Em 22 de dezembro de 2016, o Governo Federal publicou a Medida Provisória 759 com o argumento de modernizar a regularização fundiária do Brasil. A normativa representou mais uma ofensiva conservadora-liberal do presidente Temer, já que buscava extinguir os critérios que asseguravam o interesse social da propriedade; romper com regimes jurídicos de acesso à terra e de regularização fundiária de assentamentos urbanos; entre outros questões. Em julho de 2017, depois de uma longa batalha no Congresso, foi promulgada a Lei nº 13.465 com o objetivo de consolidar as diretrizes da MP 759. Esse processo de aprovação da lei é o tema do artigo da pesquisadora Tarcyla Fidalgo Ribeiro, que analisa os novos rumos da regularização fundiária no país, dos retrocessos à defesa de direitos sociais.
A pesquisadora Tarcyla Fidalgo Ribeiro participou como representante da sociedade civil do processo de aprovação da Lei nº 13.465 no Congresso Nacional. Segundo ela, dois coletivos se formaram para acompanhar o processo legislativo, sendo que um dos coletivos se voltou para o ataque jurídico relativo às questões de tramitação; e o outro grupo na articulação com parlamentares para “disputar” dispositivos e interpretações da nova lei. “Após a aprovação da lei, estamos focados em subsidiar os legitimados a propor Ações de Inconstitucionalidade. Já temos duas propostas perante o STF, uma do Ministério Público Federal e outra do Partido dos Trabalhadores”, aponta Tarcyla Ribeiro.
AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE
Um conjunto de 60 organizações e redes da sociedade civil encaminhou em julho ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, um pedido para Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a chamada Lei da Grilagem. Segundo carta, a Lei nº 13.465 (resultado da conversão da Medida Provisória 759) “promove a privatização em massa e uma verdadeira liquidação dos bens comuns, impactando terras públicas, florestas, águas, e ilhas federais na Amazônia e Zona Costeira Brasileira”.
O texto concede anistia à grilagem de terras ao permitir a regularização de ocupações feitas até 2011. Não satisfeito, ainda premia os grileiros, ao fixar valores para a regularização que podem ser inferiores a 10% do valor de mercado das terras. Segundo cálculos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apenas na Amazônia esse subsídio ao crime fundiário pode chegar a R$ 19 bilhões.
Mas o prejuízo ao país não se limita a isso. Também ganham possibilidade de regularização grandes propriedades, de até 2.500 hectares, que hoje só podem ser regularizadas por licitação. “Esta combinação de preços baixos, extensão da área passível de regularização, mudança de marco temporal e anistia para grandes invasores vem historicamente estimulando a grilagem e fomentando novas invasões, com a expectativa de que no futuro uma nova alteração legal será feita para regularizar ocupações mais recentes”, afirmam as organizações.
A lei também faz estragos na zona urbana: além de dispensar de licenciamento ambiental os processos de regulação fundiária em cidades – o que pode consolidar ocupações de zonas de manancial em cidades que já foram atingidas por crises hídricas, como Brasília e São Paulo, também permite que governos locais legalizem com uma canetada invasões de grandes especuladores urbanos feitas até 2016.
Da MP 759 a Lei 13.465/17: os novos rumos da regularização fundiária no Brasil
Tarcyla Fidalgo Ribeiro
Em 22 de dezembro de 2016, foi publicada a Medida Provisória nº 759, que versava sobre a regularização fundiária no Brasil. Ao alterar 19 leis sobre o tema, esta normativa promoveu uma ruptura substancial com o modelo até então aplicável no Brasil, pretendendo cuidar de todas as peculiaridades que a regularização fundiária pode assumir em um país de dimensões continentais e diferenças regionais marcantes como o nosso. Neste sentido, tratou das hipóteses de regularização fundiária urbana de interesse social – Reurb-S e interesse específico – Reurb-E, bem como de regularização fundiária em áreas rurais e na Amazônia legal.
No âmbito específico da regularização fundiária urbana, ao revogar todo o capítulo III da Lei nº 11.977/09, a referida Medida Provisória deixava de abarcar institutos que, até aquele momento, vinham sendo considerados como fundamentais para o sucesso das políticas de regularização, provocando lacunas que pareciam trazer mais prejuízos do que benefícios à prática da regularização no país.
Dentre os instrumentos não abarcados e as lacunas presentes na Medida Provisória 759, podemos destacar: (i) a ausência de um conceito de regularização fundiária; (ii) supressão da demarcação urbanística e ausência de previsão de instrumento análogo; (iii) supressão do conceito de urbanização e ausência de sua previsão como obrigatória nos processos de regularização fundiária urbana; (iv) supressão dos mecanismos e instrumentos de participação popular, sem previsão de quaisquer outras modalidades em seu texto; e (v) supressão da previsão das ZEIS, sem qualquer novo direcionamento para os casos que se enquadrassem nas hipóteses de aplicação de tal instrumento.
Estas supressões e ausências, que, em um primeiro momento, chamaram a atenção pela brusca ruptura que representavam à continuidade da política de regularização fundiária nacional, foram sendo, em sua maioria, parcialmente mitigadas ao longo do processo legislativo que culminou com a promulgação da Lei nº 13.465, em 12 de julho de 2017.
Se, por um lado, estas mitigações, ainda que parciais, partiram de um esforço de setores militantes envolvidos com o tema, por outro, parecem ter sido adotadas como estratégia para permitir a aprovação de uma pauta altamente perigosa e alinhada a interesses capitalistas, em especial aqueles ligados ao capital financeiro e imobiliário, pauta esta que estava presente no texto original da Medida Provisória e encontrou grande resistência no próprio Poder Legislativo.
Desta pauta, podemos mencionar como principais pontos a autorização para a alienação indiscriminada do patrimônio fundiário público a partir do instrumento da legitimação fundiária, o fim da obrigatoriedade da adoção de medidas de urbanização e acompanhamento social em áreas de baixa renda e a remuneração dos cartórios, mesmo no primeiro registro de áreas de baixa renda, a partir do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
A seguir faremos um breve esforço de análise dos principais pontos sobre os quais a Medida Provisória nº 759 era silente, mas que foram retomados na redação final da Lei nº 13.465/17, seu desenvolvimento ao longo do processo legislativo e sua conformação final no novo marco normativo sobre o tema.
A primeira lacuna que destacamos em nossa análise é a do conceito de regularização fundiária. O artigo 46 da Lei nº 11.977, de 2009, trazia conceito elogiado pelo prestígio à regularização fundiária plena, com foco na garantia de direitos aos moradores de imóveis irregulares. A revogação expressa deste conceito e o silêncio da Medida Provisória nº 759 quanto a qualquer outra definição de seu próprio objeto trazia, sem dúvidas, um problema sério para sua aplicação. Sem a declaração do que se entendia por regularização fundiária, e com a revogação expressa do conceito anterior, a medida provisória gerava forte insegurança jurídica ao não indicar um rumo exegético para seu intérprete e aplicador.
Para além do déficit técnico que a falta do conceito representava, esta ausência reforçava a ruptura com o regime anterior, também presente em outros pontos da medida provisória, como a mudança de nomenclaturas, de conceitos sobre o território e de princípios norteadores da regularização fundiária.
Entretanto, durante o processo legislativo, em decorrência da articulação entre setores sociais e técnicos ligados à questão fundiária, foi incluído no artigo 9º da Lei nº 13.465/17 um conceito simplificado de regularização fundiária, que, no entanto, não incorporou exatamente as disposições garantistas dos direitos dos moradores presentes na legislação anterior.
Outro silêncio marcante na Medida Provisória se referia ao instrumento da demarcação urbanística, previsto no artigo 47, III, da Lei nº 11.977, de 2009, e considerado um avanço na prática da regularização fundiária pelo país.
A demarcação urbanística é um procedimento administrativo no qual o poder público, no âmbito da regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público ou privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses. A partir destes levantamentos, seria possível a expedição de auto de demarcação urbanística, a ser registrado em cartório, possibilitando a obtenção, pelos moradores, do título de legitimação de posse, que, por sua vez, os permitiria adquirir a propriedade do imóvel após cinco anos.
Apesar de críticas de especialistas direcionadas à demora associada ao procedimento, entendia-se que a demarcação urbanística, como prevista na Lei nº 11.977, de 2009, era um avanço no sentido de garantir a segurança da posse dos moradores, visto que, com a demarcação, estes adquiriam o direito de exigir a titulação do poder público. Além disso, representava uma simplificação dos procedimentos ao permitir um único trâmite administrativo para áreas extensas, bem como facilitava a regularização de áreas nas quais a identificação dos proprietários se mostrava difícil ou impossível sob o aspecto registral.
A Medida Provisória nº 759, ao suprimir a demarcação urbanística, mantendo, no entanto, a legitimação de posse, permitia uma aplicação pontual e seletiva do instituto, além de deixar sua aplicação ao arbítrio da Administração, com prejuízo importante para seu aspecto garantista. Mais uma vez, graças às lutas e tensionamentos da sociedade civil e instituições que lidam com a questão fundiária, alterações no texto realizadas no curso do processo legislativo evitaram este retrocesso, garantindo a previsão da demarcação urbanística em termos semelhantes àqueles anteriormente previstos pela Lei nº 11.977/09 (artigo 19 e seguintes da Lei 13.465/17).
Leia o artigo completo no link Da MP 759 a Lei 13.465/17: os novos rumos da regularização fundiária no Brasil.
Publicado em Artigos Semanais | Última modificação em 04-10-2017 21:33:29