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José Wellington Carvalho Vilar¹

Entre os dias 9 e 10 de maio do corrente ano foi realizado de forma remota o II Workshop Maritimidade no Sul Global, antecipando, em certo sentido, o debate que hoje domina a mídia e as redes sociais sobre a Proposta de Emenda Constitucional nº 3/2022, mais conhecida como a PEC de privatização das praias no Brasil, que sugere a revogação do inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal (os terrenos de marinha e seus acrescidos). Realizado por grupos de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e pelo Núcleo Aracaju do INCT Observatório das Metrópoles, o evento teve como foco a discussão sobre a relação que temos com essa zona de transição entre o oceano e o continente, cujo protagonismo territorial é, sem sombra de dúvidas, o ambiente de praia, a orla marítima e os terrenos de marinha e seus acrescidos.

A maritimidade está hoje na ordem do dia. Se não formos muito exigente, ela pode ser entendida como um feeling geográfico da personalidade regional, ou seja, a forma como lidamos com essa zona de contato entre o oceano e o continente, aí inserido o litoral suas praias e os terrenos de marinha, ambientes naturalmente frágeis, escassos em termos de espaço territorial, de uma valorização social e de um valor econômico enormes. Embora nem sempre coincidam territorialmente, as praias e os terrenos de marinha fazem parte do espaço costeiro, aqui no Nordeste representado pelo domínio da planície litorânea.

Na atualidade, são multidimensionais as formas de uso e ocupação do litoral: moradia, veraneio, turismo, lazer, banho, esporte e um infinidade de ações cotidianas. Para completar esse quadro e fazer a alegria do mercado imobiliário, parece que muita gente quer viver na praia ou próximo a ela. Mas nem sempre foi assim, a repulsa e até o medo da praia e do mar e a valorização dos rios são heranças do período colonial que marcaram nossa História e até hoje distinguem as paisagens estuarinas, de baías, enseadas e outras balizas geográficas nos territórios costeiros.

A invenção da praia é algo recente do ponto de vista histórico e isso deve ser levado em consideração. No Brasil, é um produto do século XX e o exemplo mais emblemático é a construção do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, símbolo e modelo de ocupação territorial que se expandiu para várias capitais nordestinas e consagrou uma forma de habitar, vivenciar, valorar e valorizar a praia. Em outras palavras, consagraram formas de maritimidade.

Hoje as praias e os ambientes a ela associados ganharam valores sociais, culturais e econômicos que as tornaram territórios multidimensionais e conflitivos, mas que ampliam o desejo de nele morar ou transitar, tão comuns nas capitais e cidades costeiras Brasil afora. No caso das metrópoles litorâneas e de algumas cidades costeiras, parece que se vive um “mundo urbano em transe”, acelerado, à beira do colapso e os problemas ambientais se avolumam, fragmentam o território, criam espaços segregados e se valoriza bastante as praias que direcionam o crescimento elitizado das cidades.

Segundo informações do último Censo Demográfico do IBGE, 111.277.361 pessoas, equivalente a 54,8% da população brasileira habita a menos de 150 km dos ambientes de praia. Essa estatística deve ser relativizada para Estados pequenos como Sergipe, mas indica que parte expressiva do nosso povo vive no litoral e desfruta das alegrias e dos desafios dos ambientes de praia e dos terrenos de marinha, de domínio da União. Esses números ganham expressividade nas metrópoles e abrem um link para problemas costeiros nas regiões metropolitanas que sofrerão as maiores consequências, caso seja aprovada a PEC da privatização das praias.

São muitos os que sonham em morar à beira mar, de ter uma casa em condomínio fechado na ilusão da segurança e no afã de uma praia para chamar de sua. Esse é um retrato de um Brasil que foi construindo sua geografia litorânea de maneira perversa, desigual e elitista, com dificuldades enormes de privilegiar ações coletivas. Na falta de senso comum, domina a força do individual, muitas vezes cega, vesga ou indiferente às questões ambientais, que toleram mal o ensimesmamento que estamos vivendo. E o Estado, no meio desse “tiroteio” entre o público e privado, legisla, ora impede, ora incentiva o uso e a ocupação dos espaços praiais e suas adjacências. A força de um poder público ágil e eficaz parece ser um sonho do povo brasileiro, e no trato com o mar, com as praias e os terrenos de marinha não é diferente.

Orla de Aracaju (SE). Foto: Arthuro Paganini (SUPEC/Governo de Sergipe).

Seja como for, no Brasil, a praia é um bem coletivo protegido pela carta magna de 1988 e por uma série de leis infraconstitucionais. Vale destacar que a constituição de 1988, em seu artigo 20, inciso IV, define as praias marítimas como bens públicos, de domínio da União, de uso comum do povo brasileiro. Por outra parte, a legislação infraconstitucional é vasta na discussão sobre terrenos de marinha e seus acrescidos, com destaque para o parâmetro da linha de preamar média de 1831. Talvez esse seja o ponto mais controverso, e que justifique sua exclusão na PEC, além da possibilidade de bitributação.

Mais do que nunca é preciso entender a função ambiental das praias e dos ambientes geomorfológicos associados ao oceano e aos estuários. Se o colonizador português estava mais preocupado com a geopolítica, com a proteção estratégica do território quando criou o terrenos de marinha, hoje a problemática ambiental e as mudanças climáticas colocam a questão num outro patamar, o da proteção dos espaços construídos, e o caso de Porto Alegre é emblemático, triste e ao mesmo tempo pedagógico, porque nos ensina que os ambientes de praias, em suas mais variadas modalidades geomorfológicas, servem, entre outras coisas, para nos proteger de eventos extremos, com os quais teremos que nos acostumar e encontrar formas, estratégias e ferramentas para conviver, inclusive com a imperativa mudança cultural e de comportamento. Não há futuro sem mudanças de mentalidade da forma como lidamos com a natureza, com o mar, com nossas praias, com o planeta Terra como um todo. Vale ressaltar que em contramão da PEC, o argumento maior para a existência dos terrenos de marinha e seus acrescidos é a proteção ambiental sob várias formas.

A PEC nº 3/2022 abre o debate sobre os terrenos de marinha e seus acrescidos e as redes sociais entraram na discussão com um mote imbatível: a privatização das praias. Se por um lado, fica evidente a força estrondosa de um mote bem construído e difundido nas redes mundiais de computadores, “lacrando”, se apoderando e “ganhando” o debate, por outro, se evidenciam os riscos da ocupação pela força da especulação imobiliária, dos impactos ambientais nesse espaço tão vulnerável em termos socioambientais, além de abrir o debate sobre a bitributação e a insegurança jurídica da proposta. Se há algo de bom nessa questão é o de iniciar um diálogo sobre a importância das praias e dos terrenos de marinha no contexto da preservação e dos eventos extremos. A faixa costeira funciona como a primeira barreira de proteção e como tal deve ser considerada num possível aumento do nível do mar e de catástrofes difíceis ou impossíveis de prever.

Como disse o jurista Paulo de Bessa Antunes, a PEC nº 3/2022 é tanto inútil como inoportuna. Inútil porque já existe base legal e programas para tratar o ordenamento dos ambientes costeiros que dão conta do recado, evidenciando que a questão está mais para a falta de ação e prioridade do poder público, principalmente da União, com sua notória dificuldade de gerenciamento costeiro e de descentralização das ações nos ambientes de praia. Os esforços atuais de descentralização ainda são incipientes e há um verdadeiro desafio para desatar esse nó jurídico e administrativo dos terrenos de marinha e da gestão das orlas marítimas.

Ademais, cabe questionar por que nossos legisladores federais insistem tanto em PECs. Tantas mudanças na nossa lei maior falam muito sobre nós e nosso modelo democrático, gerando instabilidade jurídica com enorme facilidade, quando soluções mais rápidas e viáveis estão mais ao alcance da prática legislativa e do próprio executivo, ao insistir num modelo de gestão participativa e verdadeiramente democrática, na linha dos Planos de Gerenciamento Costeiro ou do Projeto Orla.

E, por último, a PEC é inoportuna, pois coincide com a tragédia de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul que muito nos deve ensinar se queremos conviver com o planeta em condições de habitabilidade e sustentabilidade.

No fundo, abre-se uma janela de possibilidade para discutir o futuro dos territórios costeiros a partir da relação que mantemos com essa faixa estreita e geralmente filiforme em permanente relação com o mar. Privatizar as praias e os terrenos de marinha são ideias frágeis, cujas reações conseguiram colocar na pauta a necessidade de gestão democrática dos territórios costeiros, fortalecendo assim nossa geografia litorânea.


¹ Professor Titular do Instituto Federal de Sergipe (IFS). Editor da Revista GeoNordeste. Professor do PPGEO da UFS e do Mestrado em Turismo do IFS. Pesquisador do Núcleo Aracaju do INCT Observatório das Metrópoles.