Desde que tomou posse na Prefeitura de São Paulo em janeiro de 2017, João Doria Jr. tem ignorado conselhos participativos e destituído conselheiros, mostrando falta de compreensão do que são os processos participativos e a importância deles para a gestão democrática. Para debater o tema, o blog observaSP entrevista o cientista político Adrian Gurza Lavalle (FFLCH-USP), que comenta sobre as diferenças entre as instâncias de participação social e seu papel para a construção de políticas públicas. A pergunta que se coloca é: a vitória nas urnas garante plenos poderes para gestores públicos?
O blog observaSP é uma iniciativa do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade/FAU/USP), que integra o projeto de pesquisa “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil”, com financiamento da Fundação Ford. O INCT Observatório das Metrópoles participa do projeto com estudos de caso no Rio de Janeiro, coordenado pelo professor Orlando Alves dos Santos Jr., e em Fortaleza, coordenado pelo professor Renato Pequeno.
O blog observaSP tem como objetivo monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos. Coordenado por Paula Santoro e Raquel Rolnik, o observaSP tem monitorado os desdobramentos do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo e a implementação da Operação Urbana Consorciada Água Branca.
ENTREVISTA
Adrian Gurza Lavalle, professor do departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e coordenador do Núcleo de Pesquisa Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
Por Gisele Brito, jornalista do blog observaSP.
ObservaSP: No mês passado, a Prefeitura de São Paulo, para não discutir o aumento da velocidade das marginais com o Conselho Municipal de Transporte, usou a justificativa de que a medida já havia sido debatida e aprovada durante a eleição, ocorrida em outubro do ano passado. Levando em consideração os princípios da participação social, o senhor acha essa justificativa adequada?
Adrian Gurza Lavalle: Existem no Brasil aproximadamente 45 mil conselhos. Apenas cinco ou quatro estão presentes em mais de 85%-90% dos municípios brasileiros. E existe uma gama muito ampla de conselhos, digamos uns 25 deles, que são menos especificados institucionalmente que os tradicionais. Eu entendo por conselhos tradicionais aqueles que são vinculados a sistemas, os que contam com fundos setoriais, os que foram expandidos se beneficiando de condicionalidades para repasse de recursos via legislação federal. Por essas características, esses conselhos conseguiram se expandir e atingir uma capilaridade territorial no Brasil que cobre praticamente 100% do território. São eles: saúde, assistência social, direito da criança e do adolescente e, em menor grau, mas ainda sendo parte desse grupo mais capilarizado, educação.
Há outro universo de conselhos com expansão média, que não tiveram um reforço de legislação federal e que se conseguiu implantar numa porcentagem que varia entre 30% e 70% do território brasileiro. E há conselhos que se encontram presentes em entre 30% e 2% dos municípios. O de transporte é um desse último grupo. Então é um conselho muito pouco institucionalizado para o qual não existe obrigatoriedade federal. Não existe nenhuma legislação que os obrigue ou os defina como peça fundamental da política de transporte. Conselhos que são criados para a conveniência do poder executivo ou do poder legislativo municipal podem ser alterados muito facilmente. E esse é o caso de vários conselhos que foram criados na gestão Haddad. Nesse caso em particular, não era de se surpreender que o João Doria chegasse e tentasse diminuir a importância dessas instâncias. Nós sabemos pela pesquisa acumulada que, quando há um partido que chega ao poder e o anterior tinha uma aposta forte em instâncias participativas, uma das reações que tem o que entra é desidratá-las.
Em alguns casos isso não é possível porque escapa a possibilidade, embora possa complicar a vida delas, ainda que elas tenham alguma capacidade de resistência. Outras não têm nenhuma chance porque é o prefeito que decide se as coisas passam ou não por elas. Não há nenhum recurso legal que possa ser acionado. Então do ponto de vista político, era esperado que Doria fizesse isso e ele fará com a maior parte dos conselhos criados na gestão Haddad. Isso porque, na interpretação do PSDB e, em especial, na interpretação dos setores mais à direita do partido aos quais Doria está vinculado, essas instâncias acolhem grupos sociais próximos ao PT. Faz parte da estratégia política minar as condições de reprodução política do adversário. E é isso que eles estão fazendo. Eles vão tentar reconstruir relações com outros grupos sociais e, na medida do possível, bloquearão as instâncias onde o PT construía certo tipo de vínculo.
Em princípio, há um motivo político por trás [da não consideração do conselho na questão da velocidade nas marginais], mas, do ponto de vista da legitimidade, não é inteiramente ilegítimo, embora eu discorde, que Doria responda nesses termos. Porque é verdade que isso [o aumento dos limites de velocidade das vias marginais] foi debatido na eleição. Primeiro porque ele não precisaria passar [o aumento da velocidade] pelo conselho, isso não infringe nenhuma disposição legal. Segundo porque, de fato, esse tema foi uma das poucas ideias, se não a única, que esteve presente na campanha para prefeito do Doria. Logo, ele está implantando aquilo que disse que iria fazer. Há uma legitimidade que vem da urna e ele pode evocá-la.
ObservaSP: Mas existe diferença entre a instância de participação do conselho e a eleição?
Seria importante entender que os conselhos, embora sejam instâncias de participação, têm, a rigor, uma natureza diversa daquilo que o cidadão médio imagina como participação. As urnas permitem que o cidadão exprima suas preferências e o resultado é o resultado das preferências médias. Mas aí [na eleição] você tem o cidadão como indivíduo participando. E os conselhos, em rigor, não são para a participação cidadã. Neles, a única coisa que você não vê é esse cidadão avulso. O que se vê são organizações da sociedade civil, atores coletivos com vínculos e compromissos específicos com determinadas temáticas mobilizados em torno delas. As pessoas que fazem parte dessas organizações da sociedade civil são lideranças, pessoas com reconhecida trajetória.
Os grupos organizados que se mobilizam sistematicamente por questões de transporte, como os ciclistas, por exemplo, que fizeram com que o Doria tivesse que entrar na justiça sobre a questão da velocidade, não são iguais ao cidadão médio. Eles são organizados. Nesse sentido, são instâncias muito interessantes para você escutar diversas opiniões qualificadas de atores envolvidos nas temáticas. Esse é o papel dos conselhos. No conselho de saúde, por exemplo, há representantes de movimento sociais, dos trabalhadores, sindicatos. Há pessoas ligadas ao movimento sanitarista, entre elas, médicos. Nenhum desses é um cidadão médio. Mas esses atores têm uma determinada compreensão do que seja o SUS. O debate é relevante para tornar a política porosa a uma gama mais diversa de interesses. O que os conselhos garantem é fazer isso. Os conselhos provavelmente tendem a dar voos a compreensões das políticas que não são as que tradicionalmente dominam a política. Por isso, tendem a ser desconfortáveis para as prefeituras.
Mas os conselhos não são invencíveis também, não é? O Estado tem mecanismos para manipulá-los e tirar essa característica de diversidade e crítica através da composição e das próprias pautas direcionadas a eles.
Mas seria desejável que eles fossem invencíveis, para usar uma expressão que você usou? Não. Em nenhuma política. As políticas são extremamente complexas e têm que permitir uma diversidade de interesses se articulando e se confrontando. A compreensão de que os conselhos teriam de ter poder terminativo vinculante esteve na literatura no começo dos anos 90, antes que sequer fosse claro para o que os conselhos serviam. Nós sabemos hoje pelas pesquisas que temos desenvolvido que os conselhos demoram aproximadamente oito ou nove anos para começarem a produzir decisões sobre políticas.
Então veja, a literatura que estudou o tema nos anos 90 esperava que eles fossem terminativos e deliberativos. Mas eles não foram pensados para ter essa capacidade e não seria desejável que tivessem. Porque, a rigor, nenhuma instância é terminativa quando se pensa na política setorial. A forma como acabaram por funcionar foi a de instâncias de controle, de incidência, de fiscalização, de aperfeiçoamento e, em algum grau, de definição da política nos seus setores onde estão especificadas institucionalmente. Isso não ocorre em setores em que o conselho não está inserido na política. Há muitos, como os de transporte, direitos humanos, mulher e igualdade racial, que podem produzir decisões, mas não estão articulados ao funcionamento regular da política. Não são integrados à operação da política e são assim porque não foram determinados pela legislação federal.
Mas aqueles conselhos que estão integrados ao funcionamento regular produzem coisas. Não são terminativos, invencíveis, vinculantes. Mas isso não significa que sejam inúteis. Significa que são um fator a mais de modulação, controle e pressão social.
ObservaSP: É possível hierarquizar os diversos tipos de participação?
Embora a palavra seja participação, ela pode significar coisas muito distintas. Não há um modelo único. Da mesma forma, a participação não produz os mesmos efeitos. Uma das coisas que avançamos muito é que, durante muitos anos, se pensava que participação significava a participação da população, envolver o pessoal. Com o tempo, a literatura foi avançando e nós aprendemos que há ganhos e há perdas e é preciso saber o que se quer.
Se o seu problema é garantir que o maior número de pessoas esteja envolvido, isso pode ser um ganho do ponto de vista da inclusão, um ganho do ponto de vista da legitimidade, mas definitivamente não haverá ganhos deliberativos. Porque quanto maior a quantidade de pessoas envolvidas, menor a capacidade que elas têm de discutir sistematicamente ideias. Bom exemplo disso são as eleições. Nelas há inclusão universal, mas que se reduz à capacidade do cidadão de dar uma informação binária “sim ou não”.
Mas todos os cidadãos, se assim o quiserem, poderão fazê-lo. Temos o orçamento participativo. Nele, você pode fazer assembleias nos bairros. Você tem quinhentas pessoas daquela região participando. Aquele cidadão avulso, não organizado. Só que quando se observa a dinâmica da assembleia… Há uma lista com 250 pessoas inscritas e trinta segundos de fala para cada. Tem-se um modelo que tem virtudes no sentido da capacidade de incorporar, incluir e produzir legitimidade, mas, por outro lado, tem pouca capacidade elucidativa a respeito de argumentos, qualidades.
O que as pessoas precisam responder é: para que nós queremos a participação? Que tipo de insumo nós estamos demandando. Se for legitimidade, inclusão, amplia-se o número. Mas se não for isso e você quer ter um debate mais qualificado, é preciso ter algum tipo de recrutamento de atores interessados. E os conselhos fazem esse tipo de seleção.
Quem escolhe os conselheiros são as redes de associações relacionadas a certos temas, que se combinam, se articulam fazem suas chapas. Estão claramente envolvidas na temática. A gente não pode esperar que um tipo de participação dê conta de todas as demandas que se projetam sobre o ideário de processo participativo. Elas não serão os veículos de transformação radical da sociedade. Mas a participação é importante porque ela produz casas mais próximas das necessidades dos moradores. Produz políticas menos alheias àqueles que serão afetados por essas políticas. Esses são resultados desejáveis. Podem ser efeitos pouco instigantes, mas não são poucos. Não são triviais. Então precisamos ter uma arquitetura de participação capaz de responder diversas demandas, problemas, produzir distintos resultados.
ObservaSP: A falha dessas arquiteturas é que provoca a chamada crise de representatividade?
Quando a gente fala em crise de representação, normalmente o subtexto disso é que o governo representativo e suas instituições pilares – ou seja, o sistema de partidos, as eleições – são incapazes de produzir decisões consideradas legítimas pela maior parte da população. São incapazes de tramitar decisões difíceis sem criar conflitos sociais. Isso tem razões mais estruturais e tem razões mais conjunturais. As mais conjunturais, no Brasil, todo mundo já conhece. A política, a classe política em geral, entrou em completo descrédito pela corrupção e pela forma como isso foi explorado sistematicamente pelos meios de comunicação. Então a classe política, de fato, perdeu qualquer credibilidade aos olhos do cidadão médio. E isso torna o sistema no qual opera essa classe política um sistema que é considerado ilegítimo. Pouco desejável.
Mas essas são características mais conjunturais. Há aquilo que a literatura sobre representação vinha tematizando a partir dos anos 80 e que tem mais a ver com um processo de mudança mais de fundo na sociedade. As nossas sociedades se tornaram muito mais diversas, muito mais complexas, e as velhas categorias sociais, que serviam para organizar a representação política, pensando basicamente nos partidos de massa – e esses diagnósticos estão calcados na realidade europeia –, essas velhas categorias começaram a perder massa. Se você pensar que havia partidos vinculados a categorias específicas de trabalhadores e que o mundo do trabalho desmilinguiu-se… Não tem nada mais a ver com o velho mundo do trabalho fordista, industrial. Ou seja, você perdeu a verossimilhança entre uma estrutura partidária que aparentemente correspondia a grandes categorias sociais e que podia lê-las e projetar os interesses delas.
Se você faz um censo em uma favela como Paraisópolis, como eu fiz há uns oito, nove anos, 2% dos moradores trabalham vinculados à indústria. E a esmagadora maioria, na ordem de 90%, trabalha em serviços informais. Uma parte importantíssima em serviços domésticos, outra parte importantíssima na segurança… Há uma diversidade lá dentro, e produzir um discurso que consiga se ligar com os anseios desses grupos sociais a partir de uma leitura estrutural da sociedade ao trabalhador, ao trabalhador industrial, se torna muito difícil. Os partidos nunca representaram de fato essa estrutura, mas existia uma verossimilhança entre categorias sociais e discursos centrados nas necessidades dessas categorias. Isso perdeu força. Por outro lado, houve processos de transformação dos próprios partidos políticos.
Os partidos políticos de massa surgiram para viabilizar a participação de grupos sociais desfavorecidos. Para se viabilizar, eles tinham penetração territorial. Tipicamente, o modelo europeu tinha células em cada bairro, as pessoas iam ao local do partido, assistiam cinema no local do partido, ele tinha revista que circulava, tinha diretores de cinema vinculados aos partidos. Isso mudou. Os partidos de massa passaram progressivamente a receber recursos públicos e se viabilizaram sem depender dessa estrutura permanente.
Na medida em que isso aconteceu, eles começaram a perder vínculos com esses meios sociais, simplesmente porque é muito mais fácil, muito mais barato do que fazer isso. E a outra peça desse cenário é o crescente peso dos meios de comunicação nos processos eleitorais. Então hoje os partidos atingem seus eleitores no conforto do seu lar, no horário do jantar. E isso faz uma diferença brutal. No mundo todo, os partidos foram se tornando aquilo que se chama de partidos cartel. Partidos que basicamente se amafiam para ganhar recursos públicos e se viabilizam abocanhando fatias de recursos públicos. E isso se afasta da população.
Tudo isso é denominado, do ponto de vista dos diagnósticos disponíveis na Ciência Política, como crise da representação. Temos isso como pano de fundo e temos a situação conjuntural no Brasil. As instâncias participativas são entendidas como uma forma de lidar com essa crise da representação. Mas me parece que esse diagnóstico é errado de cabo a rabo. As instâncias participativas não têm como lidar com essa crise. Para lidar com ela, é preciso um tipo de participação que pareça participação eleitoral. As instâncias participativas fazem outra coisa. Elas pluralizam os espaços em que interesses sociais podem se fazer representar dentro do processo de produção da política. Mas isso não salva a democracia. Está atuando em outro registro. Essa leitura, me parece, erra o alvo. Essas instâncias não foram criadas para dar conta da crise da representação e nem vão dar conta. Esse é um processo mais macro, que terá que ser resolvido de outra forma. Mas de fato essas arquiteturas participativas, a multiplicação de instâncias de inovação democrática, tornam as nossas sociedades mais porosas à diversidade de interesses sociais. E nesse sentido as tornam mais representativas. Mas isso não diz respeito à democracia; diz respeito à forma como operam as instituições mais regulares da política, de tomada de decisões em âmbitos distintos. É melhor que seja assim. É melhor que tenham a presença de mais interesses. As instâncias participativas estão fazendo isso. E teríamos que multiplicá-las para fazer outros tipos de inserções e intervenções.
ObservaSP: De certa forma, há uma tendência de mais gente nas ruas e menos votos nas urnas…
Aí há uma conexão entre essa crise percebida e mobilização social. Essa relação existe. Mas não há conexão necessariamente entre ela e as pessoas que estão nessas instâncias participativas. Novamente, isso é um diagnóstico errado, achar que as instâncias participativas erraram porque as pessoas estão nas ruas. As pessoas que estão nessas instâncias têm certo perfil, são atores sociais comprometidos com certas agendas. A pessoa que está na rua tem outro perfil. Para o cidadão médio, conselho não existe.
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Última modificação em 20-02-2017 18:04:57