Devemos nos indagar sobre as relações econômicas e políticas entre as forças presentes nas cidades com aquelas que vêm comandando o desenvolvimento das relações capitalistas na América Latina. Tais relações foram sempre biunívocas, especialmente naqueles países que conheceram a expansão do capitalismo industrial. Em outros termos, em muitos países do continente se estabeleceu uma relação orgânica entre o capitalismo industrial e o que poderíamos chamar de “capitalismo urbano”, pela qual pôde se legitimar o padrão liberal do desenvolvimento latino-americano. A cidade foi, portanto, historicamente controlada pelas forças do mercado como fundamento de um bloco de poder que comandou nossa inserção na expansão do moderno sistema capitalista. Este fato político-econômico decorre da acomodação das forças dominantes internas aos países latino-americanos à inserção associada às forças liberais-internacionalizantes que surgem e se expandem desde o século XVI, a partir do núcleo do moderno sistema capitalista.

Os textos reunidos no dossiê referem-se a esse debate, evidenciando as distintas manifestações do embate neoliberal em diferentes contextos da sociedade latino-americana.

O artigo de José Luiz Coraggio retoma o pensamento e os conceitos elaborados por Karl Polanyi, traçando um paralelo entre o pensamento desse autor e o atual debate contra o neoliberalismo, ressaltando a importância de se fazer uma leitura do continente latino-americano a partir da própria América Latina. Aponta a coerência entre a contribuição de Polanyi e a proposta de construir “outra economia” a partir de práticas de economia social e solidária.

Emílio Pradilla Cobos analisa as características da cidade capitalista forjada no contexto neoliberal de acumulação vigente na América Latina. Ressalta suas peculiaridades e adverte para a dificuldade de elaborar análises com conceitos elaborados a partir e para o estudo de cidades do chamado mundo desenvolvido. Para ele, a análise das cidades latino-americanas no neoliberalismo vigente deve considerar a combinação entre o novo e o velho, a existência de um desenvolvimento desigual e combinado e as especificidades históricas de cada uma dessas cidades.

Focalizando os processos de produção de teorias e marcos conceituais voltados à análise das cidades latino-americanas e à formulação de políticas urbanas, Ana Núñez e Jorge Roze, a partir do caso das cidades médias da Argentina, propõem a revisão das bases epistemológicas de um pensamento desvinculado das situações empíricas às quais a formulação de políticas urbanas deve estar necessariamente referida.

De fato, como aponta Victor Delgadillo, ao longo das últimas décadas surgiram na América Latina em cidades de diferentes países, políticas públicas e “receitas” urbanísticas similares, de eficácia supostamente comprovada, que parecem ignorar tanto as especificidades históricas como os problemas e desafios presentes nos diferentes contextos urbanos. Compreender as circunstâncias que produzem a formulação e implementação de programas e políticas urbanas semelhantes em contextos políticos com orientações distintas constitui a proposta central do autor. Nesse sentido, o conceito de espaço público tem se tornado polissêmico, ideologizado e idealizado, sobretudo quando se trata de legitimar a estruturação capitalista das cidades e mascarar as desigualdades sociais que, para serem combatidas, necessitam de políticas específicas, adequadas a cada situação concreta. A partir da análise da cidade de Cuernavaca, no México, Carla Alexandra Filipe Narciso discute os usos políticos do conceito de espaço público e a necessidade de sua revisão.

Avançando nesse debate e indagando sobre o que se entende, hoje, por cidade neoliberal na América Latina, Hélène Rivière d’Arc apresenta algumas reflexões sobre eventos que pontuaram a história das cidades e identifica algumas categorias de análise utilizadas nas investigações sobre as cidades latino-americanas, desde os anos 1990, e destaca seis paradigmas de análise que orientaram importantes trabalhos de investigação sobre o processo de urbanização em diferentes países latino-americanos, salientando simultaneidades e similaridades desse processo.

Passando para outra escala de análise, Igor Pouchain Matela, sobre as empresas de ônibus na cidade do Rio de Janeiro, trabalha com a hipótese de que a reorganização do transporte no Brasil expressa a agudização do processo de neoliberalização e estaria produzindo alterações estruturais na organização espacial vigente. Para esse autor, a modernização das formas de acumulação urbana tende a estabelecer padrões de regulação nos serviços públicos ligados à lógica de mercado.

Em artigo sobre as migrações internas no Peru e a explosão urbana de Lima na segunda metade do século XX, Beatriz Silveira Castro Filgueiras investiga o protagonismo desses movimentos populacionais – sobretudo em comparação com outras metrópoles latino-americanas e considerando os diagnósticos característicos do pensamento urbano regional neste início de século – como elemento central nos discursos e imaginários sobre a metrópole contemporânea. Por um lado, trata-se de compreender as especificidades daqueles processos no caso peruano, no marco mais geral da urbanização latino-americana e dos discursos canônicos que marcaram seu entendimento. Por outro lado, em diálogo com estudos mais recentes, destaca-se a persistente centralidade do fenômeno migratório nos discursos contemporâneos sobre a cidade e suas dinâmicas socioespaciais.

Além de um convite à reflexão e à realização de novas pesquisas, este conjunto de textos vem contribuir para o debate de alguns dos principais processos em curso nas cidades latino-americanas.