Gustavo Raldi¹
Olga Lúcia Castreghini de Freitas-Firkowski²
Tema de grande relevância na atualidade, em especial em Curitiba, onde a história de sucesso do planejamento urbano foi ancorada nesse tema, interessa-nos, nesse texto, verificar como a mobilidade urbana está inserida nas propostas de governo dos(as) candidatos(as) à prefeitura de Curitiba em 2020. A mobilidade urbana é uma importante pauta nas eleições municipais, pois as decisões tomadas pela prefeitura e pela câmara de vereadores, principalmente em políticas de planejamento urbano e de transportes, têm impacto direto no cotidiano da população que se desloca pela cidade. Essa questão merece atenção especial em Curitiba, onde, desde a década de 1960, foi estabelecido um modelo de urbanismo que vincula o sistema viário, o uso do solo e o transporte coletivo, ganhando um status de inovação no planejamento. Real ou no plano do discurso, atualmente esse modelo apresenta diversas críticas e suas limitações ficam evidentes com a presença dos problemas de mobilidade que são comuns a qualquer outra metrópole brasileira.
O objetivo desse texto é proporcionar um olhar crítico sobre as tendências e percepções dos grupos que disputam a administração pública, observando como pensam esses problemas e que posturas poderão assumir nos próximos anos, se eleitos. Para isso, foram levantadas as questões de mobilidade urbana que aparecem nas propostas dos planos de governo dos 16 candidatos(as). Uma síntese dessas questões pode ser observada em dois quadros comparativos, identificando sua presença nos planos de cada partido, seguidos de apontamentos sobre as propostas em destaque e as diferenças de perspectiva em cada pauta.
A mobilidade por bicicleta foi a pauta mais mencionada nas propostas, presente em quase todas. Apesar de Curitiba ter avançado em projetos e infraestrutura nos últimos anos, as condições de deslocamento de bicicleta ainda demandam atenção. A lógica de ciclovias – implantadas na cidade ainda nos anos de 1970 –, principalmente voltadas ao lazer, ligando parques e rotas turísticas, dividindo espaço com pedestres e restritas a regiões centrais, ainda domina, dificultando o uso da bicicleta para deslocamentos cotidianos. As propostas relacionadas à mobilidade por bicicleta foram concentradas na construção de ciclovias, visando ampliar a rede e garantir maior segurança aos ciclistas. Também foi proposta a construção de bicicletários, pensando no uso de equipamentos públicos e na intermodalidade com terminais de ônibus. Poucas propostas trataram dos problemas atuais da infraestrutura cicloviária e desenvolveram mais a questão, a maioria apenas menciona pontualmente.
A mobilidade de pedestres foi a segunda questão mais frequente, aparecendo em propostas de construção e qualificação de calçadas, e em menor grau, medidas de diminuição da velocidade de veículos e prioridade aos pedestres nos cruzamentos. As propostas para mobilidade a pé foram associadas a questões de acessibilidade, da oferta de melhores condições de circulação de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida em vias e, em alguns planos, no transporte coletivo e nos prédios públicos.
De certa forma, propostas de investimento nessas formas de mobilidade ativa são esperados em planos de governo, considerando que sua implantação demanda poucos esforços políticos e financeiros, mas têm ampla aceitação. Porém, um dos aspectos que revela divergências nessa questão foi, de um lado, a preocupação em oferecer infraestrutura em todos os bairros e locais mais periféricos, opondo-se a propostas que consideram apenas o centro da cidade como espaço do pedestre e do ciclista. Se existe uma grande desigualdade nas condições de mobilidade, motorizada ou não, as políticas públicas devem ir no sentido de melhorar o acesso onde ele é precário. Além disso, a própria distribuição de investimentos públicos no geral é pertinente para a mobilidade urbana, considerando que a proximidade da moradia a serviços e opções de lazer minimiza a necessidade de deslocamentos.
Outro contraste pode ser observado quanto à postura em relação ao cenário de domínio do carro na cidade. A crescente motorização e as consequências disso na mobilidade têm sido historicamente o resultado de políticas de incentivo ao uso do transporte individual, o que ocorre em todo o Brasil. Se todas as propostas envolvem investimentos na mobilidade ativa, que seria uma contraposição a esse cenário, pelo menos metade delas têm um grande foco em políticas que beneficiam o automóvel. Posturas mais conservadoras apostam no apelo a obras de infraestrutura viária, como ampliação de corredores, mais estacionamentos, construção de viadutos e renovação de asfalto. Por mais que acompanhem medidas de gestão do trânsito e incentivos ao transporte alternativo, a prioridade em investimentos como esses reforça o modelo de mobilidade que transformou Curitiba e acentuou seus problemas urbanos nas últimas décadas.
Uma das tendências mais fortes, presente na maioria dos planos, foi de propor a criação de sistemas estatais de mobilidade como serviço (MaaS, Mobility as a Service). Propostos de diferentes formas, no geral envolvem plataformas digitais para o uso de modais sob demanda e acesso a informações, focando na intermodalidade, inclusive com o transporte coletivo. Apesar de ser uma modalidade que vem se consolidando pela inserção dos aplicativos de transporte, essas propostas parecem tratá-la como a grande solução de mobilidade urbana, enquanto é uma opção viável apenas para pequenas parcelas da população. Mais difícil ainda é ver a MaaS como contraponto à generalização do automóvel ou aos entraves do transporte coletivo.
A política de transporte público em Curitiba tem um histórico de conflitos, envolvendo disputas entre os grupos privados que dominam a operação dos ônibus há décadas, a gestão pública do sistema, incluindo outros municípios metropolitanos e outros níveis de governo, e centenas de milhares de pessoas que dependem do transporte coletivo diariamente. Em contraste com a imagem construída de um sistema modelo, o usuário do transporte público enfrenta longos tempos de deslocamento, ônibus lotados (o que continuou ocorrendo durante a pandemia de COVID-19) e tarifas elevadas – mais prejudicado ainda se morar nas periferias metropolitanas. A prefeitura que se comprometer a priorizar o transporte coletivo e o interesse dos usuários terá que enfrentar esse cenário.
A tarifa é uma pauta central na discussão do transporte coletivo, pois tem sido um fator de evasão de passageiros, que recorrem a outras opções de mobilidade, principalmente o automóvel. Aumentos do preço da passagem até impossibilitam a mobilidade de parcelas mais pobres da população. Metade dos planos propõe alterações na tarifa, seja reduzindo o preço, instaurando tarifas especiais para estudantes e a volta da domingueira (tarifa especial válida apenas aos domingos), ou até mesmo gratuidade para todos no futuro. Uma proposta relacionada que surgiu em alguns planos foi a integração temporal da passagem, que possibilitaria conexões fora dos terminais (hoje em Curitiba, a integração pode ser feita apenas com a troca de ônibus no interior dos terminais). Se concretizada, essa medida poderia reduzir o tempo de deslocamento de grande parte dos usuários, que muitas vezes fazem rotas mais longas para pagar apenas uma tarifa.
Essas propostas têm grande apelo popular, mas vão de encontro com o interesse de arrecadação das empresas, que seria reduzida ou teria que ser recompensada com verba pública. Frente a isso, ou independente de reduções na tarifa, várias propostas discutiram o financiamento do sistema, apontando a consolidação de subsídios estaduais e federais e redução de gastos no sistema. Do mesmo modo, algumas se comprometeram a revisar contratos de concessão, com auditorias, fiscalização e mais transparência, além de propostas mais radicais como mudanças do formato de prestação do serviço e até estatização do sistema. No plano do candidato à reeleição, cuja gestão muitas vezes demonstrou alinhamento com os empresários do transporte, nenhuma dessas questões foi observada.
A integração com outros municípios da Região Metropolitana também é uma pauta importante, inserindo-se numa discussão mais ampla e necessária de governança metropolitana. A preocupação em atender fluxos intermunicipais apareceu em outras propostas de mobilidade, mas a integração tarifária do transporte público esteve na maioria delas, com a ideia de retomar e ampliar a ligação com os municípios que estão atualmente separados ou parcialmente integrados. Algumas ainda mencionam a criação de um órgão metropolitano de gestão e de um sistema único, mas a ideia não foi muito elaborada.
Ainda se destacam as propostas de implantação de novos modais de transporte coletivo, principalmente o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), além de metrô, ônibus elétricos e outros. A maioria dos planos menciona essa possibilidade, mas como envolve grandes investimentos e resistências, muitos deles apontam apenas estudos de viabilidade.
Por fim, cabe lembrar que a mobilidade urbana não é impactada somente por políticas voltadas a infraestruturas e transportes, mas pela política urbana como um todo. Isso passa por uma visão integrada das políticas de uso do solo, de moradia, de contraponto ao mercado imobiliário, de acesso a equipamentos urbanos, de gestão metropolitana e afins. Soluções tecnológicas, obras e ideias alternativas são úteis, mas não dispensam a necessidade de enfrentar politicamente as lógicas que direcionam as transformações do espaço urbano e, por consequência, da mobilidade. Poucos candidatos demonstram essas intenções.
Também é importante considerar que essas são apenas propostas de governo. Muito do que foi apresentado pode ser mais um discurso de convencimento do que um projeto real, algo comum no meio eleitoral. Ainda que tenha sido possível observar tendências aqui, uma análise mais completa dos candidatos demanda a observação de outros referenciais, como entrevistas, debates, alianças, ideologias e ações que têm tomado em sua trajetória. Demanda a compreensão de sua inserção na sociedade e nas disputas políticas.
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¹ Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba.
² Professora do Departamento de Geografia da UFPR. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba.