O Governo do Estado do Rio Grande do Sul divulgou recentemente (em 21/11/2016) as medidas para “modernizar o Estado”. Entre essas medidas está a extinção de nove fundações, a maioria delas vinculadas a áreas de ciência e tecnologia (C&T). Portanto, vejamos alguns pontos de discussão sobre isso, ao meu ver imprescindíveis para o futuro econômico do RS.
Primeiramente, não podemos deixar de ressaltar que atualmente vivemos o paradigma da economia do conhecimento. Assim, todo país ou região no mundo, com alguma pretensão de desenvolvimento econômico real, está apostando fortemente no progresso científico e tecnológico em todos os setores econômicos, no qual o conhecimento oriundo das mais diferentes áreas é um ativo fundamental. Podemos destacar entre as principais nações em pesquisa e desenvolvimento (P&D) os E.U.A., alguns países europeus (com destaque à Alemanha, Inglaterra, França e nórdicos), Japão, Coréia do Sul, Cingapura, China e Índia. Igualmente, as regiões (metrópoles, conjuntos de cidades ou unidades administrativas regionais) apresentam-se como importantes centros econômicos baseados no conhecimento, como o famoso Vale do Silício na Califórnia e o conglomerado MIT-Harvard em Massachusetts, ambos nos Estados Unidos, as regiões alemãs de Baden-Württemberg e da Bavária, as regiões de Kanto e Kinki no Japão, a região da capital sul-coreana, a província de Guangdong na China, Biopolis em Cingapura, entre outras.
Uma das principais qualidades desses países e regiões é a capacidade de gerar inovações tecnológicas. Esses espaços têm como ponto comum, relacionado a capacidade inovadora, a existência de um quadro de empresas proativas em inovar, de instituições de pesquisa e de universidades – dos setores público e privado.
Recentemente, em um dos mais importantes eventos internacionais sobre Indicadores e Políticas de Ciência e Inovação, promovido pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o papel das instituições de pesquisa estatais foi um dos temas principais debatidos (OECD Blue Sky Forum on Science and Innovation Indicators, de 19-21/set./2016, na cidade de Ghent na Bélgica – http://www.oecd.org/innovation/blue-sky.htm). Aliás, o único pesquisador do Brasil que apresentou um trabalho nesse Fórum pertence a uma das Fundações gaúchas que está na lista de extinções (http://www.slideshare.net/innovationoecd/tartaruga-innovation-and-public-understanding-of-science). Nesse evento diversos especialistas e representantes governamentais do campo da C&T, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa, apontaram que uma das alternativas para superar a crise mundial, ainda vigente, é o fortalecimento dos setores público e privado, e, principalmente, da convergência destes setores para produzirem inovações. Portanto, defendem a destruição do mito do setor público versus setor privado.
Os principais países e regiões em desenvolvimento tecnológico possuem instituições públicas de pesquisa e universidades que cumprem um papel essencial para os processos de inovação. Com base nessas experiências espalhadas pelo mundo, destaco cinco pontos relacionados à proposta de extinção das Fundações gaúchas, pontos que indicam equívocos e, ao mesmo tempo, possibilidades de desenvolvimento do Estado que podem ser perdidas definitivamente.
1. ESTAMOS ÀS PORTAS DE UMA REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA “VERDE” (OU “LIMPA”)
Os principais especialistas em estudos sobre inovações indicam que estamos no início de uma revolução tecnológica “verde” ou “limpa”, semelhante em termos de mudanças tecnológicas e econômicas no mundo às revoluções da era do petróleo e do automóvel, do início do século XX, e da era da informática e das telecomunicações, iniciada na década de 1970. Esse sistema industrial sustentável está baseado no desenvolvimento de tecnologias para materiais recicláveis, de técnicas de gestão de resíduos, de aprimoramento de práticas agrícolas e, principalmente, de tecnologias renováveis (energias solar e eólica). Os principais países nessa revolução – Alemanha, Finlândia, França, Dinamarca, Noruega e China – estão com uma audaciosa proposta de mudanças técnicas “verdes” que, além da dimensão tecnológica-produtiva, busca a transformação econômica e social por meio da promoção de um estilo de vida “verde”.
Nesse sentido, destaco a importância da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB/RS) nesse campo de transformação já que essa instituição desenvolve atividades de promoção e conservação da biodiversidade no RS. Por meio de seus órgãos – Jardim Botânico, do Museu de Ciências Naturais e do Parque Zoológico –, a FZB/RS vem atuando na pesquisa, educação ambiental, conservação e lazer, todas atividades estratégicas nos principais países em mudanças tecnológicas “verdes”.
Aqui podemos destacar, da mesma forma, a Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (FEPPS) e a Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro). Atuando no campo da saúde, a FEPPS vem desenvolvendo pesquisas e atividades em saúde pública, esta uma área sensível aos problemas ambientais. Xangai, na China, está transformando-se numa cidade digital, com serviços inteligentes, e uma das áreas prioritárias está no tratamento de saúde. Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde, do setor público, vêm promovendo, com suas filiais regionais, importantes progressos tecnológicos nas áreas de saúde, biotecnologia e farmacêutica. Portanto, a FEPPS poderia ser um ponto de suporte nesse tipo de desenvolvimento, como é em outros países. Além disso, a FEPPS realiza pesquisas em biotecnologia, outro campo do conhecimento importante no âmbito da revolução tecnológica em curso.
A Fepagro, atuante em outro setor estratégico para o RS, a agropecuária, também deveria ser melhor analisada. Nesse sentido, vale a pena ressaltar uma política audaciosa da China para o desenvolvimento das zonas rurais desse enorme país. Os chineses estão promovendo processos de inovação inclusiva nesses territórios, que são inovações para e/ou (produzidas) por estratos de baixa renda da população. Por meio de instituições de pesquisa, similares à Fepagro, desenvolvendo soluções técnicas para atividades agropecuárias, a China vem liderando uma transformação econômica e técnica importante. Nesse contexto, as quatro áreas de atuação da Fepagro – produção animal, produção vegetal, recursos naturais renováveis e sanidade animal – poderiam ser estratégicas dentro de um programa governamental unificando inovação e inclusão para a agricultura familiar.
2. PRECISAMOS DE DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO EM TODOS OS CAMPOS
Como comentado antes, os principais países estão promovendo as inovações em todos os setores econômicos. A nossa Fundação de Ciência e Tecnologia (CIENTEC) presta serviços tecnológicos em diversas áreas: alimentos, engenharia de edificações, materiais de construção civil, engenharia eletroeletrônica, tecnologia metal-mecânica, engenharia de processos, química e geotecnia. Todos serviços importantes para os setores público e privado do RS. As principais regiões desenvolvidas no mundo estão baseadas no conhecimento tecnológico, e um elemento comum a esses espaços é a infraestrutura de laboratórios, como é o caso da CIENTEC, possuidora de diversas dessas estruturas (de análises orgânicas e inorgânicas, de ensaios em materiais e em combustíveis, de microbiologia, de análises metalúrgicas, dentre outros), e também da FEPPS (na área de farmacêutica).
3. PRECISAMOS PLANEJAR MELHOR NOSSAS CIDADES PARA INOVAR MAIS
A produção de inovações não ocorre de forma isolada, através de um gênio ou de uma empresa. A literatura científica mostra que os processos de inovação acontecem em ambientes como bairros, cidades, regiões e países. Nesse âmbito, as cidades, principalmente, as maiores, veem configurando-se como os principais ambientes inovadores. Por isso, diversos países apoiam o planejamento urbano de maneira a promover a criatividade e o bem-estar de seus cidadãos como elementos essenciais para inovar em vários sentidos (tecnológico, social, político, etc.). Vejamos os exemplos de espaços urbanos como Amsterdam, Nova Iorque, Londres, Oslo, entre outros tantos. Assim, a Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan) tem um papel a cumprir nesse campo, principalmente, considerando o tamanho e a complexidade da Região Metropolitana de Porto Alegre.
4. PRECISAMOS DE INDICADORES E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS PARA INOVAR
O conhecimento social e econômico de regiões e países também são importantes para a promoção de inovações. No evento internacional da OCDE sobre indicadores e políticas de inovação, na Bélgica, foi apresentada uma metodologia de análise de Ecossistemas Empreendedores de Inovação, pelo professor Scott Stern da Escola de Administração do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (E.U.A.). O método computacional (utilizando Big Data) tem por base diversas informações empresariais, científicas e econômicas, sistematizadas em tempo real, que proporciona um quadro geral de informações regionais que favorecem a criação e manutenção de empresas interessadas em inovar – programa conhecido como acelerador empresarial regional. Tal proposta está sendo aplicada em alguns estados norte-americanos, na Espanha, no Japão, na China, no México, no Chile, entre outros. Um componente fundamental nesse projeto é a existência de um grande leque de informações regionais oriundas de instituições locais e nacionais de estatística, o que é muito bem estruturado nos países desenvolvidos.
Essa iniciativa mostra uma razão estratégica para a manutenção e o fortalecimento de instituições como a Fundação de Economia e Estatística (FEE), órgão do Estado responsável pela elaboração de indicadores e estudos relacionados ao RS e que conta com pesquisadores de diferentes áreas (economia, sociologia, estatística, geografia, história, ciência política e relações internacionais). Nesse sentido, a FEE pode auxiliar no planejamento e desenvolvimento regional estadual. Os estudos mais aprofundados da realidade social e econômica do Estado permitem pensar melhor os nossos problemas e criar soluções. Além disso, no momento atual que vivemos, o da era digital, a capacidade de analisar informações (sociais e econômicas) de forma criativa e crítica, e formar explicações cada vez melhores, necessita das visões de diferentes perspectivas.
5. PRECISAMOS QUALIFICAR CADA VEZ MAIS A MÃO-DE-OBRA, INCLUINDO OS SERVIDORES PÚBLICOS
Uma característica comum das regiões mais desenvolvidas tecnologicamente é a presença de mão-de-obra altamente qualificada das mais diversas áreas do conhecimento. Nesse quesito, Cingapura e China vêm apresentando uma atitude audaciosa na atração dos melhores pesquisadores do mundo para seus territórios por meio de salários altamente atrativos e de apoios financeiros para suas pesquisas. Alguns anos atrás o centro de P&D em indústria biomédica Biopolis, localizado em Cingapura na Ásia, atraiu um cientista escocês que dirigiu o instituto britânico onde ocorreu, em 1996, a histórica clonagem da ovelha Dolly, e um norte-americano ganhador do Prêmio Nobel em medicina de 2002. Tais ações de atração de capital humano internacional, mais os esforços de qualificação próprios através da educação local, de ambos países, visam qualificar a força de trabalho nativa.
Assim, parece uma atitude pouco razoável o governo do Estado do RS demitir, com a extinção das Fundações gaúchas, em torno de 1.200 profissionais qualificados (e concursados) de várias áreas, muitos com mestrado e doutorado. Da mesma maneira, não parece aceitável extinguir a Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (FDRH), instituição encarregada do desenvolvimento dos recursos humanos do governo estadual. A FDRH atua através da Escola de Governo – que promove a formação continuada dos servidores públicos –, da administração de estágios e da organização de concursos públicos para a seleção de profissionais para os órgãos do governo. Evidentemente, dificilmente conseguiremos, atualmente, atrair profissionais de renome internacional, mas podemos através da FDRH garantir a qualificação e o recrutamento adequado da mão-de-obra local.
6. SIM, AS FUNDAÇÕES GAÚCHAS SÃO IMPORTANTES PARA O FUTURO DO ESTADO
Todos os cinco pontos anteriores sobre as extinções das Fundações mostram as possibilidades e os potencias de desenvolvimento de processos de inovação em vários campos. Porém, poderíamos nos perguntar o porquê da não concretização de maioria dessas possibilidades até hoje. No mínimo temos duas respostas a essa questão. Uma é que a maioria dos governantes estaduais, senão todos, parece não dar a atenção devida as suas instituições de pesquisa como agentes de suporte relevantes para seus programas e políticas. A outra resposta está na necessidade de manutenção e fortalecimento dessas Fundações, que ao longo dos anos vêm tendo altos e baixos nas suas estruturas físicas e humanas, na maioria das vezes de baixas. Deve-se ressaltar que a melhoria delas não ocorre exclusivamente por meio de mais recursos financeiros, mas através de seu principal ativo, seus profissionais. Uma alternativa é a busca de financiamento, pelos pesquisadores, para a realização de pesquisas, tanto no setor privado, através de parcerias, como no público (agências de fomento à pesquisa, bancos de desenvolvimento, etc.). Outra alternativa está no estabelecimento de parcerias em pesquisas conjuntas com outras instituições no Estado, no país ou no exterior. Aliás, a realização de pesquisas, de grande envergadura, em redes internacionais é uma tendência muito forte. Tais alternativas (procura de financiamento e parcerias) podem ser fomentadas através da realização de mestrados, doutorados e pós-doutorados nas principais universidades do país e do mundo. Diga-se a propósito, esse caminho foi muito bem utilizado pelos países asiáticos, em especial a China, que há anos invadem as principais universidades do mundo com seus estudantes.
Também devemos falar da imperiosa necessidade de discussões mais abertas sobre os rumos da C&T e da inovação no Estado. Aqui tomamos, também, o exemplo dos países mais desenvolvidos tecnologicamente, como os Estados Unidos, a maioria dos europeus e outros, onde em diversos fóruns, demandados por seus governantes e pela sociedade, são chamados cientistas e pesquisadores para debater temas relevantes. Nesses países as instituições de pesquisa estatais participam nas discussões e definem estratégias para a promoção de inovações tecnológicas importantes para seus tecidos produtivos. Essas iniciativas público-estatais acontecem por meio do financiamento de pesquisas (das áreas pública e privada) e, igualmente, no próprio desenvolvimento de tecnologias em suas instituições. Sendo importante para esses órgãos do Estado certo grau de autonomia, para não sofrerem intervenções indevidas de governos passageiros (e de cargos de confiança (CCs) passageiros).
Um livro que mostra claramente essa realidade pouco conhecida pelo público geral, é “O Estado Empreendedor” (tradução da Portfolio-Pinguin, 2014), da economista ítalo-americana Mariana Mazzucato, professora de importante centro de pesquisas em inovações, a Unidade de Pesquisa em Políticas de Ciência da Universidade de Sussex (Inglaterra). Essa obra, de uma das principais estudiosas no mundo sobre inovações, demonstra que o estado tem um papel primordial, direta e indiretamente, na geração de inovações técnicas, como é o caso do líder mundial em termos tecnológicos, os Estados Unidos. Efetivamente, os produtos mais inovadores, desde as tecnologias da informação e comunicação, passando pela biotecnologia, pela nanotecnologia e pelas promissoras tecnologias “verdes”, originaram-se com a forte participação do estado.
É importante destacar que não se está desmerecendo o papel do setor privado, e sim ressaltando que para inovar deve haver empresas e organismos públicos e privados fortalecidos. Como dito antes, os lugares mais inovadores no mundo são aqueles que conseguem construir um ambiente diversificado e relacional de organizações e de pessoas interessadas e competentes em C&T e inovação. Portanto, espaços que tenham empresas de base tecnológica, universidades, instituições de pesquisa, laboratórios, etc. – dos setores público e privado.
A argumentação e os exemplos apresentados aqui deixam claro que a economia defendida pelo governo estadual, com a extinção de suas Fundações ligadas à C&T, não se justifica em razão da perda do potencial de promoção de inovações e, consequentemente, do desenvolvimento econômico geral. Um potencial que poderia tirar o RS de sua crise financeira e mais, poderia nos levar a um caminho de desenvolvimento pleno (tecnológico, econômico e social), caminho que está sendo seguido pelas regiões e países líderes. Em que deveria estar presente, também, a indústria cultural – que abrange a literatura, as artes visuais, o artesanato e a música –, atividade intrinsicamente vinculada à criatividade, elemento fundamental para os ambientes inovadores. Nesse aspecto, a Fundação Piratini, gestora das emissoras públicas TVE e FM Cultura, tem muito a contribuir, mas, lamentavelmente, é outra instituição ameaçada de extinção.
É o momento de nossos governantes inovarem, e não escolherem os caminhos mais fáceis como simplesmente extinguir instituições de pesquisa e cultura como forma de economia. Isso não se justifica no capitalismo moderno de hoje. Da mesma forma, devemos reconhecer que essas Fundações devem inovar na busca de soluções para os problemas do Estado como, também, gestores privados e sociedade organizada.
Iván G. Peyré Tartaruga — Geógrafo Dr., especialista em Geografia Econômica. Pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE). Integrante das redes de pesquisa nacionais do Observatório das Metrópoles (INCT/CNPq) e da Rede Brasileira de Pesquisa e Gestão em Desenvolvimento Territorial (Rete); e do Grupo de Estudos sobre Ciência, Tecnologia, Inovação e Desenvolvimento (GECTID).