Neste artigo Maria Angélica Maciel Costa avalia os “fluxos da água” na metrópole do Rio de Janeiro, apontando as relações desiguais de poder envolvidas na gestão bem como as consequências em áreas periféricas. A análise apresenta entrevista com gestores, usuários de água e representantes da sociedade civil; além do “Cadastro de Usuários de Água”. Segundo a autora, no contexto de despoluição da Baía de Guanabara, a garantia do acesso à água continua a variar de forma expressiva na metrópole fluminense. Acesse o dossiê “Águas Urbanas” da Revista Cadernos Metrópole.
O artigo “Da lama ao caos: um estuário chamado Baía de Guanabara”, de Maria Angélica Maciel, é um dos destaques do Dossiê “Águas urbanas”, da Revista Cadernos Metrópole nº 33.
Abstract
This paper aims to analyze the “water flow” in the city of Rio de Janeiro, the unequal power relations involved in its management, and the consequence of this situation in peripheral areas. To this end, we carried out a literature review, inter views with managers, water users and civil society representatives, and analyzed the Water User Registration provided by the governing body. We verified that in the context of social and spatial mutations linked to industrialization and to huge investments for a (new) cleaning-up of Guanabara Bay, the guarantee of access to water, as well as the treatment given to users, continues to vary significantly in Rio de Janeiro.
Keywords: multiple uses of water; political ecology of water; Guanabara Bay; metropolitan water management; water flows.
Introdução
Nas metrópoles ao redor do mundo, é comum a água passar por uma série de transformações até chegar ao usuário final. Trata-se de modificações não apenas em termos de características físico/químicas, mas também em termos de suas peculiaridades sociais e seus significados simbólicos e culturais. Nas cidades capitalistas, ou pelo menos nas cidades onde as relações de mercado são a forma dominante de troca, a circulação de água também é parte integrante da circulação de dinheiro e capital (Swyngedouw, 2004). Assim como acontece com outros bens e serviços urbanos, a circulação de água (ou os serviços que envolvem o saneamento ambiental) está diretamente imbricada com a economia política e os sistemas de poder, que dão estrutura e coerência ao tecido urbano (ibid.).
Neste artigo, o intuito é analisar os problemas relacionados à “questão da água” na Região Hidrográfica da Baía de Guanabara. Pretende-se refletir sobre os “fluxos da água” na metrópole fluminense e as relações de poder envolvidas nesse campo. A relevância deste tema se deve ao fato de o estuário Baía de Guanabara encontrar-se encravado no centro da segunda Região Metropolitana (RM) mais importante deste país, cujos corpos hídricos se encontram em situação de degradação ambiental extrema, onde existem fortes desigualdades de poder político e econômico entre os usuários de água e entre os municípios que fazem parte deste território. Essa centralidade espacial contribuiu sobremaneira para que ali fosse realizada uma sucessão de projetos políticos de desenvolvimento econômico, um exemplo notório de “território usado”, tal qual apresentado por Santos e Silveira (2001).
Em que pese o fato da poluição e industrialização crescente da Baía serem assuntos de interesse da mídia e população fluminense, o surgimento de novos investimentos na metrópole – principalmente aqueles ligados à realização de provas Olímpicas e à expansão da indústria do petróleo e petroquímica na RMRJ – colocam o estuário ainda mais no centro das atenções desde o início da década de 2010. Toda essa conjuntura tem fortes reflexos nas demandas e usos e direcionamento dos fluxos das águas na metrópole.
Acompanhamos boa parte desses projetos, pois as análises aqui empreendidas foram iniciadas no ano de 2008, no âmbito do projeto “Valoração da Água e Instituições Sociais: Subsídios para a Gestão de Bacias Hidrográficas na Baixada Fluminense, RJ”. Nos anos de 2009 a 2013, a autora deste artigo também se dedicou a essa temática em sua tese de doutorado, desenvolvida no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur-UFRJ), também sob orientação desses professores.
Foi a partir dessas experiências que pudemos entender melhor a dinâmica do campo de gestão de águas no RJ. Começamos a frequentar reuniões do Comitê de Bacia hidrográfica da Baía de Guanabara (CBH Guanabara) e visitar localidades com histórico de enchentes e falta de água, localizadas na Baixada Fluminense e que receberiam investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para saneamento básico. Além das conversas (não gravadas) com população residente em beira de curso d’água, fizemos entrevistas (gravadas) com ambientalistas, gestores públicos, participantes do CBH Guanabara e outros. Entre 2008 e 2009, realizamos um total de 39 entrevistas.
A segunda etapa dos trabalhos de campo foi iniciada em 2011, com foco nas análises etnográficas institucionais do CBH Guanabara. Entre 2012 e início de 2013, outras seis entrevistas foram realizadas, dessa vez apenas com membros titulares do Comitê. Participamos de reuniões do CBH Guanabara, seus subcomitês e câmaras técnicas; fizemos visitas técnicas na Área de Proteção Ambiental (APA) Guapimirim e na Estação de Tratamento de Águas (ETA) Alegria; participamos de eventos ligados ao campo estadual de gestão de águas e, por fim, fizemos visitas ao órgão gestor ambiental estadual, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), para coletar dados e tirar dúvidas.
Outro documento importante analisado foi o Cadastro Nacional de Usuários de Águas (CNARH)4 da Região Hidrográfica da Baía de Guanabara, cedido pelo INEA, referente aos anos de 2008 e 2012. Desse modo, foi possível extrair dados interessantes relativos tanto à extração de água, quanto aos lançamentos realizados por setores distintos de usuários de recursos hídricos. Essas informações foram dispostas em tabelas (item “Usos e usuários de água na metrópole fluminense” deste trabalho) para melhor ilustrar os “fluxos de água” na metrópole, e foram analisadas com o apoio dos argumentos de autores ligados à Ecologia Política.
Adotamos essa perspectiva de análise pois temos como interesse contribuir para o debate sobre o futuro da gestão de recursos hídricos em áreas metropolitanas – uma questão que, a nosso ver, tem sido abordada, prioritariamente, de forma técnica e operacional. Aqui cabe acrescentar que para Santos (2003, p. 118), “a vida não é um produto da Técnica, mas da Política, a ação que dá sentidoà materialidade”. Encontramos em Santos (2003) outras observações pertinentes à questão em debate. Para ele, na contemporaneidade, a tecnologia se pôs a serviço de uma produção em escala planetária, na qual nem os limites dos Estados, nem os dos recursos, nem os dos direitos humanos são levados em conta. “Nada é levado em conta, exceto a busca desenfreada do lucro, onde quer que se encontrem os elementos capazes de permiti-lo” (Santos, 2003, p. 118).
Neste caso, refletir sobre o “ciclo hidrossocial” da água no contexto de uma grande metrópole, como a do Rio de Janeiro (RJ), envolve um olhar atento sobre os processos de urbanização e políticas de desenvolvimento adotadas. Assim, é necessário compreendê-los como um processo político ecológico, cujo o elemento água serve como ponto de partida para uma discussão que abarca outras questões.
Para Ioris (2010), a ecologia política dos recursos hídricos lida com as contradições socionaturais relacionadas ao uso e à conservação da água sob a esfera de influência direta ou indireta dos processos de circulação e acumulação de capital, assim como das alternativas para sua superação em contextos históricos e culturais específicos. Uma análise responsável dos problemas de gestão de recursos hídricos deve, então, identificar responsabilidades coletivas, mas profundamente diferenciadas, entre os grupos sociais que interagem em um dado território (Ioris, 2010, p. 81).
Além do mais, à medida que as cidades crescem, tornam-se mais complexos os fluxos das águas urbanas, sejam elas destinadas ao abastecimento da população, à diluição de efluentes, ao escoamento das águas pluviais, ao uso industrial, dentre outras situações.
No caso específico da metrópole fluminense, observa-se que a dinâmica urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) sofre influência direta dos problemas relacionados tanto aos alagamentos recorrentes nos meses de verão quanto da escassez hídrica – já que são poucos os mananciais de água existentes para abastecer a metrópole, sendo o principal deles o Guandu, que depende fortemente das águas transpostas do rio Paraíba do Sul para operar (Costa, 2013).
Por fim, é visível que a Baía de Guanabara é mais do que uma região hidrográfica cortada por rios e pequenos córregos; e vai muito além de um simples estuário retratado em “cartões postais”. Séculos atrás, o principal ecossistema ali existente era o mangue; já nas últimas décadas sua configuração é o resultado de diferentes formas de apropriação dos territórios, da consolidação e sobreposição de políticas públicas variadas (cada uma com sua própria “institucionalidade”) que regulamentam os usos da água ali empreendidos. Sendo assim, será com um olhar sobre a história desse território, que iniciaremos nossas análises.
Acesse o artigo completo na edição nº 33 da Revista Cadernos Metrópole.