Marcha das Mulheres Negras (Crédito: OAB-DF/Reprodução)
A cidade como teia de relações sociais congrega elementos não raro ignorados tanto pela ação estatal quando pela sociedade civil organizada. Para explorar essa lacuna, Leandro F. Gorsdorf e Thiago A. P. Hoshino buscam refletir criticamente sobre tal dinâmica dos lugares político-identitários, colocando em diálogo os conceitos de “lawscape”, desenvolvido por A. Philippopoulos-Mihalopoulos, e de “heterotopia”, formulado por H. Lefèbvre. O direito – e seu avesso: resistência, contra-direito, direitos insurgentes – estão ontologicamente inscritos na linguagem e na materialidade, lá onde espaço, corpos e lei resvalam-se.
O artigo “Nas fronteiras da lawscape: raça e sexo na cidade”, de Leandro F. Gorsdorf e Thiago A. P. Hoshino — pesquisadores da Rede INCT Observatório das Metrópoles — foi apresentado no XVII ENANPUR (São Paulo, maio de 2017), na Sessão Livre (SL 21 Justiça Espacial: sentidos, (contra)usos, fronteiras).
Segundo os autores, pensar-fazer o direito à cidade extrapola a redistribuição locacional do acesso aos bens urbanos e tampouco se esgota na dimensão da produção do espaço. Mais do que isso, está em jogo o lugar da produção das subjetividades políticas e da reconfiguração das identidades coletivas, sobretudo frente ao caráter fundamentalmente corporal dos processos de subjetivação.
“Fronteiras sexuais são definidas por leis explícitas (por exemplo: contravenções penais e códigos de posturas) ou, implicitamente, por uma normatividade inerente à espacialidade. Do mesmo modo, (re)cortes étnico-raciais marcam a carne da cidade e informam a experiência territorial da diferença, numa sobreposição ausências, estigmas e interditos. Do apartheid aos “rolezinhos”, os sentidos da urbanidade são esgarçados e a (i)legitimidade das presenças questionada”, defendem os pesquisadores no artigo e completam:
“Esse esforço de visibilização na cartografia jurídica implica em trazer à tona corpos que habitam, constroem, movimentam e subvertem a cidade, portadores de uma pulsão de democracia potente. Nessa tensão entre performatividade e performance, à la J. Butler, oscila a justiça espacial”.
A Sessão Livre 21 “Justiça Espacial: sentidos, (contra)usos, fronteiras” foi coordenada por Thiago A. P. Hoshino, e contou como debatedora a professora Rosa Moura, vinculada ao Ipea e à Rede Observatório das metrópoles.
A seguir a Introdução da Sessão Livre 21, assinada por Thiago A. P. Hoshino.
JUSTIÇA ESPACIAL: SENTIDOS, (CONTRA)USOS, FRONTEIRAS
Por Thiago A. P. Hoshino
Embora haja sido frutífero o desenvolvimento de diversas categorias de inspiração lefebvriana, como o “direito à cidade” – atualmente incorporado tanto às agendas dos movimentos sociais quanto às de pesquisadores e das instituições – ainda são eventuais as aproximações teóricas daquilo que se alcunhou de “justiça espacial”. Nesse sentido, é possível identificar o investimento de toda uma tradição anglo-saxônica (Soja, Marcuse, Fainstein, Harvey, etc.) na consolidação do conceito, com importantes desdobramentos posteriores, cuja permeabilidade, todavia, ainda é baixa no debate brasileiro e latino-americano.
Impulsionada por esse hiato, a sessão propõe explorar as potencialidades do conceito, na pluralidade de (contra)usos e sentidos que assume tanto na literatura acadêmica, quanto na prática política de diversos atores sociais. E se propõe a fazê-lo na arriscada fronteira interdisciplinar (multi? trans?) a que necessariamente conduz a conjugação de “justiça” e “espaço”. A partir de abordagens críticas, instiga-se a questão: qual a rentabilidade da “justiça espacial” para a reflexão sobre o urbano na contemporaneidade? Nas seminais palavras de Philippopoulos-Mihalopoulos (2016): “Spatial justice could be the most radical offspring of law’s spatial turn. Instead, in the literature it remains a geographically informed version of social justice, a slightly trendier conceptualisation that casts sideways glances to its surroundings.”
Com enfoques não convencionais, a cidade e os direitos – nela inscritos e/ou restritos – recebem, nesta sessão, a atenção de planejadores(as), urbanistas, juristas e antropólogos(as), sobretudo num momento em que a gramática dos direitos (“rigths talk”) se expande para ser mobilizada também por discursos contestatórios e reivindicatórios. Para além da instituição formal de tais direitos, todavia, as vozes coletivas que emergem denunciam a manutenção e a reinvenção de práticas oficiosas e imaginários urbanos de exclusão, marginalização e subordinação.
Portanto, a normatividade – tanto em sentido clássico, legal, positivo, quanto em sentido foucaultiano, difuso, constitutivo – comparece aqui como objeto privilegiado de análise, na medida em que desenha fronteiras físicas e simbólicas para o acesso, a produção e a apropriação do espaço. Distintas corporalidades, performatividades, modos de vida e de organização social são vetados por meio de interditos territoriais, ao passo que a forma-mercadoria coloniza as cidades e o consumo se transforma na via hegemônica de experiência urbana.
A discriminação se enraíza espacialmente e configura mecanismos de disciplinarização e controle com viés de classe, de raça, de sexo, de gênero. Também na própria administração de controvérsias (as fundiários, por exemplo), nos protocolos de policiamento (que produzem seu próprios alvos preferenciais), na prestação de serviços públicos (como o transporte) ou nos programa estatais (como de moradia), estratégias biopolíticas sutis informam as posturas e critérios de seleção da população, tornada objeto e não sujeito de direitos fundamentais. Esse arsenal opera em associação com dispositivos extrajurídicos, como a política das escalas, a ambientalização dos conflitos e a securitização da vida. Não à toa, à justiça espacial conectam-se conceitos outros como os de “justiça ambiental”, “justiça escalar”, “justiça histórica”, articulados a partir de diferentes lugares de fala que são tanto metafóricos quanto materiais: são performáticos e portam uma potência política inegável.
Os trabalhos apresentados na presente sessão aportam elementos empíricos e teóricos para essa outra “cartografia dos direitos”. Parcialmente declarado – em tratados, constituições e leis – e parcialmente subterrâneo – fundadas no estigma, na microfísica e nas silenciosa repressividade –, os mapas das ausências, da realização diferencial dos direitos e da construção diferencial das próprias subjetividades permitem articular os conceitos de “différance” e de “vie quotidienne” de H. Lefebvre no contexto brasileiro e com outras genealogias de pensamento. É o que demonstram
os quatro estudos de caso e pesquisas aqui reunidas, fruto de diálogo entre três instituições distintas e variados marcos analíticos, apontando para espaços de heterotopia e (r)existência.
As encruzilhadas da democracia, a potência multitudinária (à la Negri) das emergência sociais e o futuro do pensamento crítico estão pautados na tríade crise, resistência, desenvolvimento que empresta o mote do XVII ENANPUR.
— Giovanna Milano e Laura Bertol organizam uma reflexão sobre a crise da política de habitação de interesse social a partir do desenvolvimento de critérios de seletividade, estigmatização e exclusão territoriais, os quais, tanto na esfera administrativa quanto judicial, tratam seus beneficiários como “invasores” em espaço alheio. Os agentes da burocracia e do Poder Judiciário, neste sentido, formulam narrativas que apresentam os titulares do direito à moradia como outsiders.
— Thiago Hoshino e Leandro Gorsdorf abordam as (r)existências urbanas a partir do conceito de lawscap, que explicita a normatividade ínsita ao espaço e os dilemas da coexistencialidade entre corpos (cores, raças, sexos) diferentes e divergentes, em sua performatividade. Ao focalizar tanto as regras expressas, formais, como códigos de posturas, quanto as fronteiras simbólicas da cidade, encampam a justiça espacial como uma oscilação entre posições tensas e suas reivindicações.
— Rosângela Luft desconstrói os mitos envolvendo o planejamento e a gestão do transporte público, em sua interface com a realização do direito à cidade, sob a ótica da artificialidade dos modelos econômicos e as respostas jurídicas criadas para atendê-los (como a noção de “equilíbrio econômico-financeiro” nas concessões do serviço), em diferentes escalas urbano-regionais, enfatizando o déficit democrático das decisões e procedimentos centrais desta política.
— Felipe Soares e Arthur Nascimento, por fim, desfiam e desafiam a teia de controles e subversões presentes na pixação, um conflito entre distintos imaginários urbanos e formas de apropriar-se da cidade, em que a propriedade privada se contrapõe ao convite que oferecem as superfícies, à arte e aos artistas, em que o espaço concebido (e regulado) se contrapõe ao espaço vivido, na cotidianidade.
Como realizar, em cada um dos cenários pintados, as funções sociais da cidade (art. 182 da Constituição de 1988) e a justa distribuição de benefícios e ônus do processo de urbanização (art. 2o, IX do Estatuto da Cidade)? Em tempos de globalização liberal, qual a natureza da cidade possível? Em tempos de refluxo autoritário, qual o espaço da divergência/diferença possível? Em tempos de crise democrática, qual o horizonte político possível? Em tempos de judicialização da política e de politização da justiça, qual a justiça urbana possível? Qualquer que seja a reposta, ela necessariamente passa pela justiça espacial.
Acesse no link o documento completo da Sessão Livre 21.
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