O Grupo Rio Cidade Neoliberal, que integra o Observatório das Metrópoles, desenvolve, desde 2016, o projeto de extensão “Morar, Trabalhar e Viver no Centro”. A iniciativa, coordenada por Orlando Alves dos Santos Junior, visa mapear e dar visibilidade às situações de moradia e trabalho na região central da capital fluminense, além de denunciar situações de violações de direitos sociais e promover ações de exigibilidade do direito à cidade na área central da capital fluminense, com foco na questão das ocupações urbanas, dos cortiços e dos trabalhadores informais (camelôs).
Sob a perspectiva da neoliberalização da política urbana da cidade, impulsionada e legitimada pela agenda de megaeventos esportivos sediados nos últimos dez anos, além da emergência sanitária e econômica decorrente da pandemia de COVID-19, o grupo Rio Cidade Neoliberal chama a atenção para a situação de duas ocupações que resistem na luta pela centralidade na cidade do Rio de Janeiro: o Projeto de Habitação Popular Quilombo da Gamboa e a Ocupação Vito Giannotti.
A seguir, confira o texto produzido pelo grupo.
O Projeto de Habitação Popular Quilombo da Gamboa surgiu em 2008, resultado de uma grande mobilização nacional de movimentos sociais de luta pela moradia para garantir o cumprimento da função social pelos imóveis da União, a partir da produção de habitação de interesse social. Desde então, se colocou como uma alternativa para alguns moradores do extinto projeto “Quilombo das Guerreiras”, que sofria com um processo de desgaste interno acentuado pelas pressões motivadas pelo contexto de transformação do Porto Maravilha. No lugar do projeto “Quilombo das Guerreiras”, pretendia-se erguer as “Trump Towers”, que seriam um marco físico e simbólico da transformação daquela região da cidade.
A partir da luta e reivindicação de movimentos sociais atuantes no Rio de Janeiro – Central de Movimentos Populares (CMP) e União por Moradia Popular (UMP) – foi obtido o terreno atualmente destinado ao Quilombo da Gamboa, no bairro de mesmo nome. Após a concessão de uso do terreno, de propriedade da União, os movimentos conseguiram a inclusão do projeto no programa habitacional “Minha Casa Minha Vida – Entidades”, formalizando o contrato com a Caixa Econômica Federal em 2015.
A assinatura do contrato, entretanto, não representou o fim da luta para os moradores e movimentos envolvidos com o projeto. No cenário da Operação Urbana Consorciada (OUC) Porto Maravilha, ocorreram sucessivas tentativas de ocupação dos terrenos destinados ao projeto pelos mais diversos agentes: desde empresários ligados ao entretenimento até prestadores de serviços que apostavam na rápida ocupação da área por empreendimentos corporativos e voltados para as classes média e alta. Além das disputas pelo território, o projeto teve que enfrentar as burocracias da Caixa Econômica e as mudanças de rumo no governo federal, que fizeram com que o financiamento contratado não fosse liberado até hoje.
Apesar dos inúmeros desafios, o Quilombo da Gamboa é tido pelas 10 famílias que atualmente ocupam os terrenos como um espaço de luta e resistência, além da última esperança de garantir a casa própria na área central da cidade. Eles destacam que a região conta com infraestrutura de transporte, serviços públicos e, mais importante, é perto das localidades que mais oferecem emprego na cidade, permitindo que os moradores possam se manter ocupados sem os custos do transporte para as periferias (caros e que tomam horas do trabalhador diariamente, dificultando o convívio familiar).
A disputa pela área central da cidade se acentuou a partir de 2011, quando o projeto de revitalização da área portuária – OUC Porto Maravilha – anunciou a pretensão de atrair mais de 100.000 pessoas, em 10 anos, para uma área totalmente modernizada que, no entanto, seria destinada para as classes média e alta, tendo em vista a inexistência de projetos de habitação de interesse social capazes de garantir a presença dos mais pobres na região. Apesar do relativo fracasso do projeto, a região se tornou hostil aos moradores mais pobres, sendo vista como uma promessa ainda a ser cumprida para empreendedores e agentes imobiliários.
Essa visão, compartilhada pelo poder público e por parte relevante da sociedade, tem impactos diretos em projetos como o Quilombo da Gamboa, que seguem ameaçados e na luta incansável pela permanência. Os moradores relatam medo de terem que sair dos terrenos destinados ao projeto por não terem nenhuma outra opção de moradia, especialmente considerando a impossibilidade de pagarem aluguel no cenário de crise econômica atual. Isso em um momento em que a moradia é, mais do que nunca, questão de vida ou morte.
Apesar dos desafios e dos medos, os moradores têm sonhos para o Quilombo da Gamboa. Entre os mais citados, o de efetivar o projeto que previa a construção de 5 prédios, com 116 apartamentos, podendo contemplar mais famílias em situação de vulnerabilidade e garantir uma infraestrutura digna para os filhos, com área de lazer e convivência.
As mesmas preocupações são compartilhadas pelos moradores da ocupação Vito Giannotti, que surgiu em 2016, com o objetivo de dar função social a um prédio de propriedade do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), abandonado há mais de 15 anos. O prédio originalmente era um hotel, o que torna evidente sua vocação para a moradia. O nome da ocupação homenageia o comunicador social Vito Giannotti, um dos ícones da luta pela comunicação popular no Brasil, falecido em 2015. A curiosidade é que, sem que tenha sido planejado, a ocupação se deu no dia do aniversário do homenageado, 15 de janeiro, dando ainda mais força e ânimo ao grupo.
A organização da ocupação é feita pela Central de Movimentos Populares (CMP), União por Moradia Popular (UMP) e pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Os ocupantes são pessoas de baixa renda, unidos pelo propósito de garantir uma moradia digna na área central da cidade, que trabalharam incansavelmente na limpeza, organização e reforma do prédio que, abandonado há 15 anos, estava em péssimas condições de conservação representando inclusive um risco para os vizinhos.
Ao contrário do ideário do senso comum, o processo de ocupação passa por uma intensa organização interna, incentivando a responsabilidade dos moradores com o coletivo e a formação de uma rede de solidariedade entre eles. Alguns moradores relatam se sentir pessoalmente fortalecidos pela ocupação, enquanto que outros destacam a importância da moradia para o desenvolvimento pessoal e familiar. A partir das redes de solidariedade e do fortalecimento propiciado pelo processo de ocupação, diversas pessoas conseguiram vencer desafios pessoais e evoluir profissionalmente, com exemplos de verdadeiras transformações de vida a partir da luta pela moradia.
Atualmente, a ocupação conta com 28 famílias e luta há anos no judiciário pela prevalência da função social do imóvel, com o reconhecimento de sua destinação para habitação de interesse social. Assim como outros moradores de ocupações na área central, os moradores da Vito Giannotti convivem diariamente com o medo de terem que sair dos espaços que constituíram como lar. Sem ter uma alternativa de moradia que atenda suas necessidades, temem ter que escolher entre o alimento na mesa e o pagamento de um aluguel.
Importante destacar que a Vito Giannotti foi vencedora de um edital de chamamento público da Caixa Econômica Federal para a aquisição e reforma completa do prédio – embora o processo esteja paralisado – sendo que, recentemente, foi incluída no Plano de Metas e Diretrizes do Ministério do Desenvolvimento Regional para a aplicação dos recursos alocados junto ao Fundo de Desenvolvimento Social, instituído pela resolução nº 224/2020. No entanto, todo esse reconhecimento “oficial” não tem sido capaz de convencer o judiciário da importância e legitimidade da ocupação.
No momento atual, em que a moradia se confunde com o próprio direito à vida, a Vito Giannotti tem papel fundamental na vida das 28 famílias que lá habitam, seja pela possibilidade de se protegerem em um contexto de pandemia que exige o isolamento social, seja pela organização solidária que cria uma rede de amparo para as necessidades dos próprios moradores, ou ainda pela possibilidade de morarem em uma área com infraestrutura de saúde e transporte.
Apesar de todos os desafios, o maior sonho dos moradores é vencer a batalha judicial pelo reconhecimento da destinação do prédio para habitação de interesse social, com o fim da ameaça constante de reintegração de posse e expulsão. Alcançado esse sonho, desejam ainda obter os recursos para a reforma completa do prédio, de forma a melhorar as condições de vida de todos.
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[Texto produzido pelo Grupo Rio Cidade Neoliberal do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro.]