Em artigo para a Carta Capital, Denise Elias, professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Fortaleza, fala sobre a atuação do governo federal na legalização da grilagem e do roubo das terras públicas e devolutas no Brasil.
Segundo Elias, além de afastar cada vez mais a terra do cumprimento de suas funções previstas na Constituição Federal, as ações do executivo tem potencializado o aumento dos conflitos por terra: segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2020 foram cerca de 1.600 ocorrências de conflito, número 60% superior ao registrado em 2018.
“Os grileiros, madeireiros, garimpeiros estão se sentindo empoderados pelo governo federal e agindo livremente. Com a pandemia, tudo ficou ainda mais acirrado e estes agentes estão aproveitando para efetivamente ‘passar a boiada’ e de forma bastante violenta”, afirma a pesquisadora.
A tragédia do aumento e da legalização da grilagem no Brasil sob Bolsonaro
Denise Elias
Se alguém consultar a agenda oficial de Jair Bolsonaro (PL-RJ), pensará que o seu governo nada faz. O presidente passa boa parte do seu mandato indo a festas de condecoração e formação de militares, encontros com apoiadores e outros compromissos que pouco ou nada têm de importante para a condução do País.
No entanto, engana-se quem acredita que a gestão vive de braços cruzados, muito pelo contrário. É de se admirar a quantidade de coisas que estão sendo realizadas e com a capacidade de trabalho de um conjunto grande de deputados, senadores, ministros e pessoas nomeadas para cargos de “confiança” em todas as instâncias públicas. O problema não é a falta de ação, mas o que está sendo feito. O governo Bolsonaro funciona a “todo vapor” e, caso tudo que está em andamento seja realmente efetivado, entre as grandes proezas do seu mandato estará a legalização da grilagem e do roubo das terras públicas e devolutas no Brasil.
Se os projetos do governo federal forem adiante, grande parte das terras que são patrimônio da população brasileira passará à propriedade de grandes empresas, corporações transnacionais e fundos de investimentos, afastando cada vez mais a terra de cumprir suas funções social e ambiental. É importante lembrar que a quantidade de terras públicas e devolutas País é grande. Alguns estados têm mais de 50% de seus respectivos territórios nessa categoria, tais como os que se localizam na Amazônia.
Como se sabe, os agentes do agronegócio representaram um dos pilares da eleição de Bolsonaro e fazem parte dos sustentáculos do seu governo. Desde o golpe parlamentar em 2016, o conjunto de retrocessos políticos que vivemos resultou num crescimento de poder por parte de tais agentes. A tradicional relação entre os grandes proprietários de terra, poder político e poder econômico está cada vez mais forte e fica cada dia mais evidente esta relação orgânica entre o governo Bolsonaro e o agronegócio, mostrando um sincretismo crescente entre interesses econômicos e políticos.
Prova disso é o lobby legalizado financiado por associações e empresas do agronegócio, cujo símbolo maior é a Frente Parlamentar da Agropecuária, sustentada pelo Instituto Pensar Agro (IPA), representados no Congresso Nacional pela poderosíssima bancada ruralista, assim como no Ministério da Agricultura. Esta bancada soma algo próximo de 250 parlamentares e foi responsável por cerca de 50% dos votos do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016.
No Brasil, a terra sempre foi motivo de cobiça, algo que alimentou a grilagem e conflitos violentos no campo. Diante do que estamos vivenciando no executivo federal, sem dúvida, podemos dizer que um dos grandes objetivos do golpe foi o acesso ilimitado à terra, assim como a todos os bens naturais que ela possui, afastando cada vez mais a terra de cumprir suas funções previstas pela Constituição Federal.
Os grileiros, madeireiros, garimpeiros estão se sentindo empoderados pelo governo federal e agindo livremente. Com a pandemia, tudo ficou ainda mais acirrado e estes agentes estão aproveitando para efetivamente “passar a boiada” e de forma bastante violenta.
De acordo com dados de relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram cerca de 1.600 ocorrências de conflitos por terra em 2020. Esse número é 60% superior ao de 2018, o maior desde 1985, ainda na época da Ditadura Militar.
O conflito reflete divergências, ausência de concordância, oposição de interesses e de opiniões. Isso reflete, entre outras coisas, a luta de classes no Brasil. Enquanto de um lado temos um conjunto de movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, pela regularização dos territórios quilombolas etc., de outro, temos segmentos, muitos ligados ao agronegócio, que buscam garantir que estas mesmas terras sejam transformadas em mercadoria.
Hoje, de forma marcante, o conflito está se expressando cada vez mais nas instâncias superiores de poder, ou seja, no executivo, no judiciário e no legislativo. Muito claramente, algumas dessas instâncias tanto promovem quanto gestam os conflitos, por exemplo, quando promulgam leis que facilitam a legalização da grilagem.
Entre as diferentes linhas de atuação nas diversas instâncias de poder, é possível observar duas bem marcantes que diretamente estão aumentando os conflitos no campo, entre as quais destacamos duas: a linha do desmonte e da desregulamentação de um conjunto de políticas públicas de um lado e, de outro, a da legalização, normatização e regularização do que até então era ilegal.
Na linha do desmonte, temos a desregulamentação de um conjunto de políticas públicas voltadas para a reforma agrária, a agricultura familiar, a fiscalização e o licenciamento ambiental, a demarcação de terras indígenas e para a formação de estoques reguladores de alimentos, entre outros.
Nesse caminho, vale citar muito brevemente o desmonte de um conjunto de instâncias de controle social, tais como ocorreu com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário, o estrangulamento de recursos para alguns programas de grande importância, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, o Programa da Merenda Escola, o Programa de Construção de Cisternas e de controle sobre o uso dos agrotóxicos, promovendo o PL do veneno, para citar alguns dos mais visíveis.
No que tange à linha da legalização e da regularização, temos a formulação de um novo sistema normativo através da formulação de um conjunto de leis para legalizar o que até então era ilegal. Exemplo recente dessa linha de atuação é a aprovação na noite do último 09/02 na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 6.922/02, chamado de PL do Veneno, colocado em votação em caráter de urgência pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL). O PL do Veneno é praticamente um ‘libera geral’ para o uso de agrotóxicos no Brasil, inclusive de venenos já amplamente rechaçados em outros países pelos seus já comprovados efeitos maléficos à saúde do homem e do meio ambiente.
Há um conjunto de ações no legislativo que começaram a ser formuladas ainda no governo do ex-presidente Michel Temer – ou mesmo antes – e estão indo adiante com Bolsonaro e seus ministros da Agricultura, do Meio Ambiente, da Economia, entre outros. Alguns exemplos muito visíveis são a desburocratização para a posse e porte de armas de fogo – quase uma autorização para matar – no campo e nas cidades; o PL 10.431/18, da Criminalização dos Movimentos Sociais; a Medida Provisória 886/19 que transfere a identificação e demarcação de terras indígenas para a alçada do Ministério da Agricultura; o PL 191/20 que autoriza a exploração de mineração, turismo, pecuária, recursos hídricos e de hidrocarbonetos em terras indígenas; e a transferência do processo de regularização de terras griladas aos municípios, apenas para citar alguns.
Porém, entre as ações com maiores chances de causar danos irreversíveis é o ‘PL da Grilagem’, também já aprovado na Câmara dos Deputados. O PL nº 510/2021, de autoria do Senador Irajá Abreu (PSD/TO), que versa sobre a regularização fundiária, tem um conjunto de processos que vão incrementar e fortalecer a grilagem de terras, praticamente um incentivo formal às invasões de terra, uma vez que promove a anistia aos invasores, privatiza terras públicas, estimulando a continuidade das ocupações ilegais e possui um enorme potencial para aumentar o desmatamento, como já era possível de se observar, notadamente, desde 2020.
Ainda na linha da regulação, podemos também destacar o sistema de normas que vem aumentando a financeirização do agronegócio, deslocando para o mercado financeiro algumas decisões importantes sobre a produção agropecuária e afetando, inclusive, a diminuição da produção de alimentos.
Naturalmente, isso não está acontecendo só no Brasil, porém o País e o agronegócio brasileiro são centrais para esse novo ciclo de acumulação capitalista. Não nos esqueçamos que o mercado financeiro é outro pilar de sustentação do governo Bolsonaro.
Como exemplo dessa financeirização, vale citar a abertura do capital de empresas do agronegócio na bolsa de valores e a venda de títulos das dívidas do agronegócio, aumentando seus capitais e, assim, permitindo o arrendamento de novas terras e a modernização dos sistemas técnicos agrícolas. Isso evidencia o crescente entrelaçamento da produção agropecuária com o capital financeiro e seus novos mecanismos, tais como os fundos de investimentos. Através destes fundos tem sido possível uma grande entrada de capital estrangeiro no campo, inclusive como proprietários de terra, contrariando algumas leis ainda vigentes.
No novo sistema normativo associado aos interesses dos agentes hegemônicos do agronegócio, como a Lei do Agro, que facilita a tomada de terras dadas como garantia de empréstimos pelos produtores agrícolas, sem necessidade de ação judicial, e a entrada de investidores estrangeiros; a criação dos Fundos de Investimento do Agronegócio (Fiagro), que promoverão uma ofensiva sobre as terras e multiplicarão os processos de especulação fundiária no campo.
Tudo tem acontecido sem debate com a sociedade, sendo aprovado a toque de caixa como pudemos observar com a PL do Veneno na noite do dia 09/02 na Câmara dos Deputados. No caso dos Fundos de Investimento do Agronegócio, a lei foi aprovada no dia 22 de dezembro de 2020. Em julho de 2021, a lei foi regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários e no final de novembro do mesmo ano já existiam 14 fundos de investimento do agronegócio registrados na bolsa de valores, sendo metade deles com sede na avenida Faria Lima (SP).
Esse grande esforço do governo Bolsonaro pelas mudanças das leis de regularização fundiária, assim como de financeirização, são de tal magnitude que muitos estão dizendo que estamos vivendo um verdadeiro golpe fundiário.
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