O governo federal aprovou na última semana, após 21 anos de discussão, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) que reúne princípios, objetivos, instrumentos e diretrizes para a gestão dos resíduos sólidos no Brasil. A pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Berenice de Souza Cordeiro, apresenta um balanço dos limites e possibilidades da lei, chamando a atenção para o novo pacto que define como princípio fundamental a responsabilidade compartilhada em relação ao tema, desde o gerador até o consumidor comum.
Sancionada a Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos: avanço e desafio
Mestre e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ
Consultora autônoma em políticas públicas de saneamento ambiental
O Governo Federal aprovou em 2 de agosto de 2010, após 21 anos de discussão, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que regulamentará a destinação final dos resíduos no País e estabelece um outro pacto ao definir como princípio fundamental a responsabilidade compartilhada em relação ao tema, desde o gerador até o consumidor comum.
A inovação poderia ter sido ainda mais significativa, responsabilizando incisivamente os grandes geradores, no entanto, como todo e qualquer pacto, concessões foram feitas de parte a parte, e o avanço é inquestionável. Desta perspectiva, o Brasil dá um passo importante no sentido de introduzir o conceito de logística reversa para a gestão dos resíduos sólidos no País. A lei determina que fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes recolham embalagens usadas de agrotóxicos, pilhas, baterias, pneus, óleos lubrificantes e todos os tipos de lâmpadas e eletroeletrônicos, dando-lhes destinação ambiental correta. As embalagens deverão ser fabricadas com materiais que propiciem reutilização ou reciclagem. Significa reinserir os materiais no ciclo da cadeia produtiva dos produtos dos quais se originam, o que requer dos geradores além da coleta desses materiais pós-consumo, a manutenção de uma rede no comércio local para capturar os produtos usados e a disposição final adequada. Entretanto, a prática de recolhimento de embalagens é obrigatória desde 2002, mediante o Decreto 4.074, que determinou responsabilidade compartilhada entre agricultores, canais de distribuição, indústria e poder público.
Ainda assim a PNRS estabelece um “novo quadro” para a reciclagem com a logística reversa, o incentivo à cooperação entre municípios na gestão dos resíduos e ao responsabilizar toda a sociedade pelo lixo que gera. Nesse quadro, a legislação incentiva a mudança do padrão de consumo e impõe para a área um novo marco sócio-ambiental ao formalizar o trabalho dos catadores, historicamente exercido de forma expropriada, com apoio insuficiente do poder público e da sociedade. Segundo depoimentos de lideranças do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MMCR), a nova lei ajudará na valorização da profissão desse segmento social, iniciando pela percepção que a sociedade tem sobre quem são e o que fazem: são catadores de materiais recicláveis, portanto, agentes ambientais e econômicos da gestão integrada de resíduos sólidos e não catadores de lixo. A inclusão dos catadores – organizados em cooperativas e associações – é posta definitivamente num marco legal nacional como uma das formas para estimular a reciclagem.
Além disso, o projeto coloca responsabilidades mais claras aos municípios e trata a política de resíduos sólidos como uma política integrada e que sejam elaborados planos mediante definição de metas e programas condizentes aos princípios da PNRS. Contudo, sem tirar o mérito desta importante conquista, cabe a ressalva de que a política aprovada não tem efeito imediato. Ela necessita ainda de muitas regulamentações, particularmente do conceito de logística reversa e da elaboração dos planos locais de resíduos sólidos por parte dos municípios.
A questão que se coloca, portanto, depois de duas décadas de luta e enfim de conquista, é como fazer com que a lei pegue e se torne realidade em nosso País, transformando agenda pública ambiental, social e econômica no campo da gestão integrada dos resíduos sólidos no Brasil. Sabe-se que o Presidente Lula, durante o ato de sanção da lei, cobrou que a regulamentação da lei ocorra antes de 90 dias. No processo de regulamentação, algumas questões ainda irão emergir, porque qualquer lei envolve conflito de interesses. É a polêmica, por exemplo, com relação ao aproveitamento energético dos gases gerados em aterros sanitários e os créditos de carbono que gera: quem se apropria deste novo capital? Até onde este mecanismo compete com o incentivo à própria reciclagem com inclusão dos catadores no processo?
Para isto e outras questões, a exemplo da proibição do lançamento de resíduos sólidos em praias, mar, rios e lagos e “in natura” a céu aberto, assim como a existência de moradias nos locais de disposição final (aterros e inclusive lixões), os planos de gestão de resíduos sólidos só se tornarão instrumentos efetivos de gestão se concebidos e implementados pelos municípios – titulares dos serviços – de forma articulada a outras políticas publicas, em particular com a de saneamento básico (a lei 11.445/2007), a que incentiva a formação de consórcios públicos (a lei 11.107/2005), a gestão de recursos hídricos e a política de habitação de interesse social.
Se por um lado, podemos afirmar que estão criadas as condições para se fazer a opção política de transformar o que é lei em agenda pública, por outro, sabemos que leis, mesmo como a resultante de processos sociais, não acabam com as contradições sociais e não rompem com a dinâmica avassaladora do capital e o modelo excludente de sociedade que gera. A tendência legalista, o acento demasiadamente juridicista e o aprisionamento dos processos participativos aos espaços institucionais podem levar os movimentos sociais a superestimar a importância das leis e dos planos, cultivando um otimismo excessivo com os pactos e consensos que muitas vezes despolitizam a ação coletiva e não preparam a sociedade para o enfrentamento com as forças contrárias aos processos de transformação. Como agravante, lembramos a tradição arbitrária de aplicação da lei em nosso País.
Sob essa perspectiva, ainda que a PNRS materialize um avanço no quadro normativo do setor saneamento básico, a sua tradução em agenda pública está condicionada à capacidade de gestão dos titulares dos serviços, à politização permanente dos movimentos sociais nos processos decisórios das políticas públicas e ao papel da União para fazer com que “a lei pegue” com aderência aos princípios da política, sobretudo naqueles aspectos em que traz inovação quanto à responsabilização econômica e ambiental dos geradores e à inclusão social dos catadores como trabalhadores da cadeia produtiva e de reciclagem em nosso País.
Última atualização em Qua, 11 de Agosto de 2010 15:58