Rumos das nossas Cidades. O impasse da política urbana no Brasil
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro – Professor-Titular do IPPUR/UFRJ e Coordenador Nacional do INCT Observatório das Metrópoles.
Os últimos 15 anos vêm se construindo no país uma nova representação do Brasil enquanto sociedade e economia. De uma nação que se modernizava reiterando seus traços conservadores e autoritários estamos nos acostumando com a imagem de um país construtor de uma das maiores democracias do ocidente. De uma economia periférica dependente dos ciclos do capitalismo mundial somos apresentados ao mundo e a nós mesmos como potência econômica, com motor próprio e vocação para ocupar lugar de centralidade na nova geografia da economia-mundo. Motor econômico que deixa de se alimentar da concentração da renda como fundamento da sua energia, para transformar a diminuição das desigualdades sociais em fonte do seu dinamismo.
Diante de tanto otimismo, há uma pergunta que se coloca? Será que conseguimos superar aqueles impasses estruturais da nossa formação histórica capitalista que ocuparam o centro dos debates do pensamento social brasileiro desde os anos 1960? Será que estamos conseguindo superar os impasses estruturais presentes na dualidade desenvolvimento versus modernização capitalista tão bem descrita por Celso Furtado em sua teoria do subdesenvolvimento?
A chamada questão urbana é um interessante tema sobre o qual podemos aprofundar esta reflexão, uma vez que ela sintetiza este dilema. Em uma sociedade na qual mais de 90% da população moram em cidades e quase 70 milhões em aglomerados metropolitanos, estaremos superando os limites urbanos que hoje bloqueiam a transformação do crescimento em aumento e distribuição de bem-estar social e de oportunidades? Estamos substituindo as cidades organizadas pelo laissez-faire mercantil que a constituiu em espaços protegidos e planejados para que cumpram o princípio constitucional da sua função social de reprodução da vida? Todas as informações e análises recentes nos indicam que, não obstante todas as imagens de um Novo Brasil, continuamos com o Nosso Antigo Urbano, expressão e resultado dos nossos impasses estruturais.
A reflexão sobre as raízes de tais impasses é que nos propõe a Ermínia Maricato em seu mais recente livro, O Impasse da Política Urbana no Brasil, publicado pela Editora Vozes. A trajetória pessoal, profissional e política de Ermínia Maricato autorizam e fundamentam aguda análise que expressa neste livro. Com efeito, é uma das testemunhas da história recente da Reforma Urbana no Brasil – primeiro na função de militante política e segundo como observadora. Professora da FAU/USP há mais de 36 anos, Ermínia foi secretária de Habitação do município de São Paulo (1989-1992) e fez parte da equipe que formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades. Neste recém-lançado “O impasse da política urbana no Brasil”, a professora discute o futuro das cidades brasileiras sob a perspectiva do fim de um ciclo, isto é, o fim de um período denominado de Reforma Urbana que começou na década de 60 com os movimentos sociais e chegou ao seu limite em 2003, com a transição FHC/Lula.
O livro é composto de cinco capítulos, com eixos temáticos que, volta e meia, se repetem e estruturam em uma reflexão organizada. Os eixos são os seguintes:
a) A retomada da proposta de Reforma Urbana, sistematizada em 1963, como resultado do Congresso Nacional de Arquitetos;
b) A constituição de um vigoroso movimento nacional de Reforma Urbana, que unificou as demandas e lutas pelo direito à Cidade ou pela justiça urbana, concomitantemente à luta contra a ditadura e pela democratização do país;
c) As significativas conquistas desse movimento, sejam por meio da eleição de governos municipais denominados democráticos e populares que implementaram políticas de participação social e programas de combate à desigualdade social urbana (a partir dos anos de 1980), sejam por meio da Constituição Federal de 1988 ou de novas leis – Estatuto da Cidade (2001) – e novas instituições – como o Ministério das Cidades (2003).
d) O declínio, a perda de ofensividade e a fragmentação dos movimentos sociais reunidos sob a bandeira da Reforma Urbana. Em especial, chama a atenção aqui a perda da centralidade da questão da terra urbana, ou do direito à cidade cujo início provável se deu nos anos de 1990, mas que se acentuou durante o governo Lula.
e) Finalmente, a constatação da piora das condições gerais, sociais, ambientais e de vida nas cidades durante as últimas três décadas. A professora parte da herança marcada pela condição capitalista periférica de tradição escravista, portanto, de forte desigualdade social no território e falta de controle sobre o uso e ocupação do solo, para mostrar que essas características se exacerbam no período denominado pelas políticas neoliberais. Já no período mais recente, a partir de 2004, os investimentos em habitação e saneamento são retomados pelo governo federal deixando intocada a base fundiária urbana, o que compromete a noção de desenvolvimento urbano.
O primeiro capítulo, “O impasse da política urbana no Brasil” é uma tentativa de pensar a criação do Ministério das Cidades e o seu impacto nos assuntos relacionados com as cidades brasileiras – incluindo aqui a discussão de temas atuais como o Programa Minha Casa Minha Vida. Em “Nunca fomos tão participativos”, Ermínia reflete sobre a ineficácia do “participativismo”, decorrente de milhares de conselhos governamentais consultivos que incluem lideranças sociais na discussão de políticas públicas, e o pragmatismo, que passou a predominar sobre a maior parte dos movimentos sociais “engolidos” pelo aparelho de Estado.
No capítulo “Formação e impasse do pensamento crítico sobre a cidade periférica” é apresentado um balanço da significativa e recente – nos últimos 40 anos – produção acadêmica sobre a cidade periférica, verdadeiro movimento que alimentou a militância urbana e as gestões públicas democráticas nesse período. Um novo tipo de profissional de arquitetura e urbanismo, voltado para promover a moradia popular e intervir nos bairros periféricos, de certa forma, também se desenvolveu sob a inspiração desse pensamento crítico.
Já no capítulo “Por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação”, a autora retoma um tema que nas décadas de 1970 e 1980 ocupou grande parte dos acadêmicos progressistas, de filiação marxista, sobre o ambiente construído. Ela faz, assim, um alerta para o acento excessivo no consumo, apontando para a centralidade teórica da questão da produção, ignorada até mesmo por muitos acadêmicos que tratam da tecnologia da construção. A reflexão mantém sua atualidade no que diz respeito ao mercado imobiliário periférico ou patrimonialista de países como o Brasil e no que diz respeito à importância do estudo da produção/provisão/construção da habitação.
A crucial importância do automóvel para a estruturação e para muitos dos males da cidade produzida pelo capitalismo central e periférico é abordada no capítulo “O automóvel e a cidade”. Já a constatação de que a terra continua a ser um nó nas relações sociais no Brasil, mesmo após a globalização, e agora com papel renovado, foi explorada no texto “A terra é o nó” – que serve como conclusão do livro – e constitui um grito de indignação da professora Ermínia Maricato para os impasses da política urbana brasileira.
O conjunto do livro constitui-se, sem dúvida, em contribuição fundamental para a reflexão sobre as razões do impasse que bloqueia a emergência de novos rumos para a política urbana brasileira; uma política que retire a cidade brasileira das forças da mercantilização que a constituíram e que ainda bloqueiam a sua transformação em riqueza social promotora do bem-estar e da democratização das oportunidades, nos planos da coletividade e dos indivíduos. A pergunta que tal constatação faz emergir é a seguinte: quais forças da sociedade brasileira serão capazes de quebrar os mecanismos históricos e estruturais de articulação entre Estado e Capital pelos quais uma espécie de capitalismo urbano mercantil vem sendo alimentado como fundamento da nossa revolução passiva, o qual sempre contornou a emergência dos conflitos sociais utilizando a cidade como fronteira de expansão e sustentação das relações capitalistas?
Ermínia Maricato