Operação na favela do Jacarezinho (Crédito: Reprodução)
Já faz mais de uma semana que a favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, mudou sua rotina e viu sua realidade, já difícil, típica das favelas cariocas, se tornar ainda mais brutal. Após a morte de um policial em uma operação no local, no dia 11, uma sexta-feira, os moradores perderam os poucos resquícios de paz. Escolas e estabelecimentos não funcionam. Para entrar e sair da comunidade é um tormento, com revistas, medo. A população denuncia que o objetivo de encontrar o culpado pela morte do policial se tornou no que chamam de “revanchismo contra tudo e todos”. Há feridos e mortos e, segundo relatam, tiros para qualquer lado.
Por conta dessa situação, os moradores escreveram o “Manifesto do Jacarezinho” com o objetivo de arrecadar assinaturas e enviar ao poder público exigindo um posicionamento e a interrupção imediata da operação sangrenta, um verdadeiro massacre contra toda uma população.
O manifesto fio escrito pela militante Pamella Souzza e pelo advogado e colaborador da Agência de Notícias das Favelas (ANF) Joel Luiz Costa, o texto repudia as ações das Polícias Civil e Militar na comunidade desde a morte de um agente da Core na última sexta-feira. Um feirante e um mototaxista da favela já morreram após o início da série de operações.
O Observatório das Metrópoles também apoia a divulgação do manifesto com o propósito de trazer a perspectiva dos moradores, daqueles que vivem no território vulnerável e ficam reféns do confronto entre traficantes e polícias.
Segundo o manifesto, a guerra no Rio de Janeiro não é contra as drogas, é na verdade uma guerra aos pobres. “Homens de preto matando homens pretos, quase todos pretos”.
MANIFESTO MORADORES DO JACAREZINHO
21 de agosto de 2017
Os últimos 6 (seis) dias foram de intenso terror e clima de guerra na Favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. As últimas operações foram justificadas pela busca do culpado pela morte do policial da Core Bruno Guimarães Buhler, de 36 anos, morto na última sexta-feira (11).
Entretanto, vale ressaltar alguns fatos desses 6 dias de terror.
1- Na última sexta, dia 11/08/2017, logo no início da manhã, uma mega operação foi realizada na favela do Jacarezinho. A justificativa: “combate ao tráfico de drogas” local e cumprimento de mandados de prisão. Nesse confronto, o policial civil Bruno Guimarães foi atingido no pescoço e veio a falecer.
2- Após isso, o que se iniciou com uma operação policial de “em teoria” combate ao tráfico, na verdade, virou um revanchismo contra tudo e todos, com o objetivo de vingar a morte do policial.
3- No sábado, véspera de dia dos pais, uma nova e desordenada operação se iniciou. Vôos rasantes do helicóptero Águia, que, segundo diversos moradores, já “apareceu atirando para baixo”. Uma festa infantil acontecia na Beira do Rio, onde crianças brincavam. Com a invasão e o corre-corre, muitas crianças ficaram desaparecidas de seus pais.
4- O saldo da absurda e odiosa operação/revanche policial de sábado foi dois moradores baleados. Na quarta-feira (16), um desses moradores veio a falecer no hospital.
A operação de sábado invadiu a madrugada.
5- No domingo, houve uma esperança de calmaria em razão do dia dos pais, porém, no início da tarde, as trocas de tiros recomeçaram e invadiram a noite.
Após 6 dias de enfrentamentos: dois moradores foram mortos, dois moradores baleados, um policial civil morto, comércios fechados/pouco funcionando de sábado a quarta, escolas e creches com aulas suspensas na segunda, terça e quarta, e uma rotina completamente interrompida.
As ações não efetivas da Polícia do Estado do Rio na periferia são a materialização do ódio de um Estado falido contra as camadas mais baixas da sociedade, os excluídos financeira e socialmente.
Até agora, início do segundo semestre, o número de homicídios decorrentes de intervenção policial passa de 400, o que equivale a 1 morte a cada 8 horas, enquanto foram mortos 97 policiais no mesmo período. É importante mencionar que, em 2016, para cada policial assassinado no Rio de Janeiro outras 30 pessoas morrem em decorrência de intervenções policiais. Temos a polícia que mais mata e que mais morre no mundo.
A maioria dessas ocorrências foi realizada em favelas e periferias do Rio de Janeiro.
No entanto, o número de mortos por ação policial é muito maior do que o número de baixas na polícia, fazendo com que seja difícil acreditar que todas estas mortes ocorreram em situações em que a polícia estava sendo “atacada” ou estava em confronto, o famoso “auto de resistência”, herança da nossa Ditadura que, na favela, ainda existe sob a batuta das truculentas e odiosas ações policiais.
Há uma tradição de brutalidade, violência e ilegalidade permitidas, desde que seja na favela, o que não ocorre na Zona Sul do Rio. Fica evidente a diferença ao verificarmos os números de mortes em ações efetuadas por batalhões da Polícia Militar na Zona Sul e nas Zonas Norte e Oeste.
O policial se vê na ponta do sistema de repressão estatal, e o Estado deixa por conta dele a decisão de decidir o que fazer, reproduzindo assim o ódio e a indiferença com a qual é tratado. Infelizmente, o policial não vê que é tão vítima da política de segurança pública pautada na guerra implementada no Rio de Janeiro como também são as pessoas que ele oprime nas periferias em geral.
Como bem resumido por uma autoridade política, a guerra no Rio de Janeiro é: “Homens de preto matando homens pretos, quase todos pretos”.
A sociedade, ao aplaudir, e a mídia, ao reverenciar atuações violentas, truculentas e covardes, se passando por guerreiros, assim como a violência produzida pelo próprio Estado, legitima e estimula toda essa barbárie violenta. Violência gera violência.
A população preta, pobre e favelada tem sido vítima cotidiana desse que mais parece um plano de extermínio do que de combate às drogas. A guerra às drogas é, na verdade, uma guerra aos pobres.
A forma com que o Estado brasileiro lida com a questão das drogas sempre foi uma política de controle social dos indesejados. Se buscarmos, podemos ver que, desde o início, ao criminalizar o consumo da cannabis sativa, por exemplo, o objetivo era perseguir a população negra, recém saída da escravidão, que era quem mais a consumia – assim como foi com a proibição da capoeira, do samba e a perseguição a religiões de matriz africanas.
As ações e proibições do Estado brasileiro têm na sua origem e desenvolvimento objetivos racistas e classistas, de controle social de uma parcela indesejada da população. Basta ver a diferença que é tratada uma pessoa presa com 10 gramas de drogas no Jacaré ou em Ipanema. A diferença é clara. O caso Rafael Braga não nos deixa mentir.
Antes com a criminalização e hoje com o (inefetivo) combate ao tráfico, o Estado sempre visou, com suas ações relacionadas ao comércio e ao consumo de drogas, realizar um controle de pretos, pobres e favelados – uma opressão e controle dos excluídos sociais.
O que esperar de um Estado que extermina uma parcela da sua população? Quando não isso, que nega as condições mínimas de existência e subsistência a essa parte da sociedade, interrompendo e comprometendo a vida social dessa população aos seus direitos básicos em saúde, educação? Modificando e adoecendo uma geração inteira de jovens e crianças que, em tese, são pessoas, mas que, na real, são considerados apenas estatísticas quando desaguam em morte?
A partir desses fatos, nós, moradores da favela do Jacarezinho e de tantas outras favelas do Rio de Janeiro, EXIGIMOS que se interrompa a atual forma de operação que tem caracterizado o trabalho das Polícias Militar e Civil, de maneira a discutir e contribuir na formulação de uma nova POLÍTICA DE DROGAS e de combate à criminalidade.
Rio de Janeiro, 16 de agosto de 2017.
Divulgado pela Agência de Notícia das Favelas (ANF)