Em poucos dias o novo Plano Diretor de Belo Horizonte será votado em segundo turno no plenário da Câmara Municipal da cidade [ATUALIZAÇÃO: o Plano Diretor foi aprovado no dia 06 de junho de 2019]. O novo Plano, cuja aprovação se arrasta há quase quatro anos, propõe uma estrutura urbana mais policêntrica através do reforço de outras centralidades, desafogando o centro da capital, diminuindo os tempos de deslocamento das pessoas, além de promover um acesso mais igualitário à serviços, infraestruturas e oportunidades. Para isso, a proposta se vale de vários instrumentos de planejamento, dentre eles a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), previsto no Estatuto da Cidade desde 2001.
A aplicação da OODC tem se mostrado o maior entrave político à aprovação do Plano Diretor. João Tonucci e Thiago Canettieri, pesquisadores do Observatório das Metrópoles Núcleo Belo Horizonte, esclarecem o funcionamento desse instrumento e apresentam os resultados percebidos em cidades, como São Paulo, que aplicaram a OODC. Confira!
A Outorga Onerosa no Novo Plano Diretor de Belo Horizonte: entrave ao setor imobiliário ou oportunidade para o desenvolvimento da cidade?
João Tonucci¹
Thiago Canettieri²
A aprovação do novo Plano Diretor de Belo Horizonte se arrasta há quase quatro anos, com idas e vindas do Projeto de Lei 1749/2015 entre o Executivo e o Legislativo. Sua origem remonta à realização da IV Conferência Municipal de Política Urbana, ocorrida ao longo de mais de oito meses do ano de 2014, envolvendo mais de seis mil pessoas dos mais diferentes setores da sociedade. A pauta principal daquela Conferência foi exatamente a revisão do Plano Diretor e do zoneamento da capital, e mais especificamente a regulamentação e previsão de aplicação dos instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) no território.
O Plano Diretor, exigência do Estatuto da Cidade, é um importante instrumento para que, de maneira coletiva e democrática, se possa definir os rumos da cidade. Com esta revisão realizada na Conferência, depois de muita discussão em outras instâncias, além da participação cidadã e de técnicos, foi sugerida uma transformação para Belo Horizonte, visando reverter as históricas desigualdades sócio-espaciais da capital, que reverberam para a sua Região Metropolitana. O município de Belo Horizonte é marcadamente macrocéfalo, com uma concentração muito grande na sua região central de oportunidades de trabalho, serviços, infraestruturas e lazer, deixando as periferias rarefeitas e precárias (UFMG, 2011). Mais ainda, Belo Horizonte carrega uma história marcada por um imenso déficit habitacional: milhares de pessoas sem onde morar ou vivendo com suas famílias em condições precárias.
Foi a partir deste diagnóstico, tão evidente na vida cotidiana dos grandes centros urbanos brasileiros, que coletivamente foi discutido e encaminhado uma proposta de uma cidade mais igualitária, com acesso e oportunidades para todos. Por isso, o novo Plano propõe uma estrutura urbana mais policêntrica via o reforço de outras centralidades além do hipercentro, visando aproximar residência, trabalho, lazer e serviços. Isso significa desafogar o centro da capital, diminuir os tempos de deslocamento das pessoas, além de promover um acesso mais igualitário à serviços, infraestruturas e oportunidades. Para promover esse desenvolvimento, o novo Plano se vale de vários instrumentos de planejamento, dentre eles a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), previsto no Estatuto da Cidade desde 2001.
A aplicação da OODC tem se mostrado como o maior entrave político à aprovação do Plano Diretor. Desde o primeiro envio do projeto de lei da Prefeitura para a casa legislativa, o setor imobiliário organizado tem realizado uma pesada campanha – por meio de artigos em jornais e blogs, divulgação de vídeos na internet, lobby junto a vereadores – contra a adoção do instrumento, alegando que o mesmo trará encarecimento dos imóveis, desaquecimento da construção civil e desemprego. Alegam ainda que se trata de um novo imposto criado pela PBH. Queremos aqui rebater essa visão enviesada e desinformada sobre o instrumento.
Simplificadamente, o instrumento funciona assim: estabelece-se um Coeficiente de Aproveitamento igual a 1 para toda a cidade, ou seja, o proprietário do terreno pode edificar, em m², o equivalente à área do seu lote. Para edificar além deste limite, ele precisa preciso pagar ao Poder Público pelo potencial de construção adicional que será utilizado. Esse pagamento está baseado no princípio de recuperação para a coletividade de parte da valorização imobiliária decorrente da concessão pública, outrora gratuita e apropriada por particulares, de possibilidades de adensamento diferenciadas. Estudos compilados pelo Lincoln Institute (SMOLKA, 2014) mostram que alterações de zoneamento, por decisão pública, podem gerar valorização na ordem de 80% a 140%, geralmente apropriadas privadamente pelos proprietários. Parece razoável supor que o poder público deva recuperar para a sociedade ao menos parte da valorização decorrente da sua própria ação, combatendo o “enriquecimento sem justa causa”. Noutros termos, garante-se o tratamento isonômico a todos os munícipes, já que o princípio do instrumento é que todos os proprietários devam possuir o mesmo direito de construção.. Contribuindo portanto para uma melhor distribuição dos benefícios outorgados pelo poder público ao conjunto da sociedade.
Ademais, e ao contrário do que vem sendo divulgado, a Outorga não é um novo imposto. Em decisão de 2008, o Supremo Tribunal Federal pacificou que a OODC é uma contrapartida dada sobre o uso dos direitos adicionais de construção, que são um bem público pertencente à cidade como um todo. Trata-se de uma prestação pecuniária ao Poder Público para o empreendedor que constrói além do coeficiente de aproveitamento básico. O instrumento pode ainda representar uma desoneração dos cidadãos e da cidade em relação aos impactos causados pelo adensamento construtivo: estima-se que venha a reverter em torno de 80 milhões de reais por ano para o município, a serem gastos para viabilizar habitação de interesse social e melhorias urbanas, como a estruturação de novas centralidades; esta vinculação obrigatória do destino dos recursos levantados confere à OODC natureza jurídica extrafiscal. Ou seja, é tecnicamente incorreto considerá-la uma forma genérica de arrecadação para encher os cofres públicos. Assim, a outorga não incide em todos as construções (diferentemente de impostos), mas apenas sobre aquelas que querem aproveitar vantajosamente o direito de construir adicional (que é distinto do direito de propriedade) além do permitido em termos básicos.
A separação entre direito de propriedade e direito de construção, que fundamenta o instrumento, foi recomendada pela Comissão Econômica Européia ainda em 1971, e outras experiências similares podem ser encontradas em memorando da reunião da UN-Habitat de 1976. Vários municípios brasileiros já aplicam o instrumento (Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Natal e Brasília) e cidades na França, Inglaterra, Itália e Estados Unidos adotam com sucesso, há décadas, mecanismos semelhantes (RYAN-COLLINS et al., 2017; SMOLKA, 2014).
Um dos principais argumentos do setor imobiliário, contrário à implementação da Outorga e, portanto, contrário ao Novo Plano Diretor, é que a introdução da OODC levaria a um aumento nos preços dos imóveis. Uma reportagem veiculada no jornal Hoje em Dia, em 14 de maio de 2019, fala que os preços de imóveis em BH poderiam subir até 40%. Não há evidências empíricas ou justificativa teórica para esse temor. Diferentemente do que sugere o estudo veiculado na reportagem, outros tantos estudos – publicados em revistas especializadas – indicam exatamente o contrário.
Esse fato está diretamente relacionado à natureza inerentemente exclusionária da propriedade fundiária pelo fato da própria terra ser escassa. Isso mesmo em casos em que existem largas quantidades de terras “vazias” que não foram incorporadas ao uso econômico, pois localizações economicamente mais produtivas são relativamente escassas, e as melhores são extremamente escassas. De forma que cada localização é mais ou menos única, ou seja, o controle de cada parcela de terra é essencialmente monopolista. Como resultado, os proprietários podem auferir rendas daqueles que precisem usar a terra, por deterem o direito de propriedade privada. Esses retornos são conhecidos como “rendas econômicas”. Além de parecer injusto, esse comportamento rentista associado à terra é ineficiente, podendo levar a aumentos de desigualdade, pobreza, má alocação do capital etc. (RYAN-COLLINS et al., 2017).
No ramo imobiliário, sabe-se que o empreendedor negocia o preço do terreno com o proprietário original do terreno já tendo como referência a receita esperada, a taxa de lucro e os custos de construção. O preço da terra, por ser uma forma de renda econômica extraída de um bem cuja oferta é essencialmente inelástica, manifesta portanto a capacidade de pagamento da demanda (dos compradores finais). Ou seja, o custo da outorga precisa ser absorvido por uma pequena redução da valorização dos terrenos urbanos e não pelo consumidor final da unidade imobiliária. Isto se dá pois o objetivo é cobrar apenas por aquela valorização do terreno que foi gerada pelo poder público, não afetando os lucros ligados à produtividade ou aos aumentos de valor associados à própria construção. Na negociação entre proprietários de terrenos e empreendedores imobiliários, o montante da Outorga será deduzido do valor da propriedade original negociada, não alterando assim o cálculo final de rentabilidade do empreendedor (JARAMILLO, 2008). Portanto, é equivocada a afirmação de que os preços serão repassados ao consumidor final ou que a introdução da OODC possa causar redução da atividade da construção civil na cidade. As evidências empíricas já organizadas sobre o tema apontam para outra direção.
Um instrumento muito semelhante funciona na França desde 1975 (o Plafond légal de densité), e lá os incorporadores imobiliários passaram a se adequar aos novos limites, redirecionando suas atividades para obras de recuperação de edificações em áreas centrais ou de novas construções menores (Granelle, 1992). O mesmo autor, depois de 16 anos da instituição do instrumento, assim avaliou seus efeitos: “Um efeito positivo é a tendência à redução dos preços da terra […] e também à diminuição da diferença de preços centro-periferia” (GRANELLE, 1992, p.11).
Segundo um estudo publicado na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais pelos pesquisadoras Vera Rezende, Fernanda Furtado, Maria Teresa Oliveira e Pedro Jorgensen, há uma certa elasticidade no comportamento do mercado, entretanto, não no sentido de elevação dos preços, mas na direção oposta. Nos estudos levantados pela equipe de pesquisadores fica registrado que os preços não sobem e, em geral, tendem a cair. Nas palavras dos autores: “O repasse do valor do Solo Criado [outro nome para OODC] para o preço final das unidades, argumento muitas vezes levantado por profissionais do mercado imobiliário, não é considerado possível, a não ser em casos excepcionais de imóveis para os grupos de mais alta renda” (2009, p. 62).
O impacto do aumento dos preços dos imóveis pode ser uma possibilidade, mas não é o que se verifica, tendo em vista, conforme apontam estudos sobre a aplicação do instrumento em São Paulo (desde 2002), que apesar de maiores custos, os empreendedores têm tido retorno maior, desde que realizado ajustes acertados nos projetos dos empreendimentos imobiliários (SANDRONI, 2019). O mesmo é identificado por Ribeiro & Cardoso (1991, p.54-5): […] “seu efeito mais geral e mais a longo prazo é a diminuição do preço da terra, pelo aumento da oferta de solo urbanizado, a curto prazo, porque não alterará a rentabilidade da construção, pois o peso do pagamento do direito de construir não recairá sobre o lucro da construção”.
É importante ressaltar ainda que o novo Plano Diretor estabelece prazos e descontos na Outorga, com o objetivo de não prejudicar as negociações realizadas anteriormente ao estabelecimento da nova lei, e cria um processo de transição mais suave até a sua consolidação. Portanto, ao contrário do que vem sendo alegado pelo setor imobiliário e por parte dos vereadores na na Câmara Municipal, a Outorga Onerosa é instrumento de planejamento sim (inclusive de controle do adensamento do território da cidade conforme sua capacidade de suporte), e não de arrecadação fiscal; não é tributo; não fere direito de propriedade; não recai sobre preço final dos imóveis; racionaliza o mercado com princípio de equidade nos direitos de construção; reverte à cidade recursos gerados socialmente; destina recursos para aumentar oferta de habitação; combate enriquecimento sem justa causa; além de já ser utilizado com sucesso em várias cidades do mundo. Não deveria ser motivo para não se aprovar o Plano.
Referências
GRANELLE, J. J.. A Experiência francesa do teto legal de densidade. Em: Seminário Solo Criado, seu impacto na dinâmica urbana e os desafios para sua operacionalização. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1992.
JARAMILLO, S.. Hacia una teoría de la renta del suelo urbano. Bogotá: Ediciones Uniandes-Universidad de los Andes, 2008.
REZENDE, V.; FURTADO, F.; OLIVEIRA, M. T.; JORGENSEN, P.. A outorga onerosa do direito de construir e o solo criado: uma necessária avaliação das matrizes conceituais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.11, n.2, 2009.
RIBEIRO, L. C. Q.; CARDOSO, A. L.. O solo criado como instrumento de reforma urbana: avaliação de seu impacto na dinâmica urbana. Rio de Janeiro: Cadernos IPPUR/UFRJ, v.5, n.1, 1991.
RYAN-COLLINS, J.; LLOYD, T.; MACFARLANE, L.. Rethinking the Economics of Land and Housing. Zed Books Ltd., 2017.
SANDRONI, P. H.. Tres Instrumentos de Captura de Plusvalías Urbanas en la ciudad de São Paulo (1986-2013): las Operaciones Interligadas, los Cepacs y la Otorga Onerosa del Derecho de Construir. Em: www.sandroni.com.br ‘Urban development papers’, 2019.
SMOLKA, M. O.. Recuperação de mais-valias fundiárias na América Latina: políticas e instrumentos para o desenvolvimento urbano. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy, Ministério das Cidades, 2014.
UFMG. Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-RMBH). Produto 6. Volume 1. Belo Horizonte: UFMG; 2011.
¹ Economista; Professor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/FACE/UFMG). Pesquisador do Observatório das Metrópoles.
² Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (IGC/UFMG); Pesquisador do Observatório das Metrópoles.