Arte: Caroline Nobre
Por Letícia Lindenberg Lemos* e Hélio Wicher Neto**
No final de abril desse ano mais um shopping center foi inaugurado em São Paulo, o Shopping Cidade São Paulo. Além do questionamento a respeito da real necessidade de mais um empreendimento desse tipo na cidade, essa inauguração levanta duas questões importantes no planejamento urbano, muito ligadas entre si: a regulação de Polos Geradores de Tráfego (PGT) e o paradigma de que ofertar estacionamento privado é a medida necessária para diminuir o impacto de um empreendimento na circulação viária.
O começo da regulação de PGTs na cidade de São Paulo data do final da década de 1970, com a promulgação do Decreto 15.980/1979. A partir de então, definiram-se como PGT edificações ou instalações que, ao concentrarem alta oferta de bens e serviços, atraem número elevado de viagens, causam interferência no tráfego do entorno e demandam “grandes espaços de estacionamento”. O critério adotado pelo Decreto para identificar os PGTs considerou a relação entre a área do empreendimento e seu uso, deixando a cargo da Secretaria Municipal de Transporte (SMT) a definição de exigências aos empreendimentos de modo a evitar os “inconvenientes” causados pelo seu funcionamento.
Isso é reafirmado quase uma década depois, com a promulgação da Lei de Áreas Especiais de Tráfego (Lei nº 10.334/1987) e, em 2010, com a Lei de PGT (Lei municipal nº 15.150). Diferentemente do Decreto de 1979, que determinava a mesma regra independentemente de qualquer diferença do território, essas duas normas apresentam regras diferentes para lugares diferentes, pois consideram a saturação do sistema viário para determinar quando e como serão tratados os PGTs. No entanto, elas ainda se baseiam na mesma lógica (dimensão e usos) adotada anteriormente.
Diferentemente da lei de 1979, a de 1987 define claramente a oferta de estacionamento privado como elemento chave para mitigar o impacto dos empreendimentos no tráfego, tendo como pano de fundo a proibição de estacionamento nas vias dentro dessas áreas da cidade. Já a Lei de PGT apresenta um elemento interessante, pois determina que o impacto a ser mitigado é sobre todo o sistema viário, ou seja, isso inclui todos os usuários do sistema. Assim, o controle do impacto não deve se restringir a medidas para usuários de automóveis, mas incluir transporte público, ciclistas e pedestres. Apesar disso, a oferta de estacionamento continua sendo um elemento marcante nas exigências da CET.
A lógica adotada nessas normas foi formulada pelo ITE (Institute of Transportation Engineers – EUA) para ser aplicada nas cidades norte-americanas. Essa lógica parte de uma suposta relação direta entre a área construída “útil”, ou computável, no caso brasileiro, e a atração de veículos motorizados individuais, ou seja, quanto maior a área, tanto mais veículos seriam atraídos pelo empreendimento. No entanto, além de essa relação ser muito criticada especialmente pela falta de relevância estatística dos estudos do ITE, ela desconsidera diversas questões muito relevantes quando tratamos de espaço urbano.
Em primeiro lugar, essa lógica deixa de considerar a notável multiplicidade do território urbano, especialmente em relação às diversidades socioeconômicas e de acessibilidade. É evidente que um território com alta densidade populacional, de emprego, e de serviços e comércio tem maior probabilidade de apresentar um espaço urbano densamente ocupado e promover de forma intensa o deslocamento a pé. Similarmente, um local muito bem servido de meios de transporte, especialmente de alta capacidade, possibilita um amplo e melhor acesso independentemente do uso de veículos motorizados individuais.
Essa lógica tampouco leva em conta que a oferta de determinada infraestrutura resulta numa demanda induzida, ou seja, promove o uso do modal. Considerando isso, pode-se afirmar que a regulação de PGT atua em duas “frentes” de indução. Por um lado, com a retirada de automóveis estacionados nas vias ou com o alargamento dessas, amplia-se a oferta de espaço para circulação que, dada a não prioridade de outros modais, é ocupada por automóveis e similares. Por outro, estimula-se o uso desses veículos ao garantir sua acessibilidade com oferta de local para estacionamentos dentro dos empreendimentos.
Além disso, a maior atração de veículos motorizados individuais não causa impacto somente na circulação viária, facilmente percebido pelo aumento do congestionamento. Outros impactos de natureza mais sutil são mais relevantes se pensarmos na qualidade do espaço público. O primeiro, e mais óbvio, é a poluição sonora, ambiental e visual. Ainda mais sutil é a relação das pessoas com as ruas e a sociabilidade entre os indivíduos que deveria ocorrer nesse espaço, essencialmente público. O fluxo veicular é inibidor disso, pois é inversamente proporcional ao sentimento de pertencimento das pessoas em relação ao espaço público. Assim, ele atua como inibidor de vitalidade, condição que impacta na segurança, pois inibe o que Jane Jacobs denominou de “olhos das ruas”. Ou seja, o modelo orientado para mobilidade individual motorizada, ao aumentar a quantidade de automóveis nas ruas, tem um impacto direto sobre o ambiente do pedestre, tornando-o hostil, e também um indireto, contribuindo para a diminuição da segurança nas ruas, uma vez que inibe seu uso por pessoas.
Por fim, a lógica apontada desconsidera também as potencialidades desses empreendimentos ou atividades de funcionarem como dinamizadores do espaço público, através de aumento do fluxo de pessoas nas ruas do seu entorno. Para compreender esse ponto, é necessário discutir a oferta de estacionamento privado. Uma oferta elevada de vagas para automóveis significa, no limite, que tanto o deslocamento como o acesso (macro e microacessibilidade) aos empreendimentos serão realizados dentro dos veículos. Ou seja, ao evitar que os usuários de automóveis estacionem seus veículos nas ruas do entorno, evita também o fluxo dessas pessoas nas ruas.
Por outro lado, se fosse legalmente possível não oferecer estacionamento dentro do lote, o que teríamos? Sem dúvida, carros estacionados nas ruas. A primeira implicação disso seria a redução do espaço para circulação de automóveis, portanto, do fluxo veicular e, consequentemente, poderia possibilitar um sentimento de maior pertencimento. Teria também o efeito inverso da demanda induzida, inibindo o uso de automóveis? Apesar de não ter resposta para essa pergunta, um resultado é certo, as pessoas teriam que, no mínimo, andar de seus automóveis até seu destino final. Apesar de difícil de imaginar, isso existe fora do Brasil, e não se trata de uma cidade europeia. São Francisco, cidade da costa oeste dos EUA, apesar de apresentar índice de motorização relativamente alto, fez uma sala de concerto, a Louise Davis Hall, sem nenhuma vaga de estacionamento.
São notáveis os pontos positivos de uma política contrária à oferta desmedida de estacionamento privado, como vem acontecendo em São Francisco. A regulação urbanística da cidade estabelece um limite máximo para oferta de vagas de estacionamento (e não mínimo, como é praticado em São Paulo), possibilitando a construção de empreendimentos com poucas vagas ou até mesmo sem estacionamento. Como consequência, o acesso local se dá a pé, inclusive para aqueles que optam por usar o automóvel, promovendo comércios e serviços de rua no entorno dos empreendimentos, e produzindo um espaço urbano dinâmico e com alta vitalidade no seu entorno.
Voltando nossa atenção novamente ao Shopping Cidade São Paulo, constatamos que o empreendimento está localizado em uma das áreas com maior nível de acessibilidade urbana da cidade, a Avenida Paulista. Esse local é atendido por três linhas de metrô, faixa exclusiva para ônibus, alta densidade populacional e de empregos e, mais recentemente, ciclovia. No entanto, a oferta de estacionamento do empreendimento é enorme e não é condizente com as facilidades de deslocamento existentes na região.
Por um lado, temos a legislação que incide sobre esse empreendimento, que exige a oferta de, no mínimo, 1.164 vagas para automóveis. Por outro, como é considerado PGT, sua aprovação passa pela análise da CET, que se utiliza de modelos matemáticos para determinar a atração de veículos, levando em conta a área computável do empreendimento (para o cálculo do aproveitamento do terreno).
Cabe ressaltar que parte da área do empreendimento é utilizada para o shopping e outra parte para escritórios. Consultando o Boletim Técnico nº 36 da CET, percebe-se que apesar de o órgão ter ponderado sobre as viagens motorizadas individuais atraídas pelos escritórios, devido ao nível de acessibilidade urbana, e com isso ter reduzido a atração de viagens por automóveis para 28% das vagas indicadas pela aplicação de seu modelo matemático, essa mesma ponderação não foi levada em conta para o shopping, para o qual se exigiu a oferta de 100% das vagas indicadas.
Com isso, a CET teria exigido oferta de aproximadamente 1.400 vagas, o que já significa 20% acima da exigência mínima legal. No entanto, o empreendimento oferece 1.557 vagas, quase 40% acima da exigência legal. Como a legislação municipal não estabelece um máximo de vagas, nem mesmo para lotes em locais com tais condições de acessibilidade urbana, essa quantidade foi aceita pela SMT.
Além disso, o espaço que esse número de vagas ocupa na área total do empreendimento é notável. Considerando em média 27 m² por vaga, o total da área de estacionamento soma cerca de 35% da área construída total, e não é computável, ou seja, não entra no cálculo da área máxima que o zoneamento permite construir naquele local. Essa proporção é quase igual à da área considerada computável, de aproximadamente 40%. Os outros 25%, também não computáveis, são destinados a áreas técnicas, equipamentos etc.
Além disso, as medidas mitigadoras exigidas também se mostram bastante orientadas para o uso de veículos motorizados individuais. Apesar da notável utilização dessa avenida e seu entorno por pedestres, a única medida para esses usuários foi a implantação ou readequação de guias rebaixadas para acessibilidade de pessoas com deficiência física em dois cruzamentos. Por outro lado, existe um acesso de veículos pela Avenida Paulista para embarque e desembarque, cruzando a faixa exclusiva de ônibus e o passeio, ou seja, nenhuma medida foi pensada para não prejudicar o transporte público e a circulação de pedestres. Além disso, foi exigida uma “adequação geométrica” para aumentar o espaço de circulação para automóveis nas ruas São Carlos do Pinhal e Pamplona.
Com esse caso, percebe-se que o instrumento de PGT não garante uma reflexão acerca do tipo de deslocamentos que a cidade almeja promover e, consequentemente, qual tipo de cidade queremos construir. Tampouco se relaciona com as especificidades territoriais e socioeconômicas, pois é uma norma descolada do Zoneamento da cidade, mas este é assunto para um próximo post.
* Letícia é arquiteta urbanista e mestranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Tem especialização em mobilidade não motorizada pela UNITAR e faz parte da equipe do observaSP.
**Hélio é advogado, cientista social e mestrando na UFABC em Planejamento e Gestão do Território.