Neste artigo para a Revista Estudos Avançados (USP), a pesquisadora do Observatório das Metrópoles Suzana Pasternak discute o conceito de moradia adequada, e mostra que os indicadores utilizados no Brasil, embora adequados para o momento e o local, não cobrem todas as condições habitacionais para promover a saúde e o bem-estar dos moradores. A análise explicita a relação habitação-saúde através de quatro dimensões: casa e doenças transmissíveis, casa e necessidades fisiológicas, casa e acidentes domésticos, casa e saúde mental. Ao final, Pasternak descreve as condições ambientais das favelas paulistanas.
Revista Estudos Avançados
A revista Estudos Avançados é uma publicação quadrimestral do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP). Criada em dezembro de 1987, conta com 88 edições publicadas. Sua sobrevivência reflete, naturalmente, a vitalidade conquistada pelo IEA, responsável por sua edição.
A publicação tem lançado dossiês sobre questões candentes como a situação do negro no Brasil, a nossa pluralidade étnica, cultural e religiosa, a necessidade de incentivar a produção de formas não-poluentes de energia, o desmatamento da Amazônia, as repercussões internas da crise financeira internacional, a complexidade da vida urbana nas metrópoles da Nação, o desenvolvimento sustentável, vêm sendo abordadas de modo exaustivo, na medida que centros superiores de pesquisas do Brasil e do exterior nos têm disponibilizado ampla informação e densas interpretações em todos esses campos graças à idoneidade que reconhecem nas propostas e atividades do Instituo de Estudos Avançados.
Habitação e saúde
Por Suzana Pasternaki (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo)
O conceito de habitação já é bastante impreciso. Que características teriam em comum um chalé suíço, um iglu ou um apartamento num arranha-céu em zona urbana? E é indiscutível que são locais de moradia.
Quando se fala em habitação, leva-se em conta não só a unidade habitacional, mas também os aspectos de integração dessa unidade na trama urbana, além do grau de atendimento a serviços de infraestrutura e equipamento social. Assim, o conceito de habitação adequada envolve pelo menos esses dois níveis. Relatório da WHO (2010) inclui quatro aspectos na definição de habitação:
casa (house)- ou seja, a estrutura física;
lar (home)- a estrutura econômica, social e cultural estabelecida pela família (household, grupo doméstico) residente;
bairro (neighbourhood) – são ruas, lojas, igrejas, escolas, área verde e de recreação, transporte etc., que circundam a casa;
Comunidade – inclui os que moram, trabalham ou prestam serviços no bairro.
Habitação e meio ambiente têm profundo impacto na saúde humana: é estimado que se passem 80% a 90% do dia em meio ambiente construído e a maioria desse tempo em casa. Assim, riscos em relação à saúde nesse ambiente são de extrema relevância. O papel da habitação para a saúde é ainda realçado porque são justamente os mais vulneráveis (doentes, idosos, crianças, inválidos) que lá passam a maior parte do seu tempo.
Mas qual o significado do termo habitação adequada, e como mensurá-la?
Uma moradia edificada em 1950 e comportando somente adução de água e gás poderia passar perfeitamente por decente na França da época. Hoje, a ausência de sanitários nos apartamentos nos parece escandalosa. Exige-se sala de banhos, aquecimento central, isolamento acústico, garagem. Existe a tendência a considerar todas essas comodidades como um mínimo. Muitos vão demandar lugar para guardar seu carrinho de nenê, suas bicicletas e ferramentas. Outros reclamarão mais terraços, água quente no imóvel, uma cozinha funcional, tubo de lixo, lavanderias coletivas, antenas para rádio e televisão, telefone. Em compensação, não se tem mais cocheiras, escadas separadas para fornecedores, quartos de empregadas no sótão. (Havel, 1968, p.11)
A citação de Havel data dos fins da década de 1960. Atualmente a TV a cabo e a internet introduzem novas necessidades. Mas o que se percebe é que o conceito é histórico e regional. Em regiões frias, o aquecimento central é necessidade, o que não acontece em Belém do Pará, por exemplo, onde mesmo o chuveiro elétrico poderia ser dispensado.
As intervenções na legislação da habitação mínima ligam-se, no seu início, à legislação de saúde pública inglesa, de 1848. Essa lei permitia a intervenção estatal no tecido urbano quando solicitado por uma décima parte dos habitantes de um núcleo urbano, ou quando seu coeficiente de mortalidade nos últimos sete anos tivesse sido superiro a 23/1000. Obrigava, entre outros itens, toda casa a ter um sanitário e eliminação de dejetos apropriada, normatizava casas de aluguel, proibindo o aluguel de porões e determinando requisitos de limpeza e ventilação, abastecimento de água e pavimentação dos caminhos.
Na França, embates entre socialistas e católicos polemizaram as intervenções na moradia, até que uma epidemia de cólera em 1849 foi motivo determinante para aprovação de lei em abril de 1850, permitindo intervenção e inclusive desapropriação de unidades habitacionais consideradas insalubres. Nos Estados Unidos, em 1939, o Commitee on the Hygiene of Housing publica, pela primeira vez, os Basic principles of healthful housing. Esse relatório divide-se em quatro sessões e coloca trinta princípios, ligados às necessidades fisiológicas (temperatura, ar, luz solar, iluminação artificial, proteção contra barulho, espaço para brincar), necessidades psicológicas (privacidade, desenvolvimento de vida familiar e comunitária), equipamentos domésticos para minimizar fadiga física e mental, facilidade de limpeza e manutenção, satisfação estética, concordância com standard social vigente, proteção contra contágio (água, esgoto, lixo, proteção contra vetores, espaço nos dormitórios para minimizar contágio de doenças), proteção contra acidentes (matérias de construção, choques, fogo, gás, cuidados projetuais para minimização de acidentes). Baseada nessas recomendações, a American Public Health Association (APHA, 1945) chegou até a patrocinar uma escala numérica de adequação residencial.
O movimento sanitarista exerceu forte influência nas políticas de saúde pública até o fim do século XIX, por meio de legislações e obras de engenharia. No século XX, entretanto, esse movimento perdeu força com o início da era bacteriológica e a ênfase maior dada à prevenção pessoal (vacinação). Segundo Westphal (2000) a retomada da ideologia sanitarista aconteceu apenas na década de 1970, quando a medicina curativa, por seus altos custos tecnológicos, entrou em crise. Essa “nova saúde pública” sugere que a medicina sozinha não pode resolver os problemas de saúde, necessitando se articular com outros campos do conhecimento, como urbanismo, habitação, meio ambiente, cultura, transporte, educação, lazer.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), após a publicação do Informe Lalonde no Canadá em 1974 (Hermeto, 2009, p.150), “deu início a uma série de conferências internacionais de forma a divulgar o novo conceito de promoção da saúde”. Essas conferências culminaram com a I Conferência Internacional sobre Saúde, em Ottawa, no Canadá, em 1986, que enfatizou a intersetorialidade implicada: “O conceito saúde, como bem-estar, transcende o setor saúde”. E completa: “as condições e requisitos para a saúde são: paz, educação, alimentação, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade” (Buss apud Hermeto, 2009, p.150). Um ano mais tarde, a OMS estabeleceu uma comissão com o objetivo de delinear uma política de habitação saudável, lançando um documento Housing-implications for health (WHO, 1987). Influenciada por essas recomendações, a Organização Pan-americana de Saúde em 1995 implementou a criação da Red Interamericana de la Vivienda Saludable, que originou, em 2000, a Rede Brasileira de Habitação Saudável (RBHS) (Cohen et al., 2007).
No Brasil, o conceito de déficit habitacional acaba por dimensionar, indiretamente, o que se chama, hoje, de habitação adequada. A Fundação João Pinheiro (2008, p.11), responsável por esse cálculo, coloca alguns pressupostos: o primeiro fala “que numa sociedade profundamente hierarquizada e desigual como a brasileira, não se deve padronizar as necessidades de moradia para todos os estratos de renda”. Isso justificaria a adoção de paramentos distintos para locais e camadas de renda diferentes. A aceitação desse pressuposto visa permitir incluir no estoque aceitável parte das moradias em favelas, justificando inclusive sua urbanização e aceitação, dentro de marco legal, de unidades que seriam interditadas no chamando mercado formal.
O segundo pressuposto, que reforça o já exposto, é “que a discussão do tema habitacional possui fortes interfaces com outras questões recorrentes e complementares” (ibidem, p.13). A relação da política habitacional com outras políticas urbanas é um aspecto importante a ser considerado e nem sempre um simples incremento nos programas de habitação seria solução mais adequada para melhoria das condições de moradia das populações pobres. Introduz, assim, o conceito de inadequação dos domicílios, partindo do pressuposto de que em muito casos a melhor forma de enfrentar o problema habitacional seria implementar políticas complementares e não, obrigatoriamente, construir mais unidades de moradia.
Dessa forma coloca como indicadores de moradia inadequada dois grupos: um, referindo-se a unidades totalmente inadequadas, com substituição obrigatória; outro, onde as unidades seriam no momento inadequadas, mas passíveis de reforma ou colocação de algum equipamento para se enquadrarem na norma vigente. As unidades habitacionais totalmente inadequadas seriam os domicílios improvisados (por exemplo, grutas, carros, tocas, barracas) e rústicos (construídos com materiais que não alvenaria ou madeira aparelhada) e com adensamento excessivo em moradias alugadas (o indicador utilizado refere-se a unidades habitacionais de aluguel onde, nos cômodos utilizados para dormir, existam mais de três pessoas).
A esses dois aspectos materiais se somam outros dois relativos à forma de ocupação: unidades com ônus excessivo de aluguel (mais de 30% da renda familiar) e casas onde existe coabitação familiar involuntária). Em relação aos aspectos materiais, o conceito de domicílio improvisado ou rústico obtém unanimidade. Sobre famílias conviventes, o conceito já foi modificado, dado que o anterior coloca como déficit, e portanto moradia inadequada, toda a unidade com mais de uma família, refletindo o ditado popular “quem casa quer casa”.
Questão introduzida pela PNAD 2007 permitiu observar que esse axioma nem sempre era verdadeiro, e a coabitação familiar era, inúmeras vezes, voluntária, como parte de estratégia de sobrevivência. E, em relação ao ônus excessivo com aluguel urbano, a discussão tem sido que o mais adequado seria subsidiar o aluguel, não havendo necessidade de construir mais unidades. Nota-se também que o indicador utilizado para adensamento excessivo, de três pessoas por dormitório, tem alto grau de voluntarismo: por que três e não duas, como utilizado em outros países? E também vai depender do tamanho do dormitório. A explicação do porquê esse indicador era utilizado apenas para moradias de aluguel coloca que, nas próprias, isso poderia ser sanado com a construção de mais um quarto, ou com a venda do imóvel e a mudança para uma unidade maior.
Embora os conceitos envolvidos: segurança material, ventilação e privacidade sejam indiscutíveis, sua operacionalidade é complicada. Todo indicador operacional carrega uma grande dose de arbitrariedade, o que torna ainda mais complicada a utilização prática de um conceito. A Fundação João Pinheiro (FJP) lista ainda como indicadores de inadequação dos domicílios o adensamento excessivo de moradores em domicílios próprios (o indicador continua sendo três ou mais pessoas por dormitório), qualquer carência de serviços de infraestrutura (não dispor de ao menos um dos serviços básicos: iluminação elétrica, rede geral de canalização de água com canalização interna, rede geral de esgotamento sanitário ou fossa séptica e coleta de lixo), inadequação fundiária, cobertura inadequada, inexistência de unidade sanitária domiciliar exclusiva.
Percebe-se que os indicadores que definem moradia adequada no Brasil são restritos: em relação a saúde e bem-estar, colocam parâmetros mínimos – matérias de construção duráveis, existência de infraestrutura sanitária básica, adensamento máximo, sanitário exclusivo, adequação fundiária, relação aluguel/renda mínima, convivência familiar indesejada. Até na operacionalidade o conceito brasileiro é histórico e regional. São parâmetros mínimos, os possíveis para o país neste momento. Mas não os desejáveis em relação a um completo bem-estar domiciliar. Os desejáveis deveriam considerar todas as relações habitação-saúde e bem-estar.
Acesse o artigo completo Habitação e Saúde na Plataforma Scielo.
Última modificação em 17-03-2017 13:01:42