Mutirão Paulo Freire, em São Paulo — experiência de moradia autogestionária Crédito: Site Usina/Reprodução
O Brasil alcançou a marca de 70 mil moradias financiadas pelo programas Crédito Solidário e MCMV Entidades, viabilizando formas associativas de produção, entre 2005 e 2015. Essa produção pode ser qualificada como marginal frente à produção empresarial de mais de um milhão de moradias. Porém, essa ínfima porção fomentou um expressivo canteiro experimental de práticas coletivas de produção habitacional, ao financiar diretamente movimentos sociais, associações comunitárias e cooperativas habitacionais. Neste artigo para o Le Monde Diplomatique Brasil, Luciana Corrêa do Lago analisa a trajetória de luta dos movimentos de moradia no país, que desde os anos 80 vêm atuando politicamente para a reivindicação do direito à cidade, para a produção de uma outra cidade, mais solidária e destinada à economia popular urbana e ao hábitat popular.
O artigo “Autogestão habitacional e a politização das práticas econômicas populares”, de autoria do profª Luciana Corrêa do Lago (IPPUR/UFRJ) é mais uma texto da série “O Direito à Cidade em tempos de crise”, parceria da Rede INCT Observatório das Metrópoles com o site Le Monde Diplomatique Brasil. A série tem como objetivo monitorar os avanços e conquistas na afirmação do direito à cidade no Brasil, denunciar retrocessos e apontar tendências para o futuro das cidades brasileiras.
Segundo Luciana Corrêa do Lago, o associativismo protagonizado nos últimos anos pelos movimentos sociais foi gestado ainda nos anos setenta, nas práticas de mutirão comunitário organizadas principalmente pelo setor progressista da igreja católica. Desde então, formas diversas de organização e produção dos espaços populares urbanos foram se sobrepondo e se inscrevendo na trama complexa de relações mercantis e não mercantis mais ou menos solidárias que dão forma à economia popular urbana e ao hábitat popular (Coraggio, 2009).
“A maioria dos empreendimentos habitacionais autogeridos está localizada nas periferias urbanas, muitos deles nas franjas das cidades. Encontramos aí a reprodução da histórica segregação que marca o espaço urbano brasileiro, embora a chegada de empreendimentos organizados por movimentos sociais atuantes politicamente nas escalas supralocais, altere a dinâmica local e o campo de disputa por recursos públicos e por controle social sobre os serviços públicos”, explica a professora e completa:
“Entre as alterações, encontramos a chegada de escolas, creches e parques como resposta às reivindicações. Além disso, a experiência prática do trabalho associado e dos princípios da autogestão é também uma experiência de politização, de tomada de consciência das formas de dominação na sociedade capitalista e das alternativas para a emancipação e para a elevação das condições de bem-estar urbano de todos os trabalhadores e suas famílias, de acordo com seus projetos e desejos”, afirma.
A seguir o artigo “Autogestão habitacional e a politização das práticas econômicas populares”. A análise também está disponível no site do Le Monde Diplomatique Brasil.
Autogestão habitacional e a politização das práticas econômicas populares
Luciana Corrêa do Lago
As cidades latino-americanas estão imersas num contexto político-econômico marcado por novas e velhas contradições. Assistimos, desde os anos 90, ao crescente poder dos agentes financeiros em pautarem e controlarem as condições de vida em nossas cidades, em particular as condições de acesso à moradia e serviços públicos. Se na década de 90 a tônica foram as políticas de privatização desses serviços alterando a distribuição do fundo público em favor das grandes corporações internacionais, na década seguinte, o grande capital imobiliário, agora inserido no circuito financeiro internacional, assumiu lugar privilegiado na disputa pelo fundo público. A habitação tornou-se um fator macroeconômico estratégico e importante dinamizador do capital financeiro.
Como consequência, grandes conjuntos habitacionais populares foram produzidos nas periferias das grandes cidades contando com vultosos recursos públicos enquanto as áreas centrais se tornaram objeto de requalificação e valorização imobiliária por meio de parcerias público-privadas legitimadoras das políticas de remoção dos setores populares de suas áreas de residência. Em síntese, perpetua-se nas grandes cidades latino-americanas, entre elas Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires, Santiago e Cidade do México, a histórica (re)produção da segregação espacial das classes trabalhadoras nas periferias urbanas.
O Brasil pode ser visto como um dos exemplos mais acabados do quadro descrito anteriormente. A política habitacional implantada em 2009 recolocou a “casa própria” como necessidade primeira e urgente. Em nome da urgência em zerar o chamado “déficit habitacional”, instrumento legitimador do caráter apenas quantitativo da política, centenas de milhares de domicílios foram construídos nas fronteiras urbanas ou além delas, aonde a cidade não chegou, mas com a promessa governamental de que chegaria em breve. Não encontramos qualquer princípio de bem-estar urbano orientando essas ações edilícias protagonizadas pelas grandes construtoras; encontramos sim, a negação da cidade, porém num contexto paradoxal. A elevação da capacidade de consumo de grande parte da classe trabalhadora brasileira, seja pelo aumento real do salário mínimo, seja pela facilitação ao crédito, garantiu até 2015, significativa melhoria nas condições de reprodução das famílias, no que se refere à alimentação, aos bens duráveis, ao lazer, à casa salubre etc. Não se tratou apenas da integração dos trabalhadores no mercado, mas pelo mercado, como consumidores. E essa entrada de novos segmentos da classe trabalhadora no consumo de massa foi acompanhada pela adesão prática e ideológica desses segmentos ao “individualismo competitivo e agressivo” como princípio das relações sociais. (Chauí, 2013)
Mas no governo de coalizão concertado pelo Partido dos Trabalhadores, algum espaço de negociação foi aberto para as organizações de trabalhadores e os movimentos sociais engajados na luta pela redistribuição do fundo público, incluindo nele os imóveis de propriedade do Estado. Esse foi o caso dos movimentos nacionais de moradia, atuantes no Fórum Nacional de Reforma Urbana, que a partir de 2003 conquistaram alguns poucos espaços de negociação e receberam como resposta do governo federal a abertura do financiamento direto às organizações populares para a produção de moradia por autogestão.
Como resultado, o Brasil abriga hoje uma diversidade de experiências associativas no campo da produção habitacional, impulsionada pelos programas federais Crédito Solidário e Minha Casa Minha Vida Entidades, o primeiro implantado em 2005 e substituído pelo segundo em 2009. Esses programas não foram pensados como política de fomento a experimentações inovadoras e alternativas à produção empresarial massiva, mas como resposta enviesada às reivindicações dos movimentos de moradia que, desde o processo constituinte, lutam pela gestão democrática de um fundo nacional para financiamento da habitação popular no país.
Esse fundo foi criado por lei em 2008, porém foi esvaziado a partir do lançamento do programa Minha Casa Minha Vida, cujos recursos circularam até agora por fora do fundo, como forma de facilitar e agilizar o financiamento direto às empresas construtoras. Em síntese, a conquista pelos movimentos sociais de recursos públicos para a produção associativa da moradia não foi acompanhada por uma alteração na correlação de forças por trás das normas e princípios que regulam o uso desses recursos, muito menos pela redistribuição das terras públicas.
Chegamos até agora a cerca de setenta mil moradias no país financiadas pelos dois programas citados, que viabilizaram formas associativas de produção, entre 2005 e 2015. Podemos qualificar essa produção como marginal frente à produção empresarial de mais de um milhão de moradias, garantida por recursos públicos. Porém, essa ínfima porção do montante financiado fomentou até o momento a formação de um expressivo canteiro experimental de práticas coletivas de produção habitacional, ao financiar diretamente movimentos sociais, associações comunitárias e cooperativas habitacionais. Movimentos de moradia, que desde os anos 80 vêm atuando politicamente em todas as esferas de poder reivindicando o direito à (produção de uma outra) cidade, ampliaram a natureza das suas ações ao assumirem a produção de empreendimentos habitacionais com financiamento estatal.
Como agentes produtivos, os movimentos de moradia passaram a enfrentar novos embates, sobretudo com as instituições públicas envolvidas diretamente na gestão da política habitacional. A principal bandeira desses movimentos tem sido inverter a lógica dominante da produção imobiliária, qual seja, produzir moradias para o uso dos trabalhadores e não para a valorização no mercado imobiliário. Essa bandeira exigiu inovações e insurgências de diversas ordens, a começar pela reação às próprias normas impostas pelo Ministério das Cidades e pela Caixa Econômica Federal, baseadas nos princípios de eficiência da lógica mercantil e de rentabilidade (redução de riscos) financeira.
São muitas as diferenças na forma de gestão e produção dos empreendimentos entre as regiões do país e entre as organizações sociais gestoras. Mas as experiências acumuladas forjaram a elevação dos parâmetros de bem-estar urbano a partir do questionamento do padrão de moradia instituído e moralmente aceito para as famílias de baixa renda. A parceria entre os movimentos e a assessoria técnica foi estratégica para a ampliação das possibilidades de inovação e a construção dessa parceria, quando sustentada em trocas horizontais de conhecimento, foi um desafio permanente. Estão em jogo, nessa relação, ideais de bem-estar urbano e valores estéticos distintos. E quando encontramos inovações nos empreendimentos, encontramos também um acúmulo de práticas de convencimento mútuo (ou práticas democráticas) entre os cooperados e suas assessorias. Esse processo de aprendizagem foi motivado pela luta dos movimentos pela apropriação da cidade, para transformá-la num bem comum.
Como desdobramento, começaram a se configurar práticas inovadoras como a formação de cooperativas de trabalho em setores diversos como os da construção civil e da gastronomia, pensadas como estratégias de sustentabilidade financeira das famílias associadas e dos próprios empreendimentos depois de concluídos, assim como para garantir trabalho qualificado no setor da construção para os futuros empreendimentos. No entanto, essas práticas ainda são exceção e devem ser vistas como casos exemplares para refletirmos sobre a histórica dissociação entre a luta pelo direito à cidade e a luta pelo direito ao trabalho digno.
No contexto atual de ampla crise econômica e política, o acúmulo por todas as regiões do país, de experiências associativas populares dedicadas à produção habitacional nos desafia a pensar a potência organizativa dessa aprendizagem coletiva no quadro mais amplo da economia popular urbana. O associativismo protagonizado nos últimos anos pelos movimentos sociais foi gestado ainda nos anos setenta, nas práticas de mutirão comunitário organizadas principalmente pelo setor progressista da igreja católica. Desde então, formas diversas de organização e produção dos espaços populares urbanos foram se sobrepondo e se inscrevendo na trama complexa de relações mercantis e não mercantis mais ou menos solidárias que dão forma à economia popular urbana e ao hábitat popular (Coraggio, 2009).
A autoprodução da casa e do bairro foi e continua sendo um processo de aprendizagem para o exercício de diferentes profissões e grande parte do contingente de operários do setor construtivo não é absorvido pelo mercado empresarial, mesmo em períodos de crescimento, como o dos últimos anos. Os milhares de trabalhadores que estão total ou parcialmente fora do segmento empresarial exercem papel relevante na economia dos territórios populares, seja criando “empresas” familiares de construção por encomenda e de produção ou revenda de materiais de construção, seja assumindo tais atividades por conta própria ou de forma associativa.
Essas “empresas” têm um forte vínculo territorial, sendo compostas não apenas por parentes consanguíneos, mas por moradores de uma mesma vizinhança. São “empresas” que funcionam com base na confiança pessoal, porém atravessada por clara hierarquia interna de comando e elevada rotatividade dos trabalhadores. Trata-se de um campo produtivo diverso e complexo, que abriga relações de exploração do trabalho, de solidariedade e de cooperação. As experiências associativas no campo habitacional realizadas pelos movimentos sociais podem estimular a conversão dessas diversas formas de atividades da economia popular em um subsistema econômico em que os princípios da reciprocidade e da redistribuição regulem as práticas mercantis na transição para uma cidade igualitária e uma economia social.
A maioria dos empreendimentos habitacionais autogeridos está localizada nas periferias urbanas, muitos deles nas franjas das cidades. Encontramos aí a reprodução da histórica segregação que marca o espaço urbano brasileiro, embora a chegada de empreendimentos organizados por movimentos sociais atuantes politicamente nas escalas supralocais, altere a dinâmica local e o campo de disputa por recursos públicos e por controle social sobre os serviços públicos.
Entre as alterações, encontramos a chegada de escolas, creches e parques como resposta às reivindicações. Além disso, a experiência prática do trabalho associado e dos princípios da autogestão é também uma experiência de politização, de tomada de consciência das formas de dominação na sociedade capitalista e das alternativas para a emancipação e para a elevação das condições de bem-estar urbano de todos os trabalhadores e suas famílias, de acordo com seus projetos e desejos.
Enfim, queremos enfatizar que, como construção social, a noção de bem-estar urbano é objeto de disputa e está na pauta dos movimentos sociais. As experiências autogestionárias acumuladas até agora poderão alimentar essa disputa, expondo a unidade entre as esferas do trabalho e da reprodução da vida por meio das práticas cotidianas.
REFERÊNCIAS
Chauí, Marilena “A nova classe trabalhadora”. In: Sader, E. 10 anos de governos pósneoliberais no Brasil – Lula e Dilma. São Paulo, Boitempo, 2013.
Coraggio, Jose Luis “Territorio y economías alternativas”. Palestra no I Seminario Internacional Planificación Regional para el Desarrollo Nacional. La Paz, 2009.http://www.coraggioeconomia.org/jlc/archivos%20para%20descargar/Territorio_y_economias_alternativas.pdf
SÉRIE
O Direito à Cidade em tempos de crise
A série “O Direito à Cidade em tempos de crise” é uma parceria do Le Monde Diplomatique Brasil com o INCT Observatório das Metrópoles. A série tem como objetivo suscitar a reflexão e monitorar os avanços e conquistas na afirmação do direito à cidade no Brasil, denunciar retrocessos e apontar tendências para o futuro das cidades brasileiras.
A cidade transformou-se, em pleno século XXI, no palco principal das lutas políticas e sociais. A reprodução da vida, individual e coletiva, biológica e social, depende cada vez mais da qualidade do meio urbano construído que se expressa na forma social que chamamos de cidade, mas que está também se expressa na sociedade urbana global.
Ao mesmo tempo, a atual crise do capitalismo tornou a cidade uma nova fronteira de escoamento do capital sobre acumulado e financeirizado. Estes dois movimentos tornaram a cidade palco e objeto das lutas contemporâneas de classes, opondo a razão da reprodução da vida à razão da reprodução do capital. Esta contradição global está também cada vez mais presente no Brasil.
Com efeito, ingressamos na sociedade urbana com legado de cidades historicamente precárias, nas quais estão presente dois projetos antagônicos em disputa. De um lado, o representado pelos ideais, princípios e mecanismos da reforma urbana que obteve alguns avanços na afirmação do direito à cidade, no período 2003-2013. De outro lado, o projeto representado pela ideologia neoliberal que em nome do empreendedorismo urbano, tem incentivado a adoção de políticas urbanas habilitadoras das forças mercantilizadoras do solo urbano, da moradia, privatização dos serviços coletivos, entre outros.
Mas qual desses projeto irá predominar diante do atual quadro de crise político-econômica de longa duração no país? Se caso a saída para a crise for conservadora e ultra liberal, isso representará um provável retrocesso das conquistas do direito à cidade no Brasil. E é esse um dos principais campos em disputa.
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Publicado em Artigos Semanais | Última modificação em 23-06-2016 17:59:49